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ÁGUA POTÁVEL NO SEMI-ÁRIDO: escassez anunciada
Publicado em
21/03/2019 00h00
Atualizado em
03/11/2021 09h41
João Suassuna - Pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco
Cacimba escavada no leito de um riacho seco - A principal preocupação dos governantes no Semi-árido nordestino deverá estar voltada para a contaminação das fontes de água potável, principalmente pelos dejetos animais e pela decomposição da matéria orgânica.
Água é um bem natural escasso no Nordeste semi-árido brasileiro. Essa assertiva está intrinsecamente relacionada, de um lado, à baixa pluviosidade e irregularidade das chuvas da região e, de outro, à sua estrutura geológica (escudo cristalino) que não permite acumulações satisfatórias de água no subsolo - estima-se um volume de apenas 80 Km³ de água no cristalino nordestino - interferindo, inclusive, no caráter de temporariedade dos rios. Quando explorada em estrutura cristalina, a água apresenta, na maioria das vezes, salinidade elevada - com teores de cloreto acima de 1000 mg/l - característica, essa, que a torna imprestável ao consumo humano (a Organização Mundial de Saúde recomenda 250 mg/l de cloreto nas águas para o abastecimento das populações).
Ações governamentais têm sido estabelecidas no sentido de priorizar o acesso do sertanejo à água, através do uso de rios (perenizados e perenes), barreiros, açudes (pequenos, médios e grandes), cisternas, poços (amazonas e cacimbas) e poços tubulares. De acordo com a qualidade química das águas, existe uma variação, em escala crescente, nos teores de sais nessas fontes hídricas, obedecendo a seguinte ordenação: cisternas < açudes e barreiros < rios (perenizados e perenes) < poços (amazonas e cacimbas) < poços tubulares. Os teores de sais nas águas (composição química e nível de concentração dos sais) estão intimamente relacionados com o tipo de rocha e de solo com os quais elas têm contato.
A utilização de dessalinizadores tem sido uma prática bastante difundida pelos governos estaduais, no sentido de melhorar a qualidade das águas de subsolo, principalmente aquelas oriundas de poços tubulares e amazonas, as quais, devido a alta salinidade, apresentam pouca serventia para o consumo humano. Algumas questões, no entanto, precisam ser levadas em consideração, quando o assunto diz respeito ao uso das águas dessas fontes para fins de potabilidade.
As cisternas rurais talvez sejam os reservatórios hídricos mais importantes no Semi-árido, tendo em vista a sua capacidade de acumular água de excelente qualidade - as águas das cisternas não têm contato direto com outros ambientes que possam mineralizá-las ou contaminá-las - bem como a função reguladora de estoques para o consumo das famílias durante todo ano. Centros de pesquisa, organizações não governamentais e governos estaduais têm orientado o homem do campo no sentido de construir cisternas com técnicas modernas e baratas e de proporcionar uma melhor forma de manejo de suas águas. Estima-se que uma cisterna de 12000 litros seja suficiente para abastecer uma família de 5 pessoas durante os meses sem chuvas no Semi-árido, considerando o consumo diário de 10 litros por pessoa, durante 8 meses.
No que diz respeito aos rios, dadas as suas características de temporariedade no Semi-árido, o uso de suas águas fica restrito às escavações de cacimbas em seus leitos, nos períodos de seca, com limitações tanto nos aspectos da concentração de sais e exaustão do lençol freático, como da contaminação por microorganismos. No tocante à perenização dos rios, através da construção de represas sucessivas em seus leitos, um aspecto a ser considerado diz respeito ao tipo de solo existente na bacia da represa, que poderá vir a ser um elemento carreador de sais para o interior da mesma e, a partir daí, a água utilizada refletir aquela que foi represada. Planossolo Solódico e Solonetz Solodizado são tipos de solos que trazem estas características.
Nos casos específicos dos barreiros e pequenos açudes, existem algumas preocupações no sentido de se resolver o problema da turbidez das águas que é muito comum nesses tipos de fontes hídricas. A turbidez é uma característica resultante da suspensão de partículas microscópicas de argila nas águas. Normalmente, utiliza-se a filtragem para minimizar esse problema, sem que se consiga, no entanto, a eficiência desejada. A ineficiência dos filtros existentes no mercado, permite a passagem de um grande teor de partículas de argila em suspensão na água filtrada, resultando não apenas numa qualidade inferior dessa água mas, principalmente, na obstrução do elemento filtrante e na necessidade de se repor esse material. A experiência tem mostrado que o homem do campo não costuma se preocupar com a reposição de novos elementos filtrantes quando obstruídos, passando o filtro a ser uma mera peça decorativa em sua residência.
Recentemente, a utilização da 'Moringa' - vegetal cujas sementes têm a capacidade de flocular e decantar as partículas de argilas em suspensão na água, sem causar problemas à saúde do homem - está sendo orientada, por organizações não governamentais, no sentido de tornar a água de barreiros e pequenos açudes a mais cristalina possível, melhorando, sobremaneira, o aspecto de turbidez. No entanto, vale ressaltar que a suspensão pura e simples da argila nas águas desses corpos de água é inócua à saúde das pessoas que a bebem, sendo necessária uma ação mais eficaz, por parte dessas organizações e dos governos em geral, no sentido de neutralizar os problemas causados pela fauna microbiana existente nas águas dessas fontes - principalmente a bacteriana , de microalgas e verminoses - contaminadas que são pelos dejetos animais, pela decomposição da matéria orgânica animal e por outras fontes de inóculo existentes no campo que, naturalmente, são carreadas pelas águas das chuvas para o interior dos barreiros e açudes, trazendo riscos à saúde da população usuária. É importante ser evidenciado esse aspecto, no sentido de se evitar situações lamentáveis como as que ocorreram no ano de 1997, com um grupo de pessoas, no município de Caruaru (PE), atendidas com tratamento de hemodiálise, em que o grande vilão dos óbitos ocorridos no referido tratamento foi a presença - na água proveniente do açude que abastece o município e componente do processo de filtragem do sangue - de uma microalga que não foi excluída pelo sistema de filtros dos equipamentos de hemodiálise da clínica que as atendeu. Outro aspecto igualmente importante a ser considerado nestes corpos de água diz respeito a sua exaustão, devido à evaporação acentuada que existe na região, somada ao uso continuado de suas águas. Estudos têm demonstrado que 40% das águas de um pequeno açude ou barreiro se perdem para a atmosfera pelo fenômeno da evaporação que, na região, chega a atingir patamares da ordem de 2000 mm anuais.
No tocante ao uso das águas dos grandes açudes para fins de abastecimento das populações, esta é uma prática que deveria ter sido priorizada há mais tempo. Normalmente um grande açude, por apresentar grande inércia - parâmetro que condiciona a sua resposta aos fatores de variação de salinidade de origem climática, ou seja, o efeito de diluição das chuvas e o efeito de concentração da evaporação - possui águas adequadas para fins de abastecimento. As 28 maiores represas do Nordeste têm capacidade para acumular 12 bilhões e 750 milhões de m³ de água, mas apenas 30% desse volume são utilizados em sistemas de abastecimento ou em irrigação. A represa de Orós, no Estado do Ceará, com um volume aproximado de 2 bilhões de m³ de água, praticamente não é utilizada. A barragem do Patu, na cidade sertaneja de Senador Pompeu, também no Estado do Ceará, que poderia ser usada na agricultura por 60% da população dessa cidade é usada por um número insignificante de produtores. Existem, no entanto, indícios de modificação desse quadro. A barragem Armando Ribeiro Gonçalves, no Rio Grande do Norte, que acumula um volume de água maior do que a Baía de Guanabara, só recentemente passou a ser utilizada em abastecimento, assim mesmo em volume muito aquém de suas potencialidades. Outros exemplos podem ser citados como a barragem do Castanhão, no Ceará, a de Jucazinho, em Pernambuco, Coremas/Mãe D'água e Boqueirão, na Paraíba, que incluíram, nos seus objetivos de uso, o fator abastecimento.
Com relação às águas tratadas em dessalinizadores, é preciso que sejam observadas algumas questões. O dessalinizador, em si, é um equipamento extremamente eficiente. O processo de retirada dos sais das águas é feito por intermédio de membranas (osmose reversa), o que dá ao equipamento índices espantosos de eficiência, em que uma água extremamente salinizada, ao ser tratada, passa a conter apenas traços de sais na sua composição. Torna-se, praticamente, uma água destilada. Este aspecto é muito importante pois poderá influenciar, sobremaneira, no balanceamento de sais do organismo das pessoas.
Em se tratando de balanceamento de sais, um dos aspectos importantes a ser considerado, é a temperatura ambiente. Uma das características da Região Semi-árida nordestina é a de ser quente, com a média da temperatura anual atingindo a casa dos 26° C. Isto significa dizer que a população rural transpira em demasia nas atividades normais de campo. Ao transpirar, ela perde sais. A reposição desses sais no organismo das pessoas normalmente é feita através da alimentação do dia-a-dia (sabe-se que a região apresenta índices elevados de desnutrição) e da ingestão de líquidos (ressalte-se que a população do Semi-árido é acostumada a ingerir águas com teores salinos muito acima dos recomendados pela Organização Mundial de Saúde). Ao passar, de uma hora para outra, a ingerir água com baixos teores de sais, essa população começará a entrar em um processo de desmineralização, tendo em vista as fontes de reposição desse elemento não apresentarem mais os teores que vinham suprindo a população anteriormente. O resultado é que um programa de fornecimento de 'água de primeiro mundo' à população, com o uso de dessalinizadores (slogan amplamente divulgado pelos governos), poderá vir a ser acusado, futuramente, como um vetor de desmineralização da população. Para corrigir esse problema é preciso que se pense numa forma de fazer um tratamento de águas misturando aquelas isentas de sais, oriundas dos dessalinizadores, com uma pequena parte, mineralizada, oriunda da fonte que está sendo tratada, garantindo, assim, uma água com teores salinos adequados ao perfeito funcionamento do organismo das pessoas. Sobre esse aspecto, informações obtidas de pesquisadores da ORSTOM (entidade de pesquisa do governo francês), participantes de missão científica no Chade - país de clima desértico do norte da África - demonstraram a preocupação dos técnicos franceses em balancear os teores de sais das águas consumidas no local e oriundas de dessalinizadores, através da dissolução, nessas águas, de comprimidos de sais trazidos da França.
Ainda com relação à questão dos dessalinizadores, outro aspecto importante a ser mencionado é o destino que deverá ser dado ao rejeito do material resultante do processo de dessalinização das águas. Este material, extremamente rico em sais, atualmente é depositado em lagoas de decantação ou mesmo colocado ao ar livre sem maiores preocupações, constituindo-se em um grave problema ambiental para ser solucionado pelos pesquisadores. É provável que os caminhos a serem seguidos pela pesquisa, digam respeito ao aproveitamento desses sais para fins pecuários, visto ser a região semi-árida muito carente no aspecto de mineralização dos animais, de piscicultura, principalmente com Tilápias, que são espécies extremamente resistentes a ambientes salinos e de cultivo irrigado com plantas halófilas, a exemplo da Atriplex, que necessitam de águas com teores salinos elevados para se desenvolverem.