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Caneco de ouro, artigo de João Suassuna
Na gestão do presidente Fernando Henrique Cardoso, as questões do Velho Chico foram tratadas de modo singular. Até prova em contrário, o total desconhecimento do ambiente natural por onde corre o rio foi uma constante em seu governo, a ponto de sua excelência ter dado início a um programa que chamou de "Compromisso pela vida do rio São Francisco". Junto com uma comitiva de políticos, foi à nascente do rio, tomou um pouco de sua água e transmitiu mensagem de apoio à transposição dizendo que "o rio São Francisco é generoso e não há de secar porque os estados nordestinos pegam um pouquinho de água aqui e ali".
Essa frase de FHC ficou marcada na história do Brasil como exemplo de total dissonância de seu governo com a realidade hídrica do Nordeste e com as expectativas de seu povo ao acesso a água. Na seqüência de tudo isso, alguns meses após o seu pronunciamento e motivado por períodos secos na bacia do São Francisco, o rio correu com menor volume de água, a ponto de as autoridades serem obrigadas a proceder ao indispensável racionamento de energia, iniciando-se, naquele momento, a mais séria crise energética da história nordestina.
O governo Lula está-nos parecendo semelhante ao de FHC nas questões sanfranciscanas. Inicialmente, em campanha, sua excelência começou a agir de forma sensata, alertando o povo nordestino sobre a necessidade de se debater com mais profundidade o projeto de transposição, por entender que o mesmo apresentava-se polêmico e, portanto, merecedor de maiores discussões junto a sociedade, para se chegar a um denominador comum. Aliás, as discussões constituíam as principais bandeiras de luta na campanha presidencial de Lula. Quem não lembra da discussão acalorada havida entre Lula e o candidato Anthony Garotinho, quando o assunto da transposição veio à baila? Garotinho defendia a execução do projeto a todo custo, enquanto Lula sustentava a necessidade de debatê-lo com mais prudência. Diante disso, ficamos animados com aquela posição do então candidato Lula sobre a forma de tratamento dispensada, tanto ao projeto da transposição, como à hidrologia do Nordeste como um todo.
O que aconteceu depois de Lula eleito? Segundo expressão do próprio presidente, ele iria fazer a transposição a todo custo, “nem que fosse com uma lata d´água na cabeça”, alegando não poder negar um “caneco d´água” a quem tem sede.
Ora, o foco da questão do abastecimento do Nordeste não pode restringir-se, única e exclusivamente, ao acesso às águas do rio São Francisco, para a solução dos problemas da sua população, como bem o atesta a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). Diante do potencial hídrico existente na região, os técnicos da SBPC recomendaram, em reunião no Recife, em agosto de 2004, que se procedesse à construção de uma infra-estrutura hidráulica capaz de atender às necessidades da população, partindo-se das bacias dos estados que seriam receptores das águas do rio São Francisco (Ceará, Rio Grande do Norte e Paraíba), para as bacias dos estados exportadores (Alagoas, Sergipe, Bahia e Minas Gerais), isto é, de jusante para montante, priorizando-se o acesso às águas das represas, dos poços, cisternas rurais, barragens subterrâneas, etc.., fontes estas detentoras de volumes capazes de suprir, até com certa folga, as necessidades diárias da população nordestina, bastando, para tanto, proceder-se ao indispensável gerenciamento desses recursos.
Sobre esse assunto, tivemos acesso, recentemente, a um relatório elaborado em 1995, pela Funcate (http://www.funcate.org.br/) - órgão credenciado pelo MEC e MCT como instituição de apoio às organizações governamentais de pesquisa e desenvolvimento -, sobre as questões hídricas do Nordeste, no qual é afirmado, categoricamente, que não há déficit na região que venha a impedir ou mesmo comprometer o abastecimento humano e que, diante do potencial hídrico existente, a transposição do rio São Francisco constitui-se numa obra desnecessária.
Não podia ser diferente. Em conversa recente que mantivemos, sobre as questões hídricas nordestinas, com Apolo Heringer Lisboa, coordenador do Projeto Manuelzão – projeto que visa a revitalização do Rio das Velhas (MG) -, chegamos a conclusão de que, diante do expressivo volume d´água existente nos estados da região, com potencial estimado de cerca de 37 bilhões de m³, o que se pretende bombear do rio São Francisco, através do projeto de transposição (cerca de 400 milhões de m³/ano), representa apenas cerca de 1% daquele potencial instalado.
Esta afirmação se torna mais preocupante ainda se compararmos os volumes pretendidos pelo projeto de transposição (os 400 milhões de m³/ano) ao potencial volumétrico existente na rede dos principais açudes do Nordeste Setentrional (cerca de 11,48 bilhões de m³). Nesse caso, os volumes a serem transpostos pelo projeto correspondem a apenas 3,5% desse potencial volumétrico.
Para efeito dos cálculos nessas análises, levou-se em consideração o volume outorgado ao projeto pela Agência Nacional de Águas (ANA) de 26,4 m³/s; os bombeamentos contínuos durante 9 meses ao ano (essa redução do tempo de bombeamento baseou-se nos problemas que sempre ocorrem, advindos de manutenção, defeitos nos equipamentos, falta de energia e outros imprevistos) e as perdas volumétricas de água, da ordem de 35%, ao longo do trajeto dos canais, devido, principalmente, à evaporação e as infiltrações inevitáveis. Além do mais, considerou-se pertencentes à malha de barramentos, os açudes Chapéu (PE), Entremontes (PE), Castanhão (CE) Engenheiro Ávidos (PB), Pau-dos-Ferros (RN), Santa Cruz (RN), Armando Ribeiro Gonçalves (RN), Poço da Cruz (PE) e Boqueirão (PB), com o potencial volumétrico de 11,48 bilhões de m³, já mencionados e para os quais está previsto o abastecimento com as águas do rio São Francisco.
São esses percentuais irrisórios de 1% e 3,5%, dos volumes já existentes na região, que se pretendem transferir do rio São Francisco, a um custo de R$ 4,5 bilhões de reais, para o abastecimento de 12 milhões de pessoas no Semi-árido nordestino. Além de uma proporção custo/benefício descabida, em que as águas serão transportadas em “caneco de ouro”, não existe a mínima garantia de que esses volumes cheguem às populações difusas da região semi-árida, aquelas realmente mais necessitadas. Seguramente, essas populações – que estão representadas, na sua grande maioria, por produtores de baixa renda; que vêm sendo socorridas por frotas de caminhões-pipa e por programas assistencialistas do governo e que são as que realmente precisam do acesso ao precioso líquido para sobreviverem - essas não verão a cor das águas do rio São Francisco. O verdadeiro beneficiário de suas águas será o empresariado do grande capital (o irrigante, o criador de camarões, o cultivador de flores tropicais e os empreiteiros), aquele que representa a fonte maior de votos no Nordeste e que, não raro, é o verdadeiro responsável pelo sucesso eleitoral da maioria dos políticos ora em cena no Parlamento. É essa a verdadeira realidade nordestina, perante a qual a região está sucumbindo e, na nossa ótica, é onde se engendra a verdadeira indústria da seca.
Recife, 12 de maio de 2006.