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Água no Semiárido nordestino: contradição nas ações de uso, artigo de João Suassuna
João Suassuna - Pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco
Cuidados no uso das águas do São Francisco: o que se espera é que as instituições responsáveis pelos recursos hídricos, tanto no âmbito estadual como no federal, falem a mesma linguagem.
Temo-nos preocupado bastante, nos últimos anos, com a questão da água no Nordeste, notadamente da água da região semi-árida, preocupação essa que foi motivada não só por sua escassez mas, principalmente, por sua qualidade química traduzida em termos de salinidade. Esse fato, aliás, tem sido tema de vários textos nossos que se tornaram públicos via Internet, através do "site" da Fundação Joaquim Nabuco, neste endereço.
Sabidamente um bem natural escasso, a água se tornou um produto por demais cobiçado pela população que habita os limites do Semi-árido, não sendo exagero de nossa parte falar em "saques hídricos", quando o seu acesso se tornar mais problemático na ocorrência das secas. Nas secas atuais, os saques praticados pelos sertanejos têm ocorrido para obtenção de alimentos sólidos e são motivados pela fome. Futuramente, além da fome, teremos saques para obter água motivados pela sede. Essa é uma questão que certamente iremos vivenciar.
Nesse quadro extremamente preocupante, uma questão é passível de reflexão: a contradição que existe no uso das águas da região nordeste, em especial da semi-árida, por parte de instituições responsáveis pelos recursos hídricos, tanto no âmbito federal, quanto estadual.
Recentemente, sediamos na Fundação Joaquim Nabuco, no Recife, uma reunião promovida pela Secretaria de Ciência, Tecnologia e Meio Ambiente do Governo do Estado de Pernambuco, na qual foi apresentado, para discussão entre as instituições participantes, o Plano de Recursos Hídricos do Estado de Pernambuco, preconizado no art. 15 da Lei 11.426 de 17/01/97, que estabeleceu a Política e o Sistema Estadual de Recursos Hídricos. Nessa reunião, foi tornada pública uma sinopse contendo cenários, atual e futuros, dentro de hipóteses prospectivas de desenvolvimento, subdivididos em dois outros tipos de cenários, tendencial e desejável, que contemplam o uso e o controle dos recursos hídricos no Estado de Pernambuco.
Ficou evidenciado, no desenrolar das discussões, que o Estado de Pernambuco é por demais carente em recursos hídricos. Essa problemática, em termos da capacidade de acumulação de água em grandes e pequenos açudes, equivale a um total de apenas 3,4 bilhões de m³. Para se ter uma idéia do significado desse volume acumulado, um único açude no Ceará - o Orós - tem capacidade acumulatória de 2 bilhões de m³, ou seja, todo o estado de Pernambuco possui um potencial acumulado de, aproximadamente, um Orós e meio em seus açudes.
Nesse quadro de escassez, quando tratou-se da disponibilidade hídrica, em cenários atual e futuros, tornou-se cada vez mais evidente a necessidade de se importar águas de outras fontes hídricas do Estado - incluídas aí, aquelas oriundas do Rio São Francisco - como a única possibilidade de garantia do precioso líquido para o desenvolvimento das regiões, principalmente daquelas próximas ou contíguas ao rio. Num quadro síntese das importações de água do São Francisco em um cenário atual, contido na referida sinopse, verificou-se que será subtraído desse rio um volume aproximado de 1,12 bilhão de m³ de água por ano, dos quais 28 milhões de m³ são previstos para o abastecimento urbano, 9 milhões de m³ para as indústrias, 1,076 bilhão de m³ para a irrigação e 9 milhões de m³ para a aquicultura.
Esse aspecto tem-nos preocupado sobremaneira, tendo em vista a problemática de redução da vazão do rio. O Rio São Francisco, hoje, possui uma vazão média em torno de 2.800 m³ de água por segundo, com o comprometimento de 2.100 m³ por segundo pela CHESF, para geração de energia elétrica, sobrando, por conseguinte, 700 m³ por segundo de água, previstos para serem utilizados nos processos de irrigação. Isso corresponde a uma capacidade de irrigar aproximadamente 1.000.000 de ha nas margens do São Francisco, que é o potencial irrigável do vale. Outros usos das águas do São Francisco, como os acima comentados, implicariam na diminuição desse volume, pondo em risco todo o processo de irrigação praticado no vale, como também o de geração de energia elétrica ali existente. Esta espécie de "conta bancária" do uso das águas já nos parece operar no vermelho.
O assunto do uso da água torna-se contraditório quando passamos a comentar um mega- projeto que está sendo concebido pela CODEVASF, noticiado na edição do Diário de Pernambuco do dia 27 de setembro de 98. Nele, comenta-se um aporte de recursos da ordem de R$ 18 bilhões para serem gastos em 30 anos, objetivando o aproveitamento das águas da chuva, com a construção de 620 reservatórios e de 3,7 mil km de canais para a irrigação de áreas que nem mesmo o tão falado projeto de transposição das águas do São Francisco seria capaz de alcançar.
O importante nesse mega-projeto é que, para a sua realização, há a preocupação de um incremento de 830 m³ por segundo de água no Rio São Francisco. Esse volume viria dos excedentes das bacias hidrográficas do Rio Grande, na Bahia; São Marcos, em Goiás; Tocantins, em Tocantins e Parnaíba, no Piauí. A esse respeito, existe um divisor d’água das bacias do Tocantins e São Francisco - uma falha tectônica - onde se situa a Lagoa de Jalapão que faz a interligação natural das bacias do Tocantins, com o Rio São Francisco e o Parnaíba. Nessa mesma falha está também situada a Lagoa Varedão com triplo desaguadouro: para o Tocantins (por conseqüência para o Amazonas), pelos rios Sono e Novo e para o São Francisco, através do rio Sapão e seu tributário, o rio Preto. Devido à estrutura geológica do Tocantins - com bacia de 800 mil quilômetros quadrados e um débito médio de 11 mil m³ por segundo - são lançados, em algumas épocas do ano, cerca de 110 m³ por segundo de água para o São Francisco através das citadas lagoas. Um simples aprofundamento das lagoas supra mencionadas seria suficiente para aumentar a descarga para o rio em cerca de 260 m³ por segundo, o que não afetaria em absoluto o Sistema Tocantins.
Com esse dois exemplos, fica clara a contradição de ações existente entre as duas instituições: de um lado, o Governo do Estado de Pernambuco, que planeja o uso das águas importadas do São Francisco sem a preocupação com a sua vazão, nem com as conseqüências que poderão advir com esse procedimento e, de outro, a CODEVASF colocando com clareza a importância de se cuidar primeiro da vazão do rio, para depois dar seqüência às obras planejadas.
Finalmente, para nós fica muito claro, com os exemplos aqui comentados, que está faltando resposta a algumas indagações:
- Quais as conseqüências de se trocar água para geração de eletricidade por água para fins de irrigação, abastecimento, consumo industrial e aquicultura?
- Dos múltiplos usos que tem a água, qual o mais nobre?
- Que políticas devem ser utilizadas?
- A água deverá ter um custo?
Acerca dessas inquietações, está sendo elaborada uma tese de Doutorado no Departamento de Economia da Universidade Federal de Pernambuco, pelo Dr. Alexandre Stamford da Silva, que trata da questão do "trade off" água-energia no contexto do crescimento econômico. Nela, o doutorando, através de um modelo econômico de crescimento ótimo, pretende obter políticas e planejamentos para o gerenciamento de recursos energéticos e hídricos. Com esse trabalho espera-se que, de um lado, sejam dadas respostas às indagações feitas acima e, de outro, que as ações das instituições, doravante, sejam mais coerentes para o efetivo desenvolvimento de toda a região nordeste.
No entanto, já podemos afirmar que o uso alternativo da água não é pacífico, tendo limites objetivos. Por se tratar de um bem mensurável e limitado, devem ser definidas prioridades para o seu uso, a fim de não comprometer projetos já em andamento.
Deve-se lembrar que a hidreletricidade e a irrigação de terras adjacentes ao São Francisco foram opções tomadas que resultaram em pesados investimentos. Seu uso sub-ótimo é um desperdício que numa sociedade carente como a nordestina, não pode ser permitido. O planejamento e a racionalização do uso da água parece ter prioridade no Semi-árido.
BIBLIOGRAFIA
BOTELHO, Caio Lócio - Interligação do Tocantins com o São Francisco e o Jaguaribe, Jornal do Comercio, Recife, PE, Caderno Opinião, 17 de junho de 1998.
GOUVEIA, Glauce - Plano muda cara do Semi-árido, Diário de Pernambuco, Recife, PE, Caderno Economia, 27 de setembro de 1998.
SECTMA - Plano Estadual de Recursos Hídricos, Sinopse, Secretaria de Ciência, Tecnologia e Meio Ambiente, Recife, PE, agosto de 1998.
STAMFORD DA SILVA, Alexandre - Alterando o trade off entre a utilização das águas para geração de energia elétrica e para a irrigação, pelo uso de aquecimento solar à luz de um modelo econômico de crescimento ótimo, Plano de Tese, UFPE, Recife, PE, 1998.
Recife, 05 de outubro de 1998.