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O SEMI-ÁRIDO DE GOELA SECA
Devido às secas sucessivas, o Nordeste semi-árido brasileiro está na iminência de um colapso no abastecimento de sua população. Já está faltando água para beber. E o quadro tende a se agravar. Para se chegar a essa conclusão, não é necessário ir muito longe. A cidade de Campina Grande (PB), com 350 mil habitantes, a 230 km do Recife, está com o seu principal reservatório (a represa de Boqueirão) em estado crítico. A cidade de Bezerros (PE), a 100 km da capital, está sendo abastecida por trem, com água trazida de um poço da Petrobrás existente em Suape. A região do Seridó, no Rio Grande do Norte, agoniza. Os açudes de toda a região estão secando. A seca, acreditem, chegou ao litoral nordestino.
Apesar de ser um fenômeno natural cíclico, em nosso meio a seca vem acompanhada de uma severa aliada: a falta total de planejamento dos órgãos públicos no tocante ao uso dos recursos hídricos. Nesse ponto, parecemos imbatíveis. A cidade do Recife, com 1,3 milhões de habitantes, situada numa região em que chove 2000 mm/ano, amarga um racionamento de 9 dias em alguns bairros, estando ela sobre um solo sedimentário portador de uma riqueza significativa de água.
O que fazer para, a curto prazo, resolver ou minimizar esse problema?
A situação não é de fácil solução. Uma boa alternativa seria, inicialmente, fazer cumprir o que determina o artigo 21 da Constituição de 1988, no seu inciso XIX, que estabelece a competência da União em instituir um sistema nacional de gerenciamento de recursos hídricos e definir critérios de outorga de direitos de seu uso. Existindo esses dois instrumentos, em cuja definição, infelizmente, até hoje estamos engatinhando, é necessário um verdadeiro orçamento de água, anualmente revisado em função da sua maior ou menor disponibilidade, que varia a cada ciclo hidrológico (a Agência Nacional da Água - ANA, órgão recentemente criado pelo governo federal poderá ter um papel fundamental nessas ações). Esse orçamento iria definir: X m³/s para uso humano e animal; Y m³/s para irrigação na bacia; Z m³/s para geração de energia elétrica; T m³/s para transposição para outras bacias; W m³/s para a indústria, etc. etc.
Necessário se faz, no entanto, dar continuidade ao programa de construção de grandes represas na região, aliado a critérios de utilização racional de suas águas. Atualmente, as 28 maiores represas do Nordeste, que têm capacidade para acumular 12 bilhões e 750 milhões de m³ de água, utilizam apenas 30% desse volume em sistemas de abastecimento ou em irrigação. Projetos de represas (como a do Pirapama, localizada na região metropolitana do grande Recife) que poderiam minimizar, e muito, o problema de racionamento d’água da cidade teimam em não sair do papel.
Outro programa importante é a construção de cisternas rurais para captação da água da chuva com fins de potabilidade. Ao nosso modo de entender, as organizações não governamentais e os governos estadual e municipal têm um papel fundamental, tanto na construção, como no manejo de uso de suas águas junto ao homem do campo. Uma cisterna de 12000 litros (quando bem manejadas, as águas das cisternas ficam livres da contaminação por microorganismos) abastece de água potável uma família de 5 pessoas durante os 8 meses sem chuvas na região.
Fala-se muito em água do subsolo para se resolver, de vez, os problemas hídricos da região semi-árida. Sobre este assunto achamos que é uma alternativa importante, mas que não é a solução de todo o problema. Dadas às características geológicas da região, que está localizada em praticamente 70% sobre o embasamento cristalino, há poucas possibilidades de acúmulos satisfatórios de água nesse meio. De regra, além de fontes com baixas vazões e sujeitas a exaustão, as águas, quando em contato com o substrato cristalino, são mineralizadas com muita facilidade, tornando-se salinizadas. A título de exemplo, estima-se que 35% dos 60.000 poços escavados no cristalino nordestino estejam secos, obstruídos ou com teores salinos inadequados ao consumo humano. O uso do dessalinizador em tais casos é antieconômico pois 1 m³ de água dessalinizada custa US$ 0,80 (oitenta centavos de dólar). Todavia, devemos explorar racionalmente as regiões sedimentárias do Nordeste evitando, sempre que possível, os desperdícios d’água, a exemplo daqueles existentes no estado do Piauí, que não aproveita, de forma coerente, as águas dos poços jorrantes escavados na região sedimentária do Vale do Gurguéia, no município de Cristino Castro. Os poços jorram 24 horas por dia e não existe um projeto de uso adequado de suas águas que justifique o programa de perfuração ali realizado.
Outro assunto polêmico diz respeito ao uso das águas do Rio São Francisco para o abastecimento das populações sedentas do semi-árido. Sobre esse assunto, é preciso alertar a população para os seguintes aspectos:
- Não se pode esperar, uma vez tomada a decisão de se utilizar água do rio São Francisco, que essa água chegue aos que habitam o Semi-árido, no dia seguinte. A população morrerá de sede com antecedência. O acesso à água de tal fonte é uma questão a ser resolvida a médio e longo prazo.
- O São Francisco já está com as suas águas comprometidas na geração de energia e na irrigação. A explicação é a seguinte: a vazão média do rio é de 2800 m³/s. Para gerar energia, levando em conta todo o potencial gerador da CHESF, são necessários, desse total, cerca de 2100 m³/s. Portanto, restam 700 m³/s. O potencial de áreas irrigáveis do São Francisco é de 3.000.000 ha. Se considerarmos 0,5 litro/s/ha como um número razoável para fins de cálculo da irrigação que é praticada atualmente no vale do São Francisco, seriam necessários 1.500 m³/s para irrigar aquela área potencial. Ocorre que não temos esse volume disponível no rio. Temos, conforme mencionado anteriormente, apenas 700 m³/s. Apesar de termos uma área potencialmente irrigável de 3.000.000 ha, só é possível irrigar, com o volume de água disponível no rio (700 m³/s), cerca de 1.000.000 ha. Já nos parece existir, nessa contabilidade, um sério conflito quanto ao uso das águas do São Francisco. Certamente não iremos ter água suficiente para gerar energia, irrigar e abastecer as cidades do Semi-árido nordestino conforme se está pretendendo. Se já é triste morrer de sede, mais triste ainda é morrer de sede no escuro.
- Se, por uma questão humanitária, a decisão de transpor as águas do São Francisco for tomada, na expectativa de evitar que a população morra de sede, certamente haverá a necessidade de uma redução na área irrigada na bacia do rio, pois o volume de água que deixará de ser utilizado na irrigação passará a ser utilizado no abastecimento das populações. Nesse novo cenário, seria prudente que o local de retirada dessas águas fosse feito à jusante da represa de Xingó, posição na qual as águas já cumpriram o seu papel de geradoras de energia elétrica e irão ser drenadas para o mar.
- É necessário se pensar na possibilidade de se transpor águas de outras bacias hidrográficas para aumentar a vazão do São Francisco. Existe no noroeste da Bahia uma falha tectônica na qual existem duas lagoas (Jalapão e Varedão) com triplo desaguadouro: para o rio Tocantins através do rio do Sono, para o rio Parnaíba e para o rio São Francisco, através de seu afluente, o rio Sapão. Nesse acidente geográfico já há uma transposição natural para o São Francisco de cerca de 110 m³/s. Um aprofundamento dessas lagoas bastaria para um aumento significativo de vazão no São Francisco.
Finalmente, achamos que a concretização das alternativas acima elencadas demandará um certo tempo. Os programas demoram para serem concebidos e executados. E a variável "tempo" o nordestino não tem à sua disposição, pois o fantasma da falta de água potável está rondando a região. Nesse sentido, já seria de bom termo que o governo de Pernambuco começasse a se preocupar em fazer chegar água nos municípios necessitados através de abastecimentos alternativos (com carros pipa, navios, trens, etc), bem como identificar as fontes hídricas disponíveis para suprimento desse abastecimento emergencial. É sabido que o estado de Pernambuco é naturalmente carente em recursos hídricos, o que não impede de se promoverem esforços no sentido de se equacionar essa situação. O governo da Paraíba já está se mobilizando nesse sentido na tentativa de amenizar a situação delicada em que se encontra a população de Campina Grande. Comenta-se o transporte de água da região metropolitana da capital paraibana em frotas de carros-pipa para o atendimento daquele município. Embora circunstancial, a decisão deverá ser tomada para evitar o mal maior, qual seja, a morte da população com a goela seca.
Recife, 18 de agosto de 1999.