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Nordeste: Oh! Que lindo!
João Suassuna – Engenheiro Agrônomo e Pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco
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20/10/2002
Praia de Porto de Galinhas - Pernambuco
Não se pode acabar com a fome do Nordeste, admirando apenas as suas belezas naturais.Acaba de ser concluída no país a maior campanha presidencial da sua história, na qual o povo brasileiro teve a oportunidade de eleger, de forma democrática, o seu dirigente para os próximos quatro anos. Entretanto, dentre as propostas dos candidatos na referida campanha, a que ficou mais evidenciada para o Nordeste, sem a menor sombra de dúvida, foi a expansão do turismo. Sem o aprofundamento mais convincente de outras questões igualmente importantes para o seu desenvolvimento, pareceu-nos que as propostas dos candidatos para a região ficaram restritas, quase que exclusivamente, àquele segmento, principalmente se levarmos em consideração o usufruto das belas praias nordestinas - o chamado Caribe brasileiro -, a degustação de sua maravilhosa comida, o contato com a sua cultura multicolorida e a visita a seus pontos históricos. É o Nordeste diante do qual o turista costuma exclamar: Oh! Que lindo!Numa primeira análise do conteúdo de tudo aquilo que se passou na campanha, achamos que, para o Nordeste, outros assuntos de igual relevância deveriam ter sido aprofundados, com vistas a se definirem, de uma vez por todas, as propostas condutoras dos seus destinos, as quais o povo nordestino está ávido por conhecer. Na verdade, existiram propostas muito boas para o Brasil, mas dadas as gigantescas disparidades regionais existentes, faltaram, no nosso modo de entender, propostas regionais específicas, principalmente para o outro Brasil, também real, denominado de Semi-árido. Não se pode acabar com a fome do Nordeste, admirando apenas as suas belezas naturais.Não querendo diminuir a importância das ações turísticas para o desenvolvimento do Nordeste, chamamos atenção para o fato de que a metade dessa região, onde moram cerca de 20 milhões de pessoas, tem clima semi-árido e que, no exacerbar de uma seca, 10 milhões desse contigente passam sede e fome. Nesse pedaço do nosso país, com um céu que teima em não mandar-nos chuvas, se levarmos em consideração a escala de aparência referida para as belas praias nordestinas, é bem provável que aquele mesmo turista, quando em contato com o ambiente seco e com a situação do povo, venha a exclamar: Oh! Que feio! Horrível, diriam os mais críticos.
Na verdade, faltou aos candidatos, a julgar pela garra na disputa, a evidência de alternativas de solução para os principais problemas que afligem a população nordestina, que normalmente é afugentada para outros locais com maiores possibilidades de sobrevivência, numa verdadeira corrente de retirantes, aliás, a exemplo do que aconteceu com o próprio presidente eleito. Contudo, as alternativas de convivência com esse ambiente, aparentemente inóspito, existem e, evidentemente, dependem da boa vontade dos dirigentes para concretizá-las, dentre as quais citamos algumas:- Temos que usufruir da fantástica incidência dos raios solares na região. São quase 3000 horas de luz solar por ano, que têm que ser encaradas como um desafio e, nunca, como um problema. Isso significa uma verdadeira fábrica de fotossíntese a céu aberto, que é um fator natural importantíssimo, principalmente para a produção de culturas irrigadas no Vale do São Francisco, a exemplo da manga, do melão e da uva, que não raro dão três safras por ano.- É urgente garantir o abastecimento hídrico da população, através da continuidade do programa de construção de cisternas e da perfuração de poços profundos nos aqüíferos em regiões sedimentárias e nas fraturas das rochas cristalinas. É igualmente importante o incentivo ao uso das águas das represas públicas, que têm volumes acumulados suficientes para garantir o abastecimento de boa parte da população nordestina, com água de excelente qualidade e, com isso, diminuir as possibilidades de uso dos carros-pipas, verdadeiras pragas da perpetuação do triste vício político, a chamada "indústria da seca".- É importante considerar o desenvolvimento de uma pecuária de dupla função (carne e laticínios), com grandes e pequenos ruminantes, a exemplo do que vem sendo feito no Carirí da Paraíba, no município de Taperoá, onde o pecuarista Manoel Dantas Vilar - o Manelito - vem comprovando que é possível se viver, com dignidade, naquele pedaço do Sertão. Na fazenda Carnaúba, de sua propriedade, são criados animais adaptados ao clima seco, oriundos dos pré-desertos da Ásia (Índia e Paquistão) a exemplo do Guzerá e do Sindi, paralelamente à realização de um trabalho de melhoria genética nos ovinos e caprinos, através de seus cruzamentos com raças homólogas européias, com o propósito de, através de um choque de sangue, resgatar a condição de produtividade desses animais, perdida ao longo do tempo com o advento das secas (no Semi-árido, esses animais criados extensivamente perderam aquela condição, embora tenham adquirido o caráter importantíssimo de rusticidade).- É fundamental a conservação do bioma da caatinga para obtenção de frutas, látex, ceras, fibras, mel, óleos essenciais, produção de energia, forragem e abrigo para a fauna silvestre.
E, finalmente, não devemos nos esquecer da parte financeira para dar suporte aos investimentos necessários a todas essas ações. Programas de crédito rural subsidiado, com a possibilidade de pagamento com os produtos gerados nos estabelecimentos agrícolas, são importantes e oportunos. Resta-nos, pois, passada a euforia da campanha, iniciar um gradual processo de acompanhamento daquilo que julgamos como de fundamental importância para os desígnios da nossa região. Até lá, vamos ter esperança na concretização dessas sugestões e, uma vez implementadas, não teremos medo de ser felizes.Recife, 29 de outubro de 2002.
Texto originalmente publicado no encarte Nordeste, da Gazeta Mercantil, do dia 13 de novembro de 2002.