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A seca pode ser vencida
Entrevista concedida ao jornalista Leonardo Sakamoto, do Repórter Brasil
A entrevista na íntegra:
Revista Superinteressante - A seca do Nordeste é um eterno problema para o Brasil ou dá para a região se desenvolver e começar a andar com as próprias pernas?
João Suassuna - É fundamental usufruirmos das condições naturais existentes no Nordeste. Temos as condições e também o dever de explorar sua capacidade de suporte, o que podemos fazer com muita competência. Mais da metade da região, onde vivem cerca de 17 milhões de pessoas, tem clima semi-árido. Isso significa que temos uma insolação fantástica (aproximadamente 3000 horas de sol por ano) e quedas pluviais entre 500 e 800 mm ao ano, embora mal distribuídas. Temos que desmistificar a idéia de que, sob essas condições, não é possível promover o desenvolvimento da região. Ao contrário, essas características climáticas podem e devem ser encaradas como um desafio e, nunca, como um problema. Temos que voltar nossas vistas para o desenvolvimento da pecuária de dupla aptidão (carne e leite), com pequenos e grandes ruminantes, com raças adaptadas às regiões secas, como por exemplo a Guzerá e a Sindi. Devemos, necessariamente, utilizar a vegetação da caatinga como suporte forrageiro. É indispensável a introdução de forrageiras xerófilas perenes (que se desenvolvem em ambientes secos), a exemplo da palma forrageira e dos capins buffel e urocloa, para a produção de feno a ser ofertado aos animais em períodos de estiagem. Precisamos olhar com reservas o cultivo de grãos nos limites do semi-árido. A instabilidade climática é de grande monta e não podemos expor o homem nordestino à situação vexatória de preparar o solo, plantar as sementes e ver, posteriormente, a produção se perder com as secas. A irrigação deve ser realizada, mas em locais bem específicos no Nordeste (estimadamente em cerca de 2% da região), devido às características dos solos e, principalmente, à quantidade e qualidade de suas águas. Finalmente, é fundamental que sejam desenvolvidas ações que assegurem o acesso à água potável para o contigente populacional que habita a região, principalmente aquela oriunda de represas, poços escavados no sedimentário e nas cisternas rurais. Com uma política agrícola que dê suporte a essas ações (incluindo crédito rural subsidiado), certamente o Nordeste semi-árido não dependerá da ajuda do poder público para a promoção do seu desenvolvimento.
RS - Alguns países, como Israel e Estados Unidos, conseguiram transformar regiões desérticas em grandes pólos de agricultura, tecnologia e entretenimento Não podemos simplesmente copiar as boas idéias?
JS - Certamente que poderemos desenvolver a região Nordeste, mas à nossa maneira. O que não é apropriado é compararmos ou tentarmos adaptar as ações desenvolvimentistas que deram certo em países com características ambientais extremamente diferentes das nossas. São mundos completamente diversos. Jerusalém tem uma latitude de 32° norte. Isso significa que o clima e a geologia da região são completamente diferentes dos nossos. Em Israel neva nos invernos e lá não existe o escudo cristalino que tão bem caracteriza a geologia da zona semi-árida nordestina, onde os solos são rasos e pedregosos, o que dificulta o desenvolvimento de uma agricultura racional. Essa análise também é válida para o Oeste dos EUA, onde a latitude é próxima à de Israel, portanto com características ambientais semelhantes a este. Tanto Israel como a região do Colorado nos EUA resolveram os seus problemas internos de produção agrícola e, merecidamente, são reconhecidos, em todo o mundo, como celeiros produtores de alimentos. O que nos resta é resolvermos os nossos próprios problemas, levando em consideração as características do ambiente nordestino e utilizando nossa própria tecnologia. A cidade de Salgueiro, no Sertão pernambucano, está a 8° de latitude sul e a cidade de Fortaleza a 3°. Essas características ambientais implicam numa enorme diferença, quando comparadas às daqueles países, portanto merecedoras de tratamento específico. O que nos resta é capacitar nossas universidades e centros de pesquisa para o desenvolvimento de nossas tecnologias e tentarmos adaptá-las à nossa realidade.
RS - O que é melhor: transformar a região ou adaptar-se a ela?
JS - Seguramente a adaptação de ações às características do ambiente nordestino seria a melhor forma de promovermos o seu desenvolvimento. Um bom exemplo acerca dessas questões é a irrigação praticada no vale do São Francisco. Temos, seguramente, 1.000.000 de ha com possibilidades técnicas de serem irrigados. Para se ter idéia do que isso significa, o Chile, com apenas 200 mil ha irrigados, produz anualmente cerca de U$ 1,5 bilhão em frutas. Portanto, se adotarmos a tecnologia de irrigação adequada ao nosso Semi-árido, certamente teremos, nas margens do Velho Chico, cinco vezes mais capacidade de produção do que o Chile.
RS - Os reservatórios do Nordeste nunca estiveram tão vazios. Remanso reapareceu em Sobradinho e pedras brotam do leito do São Francisco em Xingó. Fala-se em situação conjuntural. Porém, a região cresceu nas últimas décadas e, com ela, o consumo de água. Para muitas pessoas, a falta de chuva apenas acelerou o problema. O que pode ser feito daqui para frente para que não tenhamos que optar entre fornecer luz ou água à população?
JS - No caso específico do Nordeste é bom frisar que, mais de 90% da energia gerada na região são oriundos do rio São Francisco. A Companhia Hidrelétrica do São Francisco, Chesf, ao longo dos últimos 60 anos, utilizou praticamente todo o potencial gerador do Velho Chico, a um custo estimado de U$ 13 bilhões, estando atualmente a região com cerca de 10 mil MW de potência instalada. Ocorre que o Nordeste, como todo o resto do país, está crescendo a uma taxa de 6% ao ano. Isso significa que a demanda energética é proporcional ao seu crescimento, havendo, portanto, a necessidade de investimentos no setor, para suprir tais ações. Não houve investimentos suficientes nos últimos anos para acompanhar o crescimento do Nordeste, o que, somado à ocorrência de secas sucessivas na bacia do São Francisco, foi o suficiente para fazer a região mergulhar na mais profunda crise energética de sua história. Atualmente, o governo federal implantou o Plano B, com adoção de feriados estratégicos, numa tentativa de serem evitados os famigerados apagões. As discussões, doravante, terão que passar, necessariamente, pela questão da geração elétrica, uma vez que o potencial gerador da região está praticamente no limite. O país, como um todo, tem uma potência instalada de 72 mil MW, dos quais 64 mil MW específicos de hidrelétricas (nossa matriz energética é calcada em hidreletricidade). Essa potência instalada irá gerar em 2001 cerca de 340.000.000 de MW/h, sendo 300.000.000 de MW/h oriundos de hidrelétricas. Se considerarmos o crescimento da demanda energética do país em cerca de 6% ao ano, em 12 anos o país terá que duplicar a sua capacidade instalada, ou seja, terá que atingir 144.000 MW, com vistas a satisfazer a sua demanda. Ao invés de serem gerados 340.000.000 de MW/h, haverá necessidade de um total de 680.000.000 MW/h, dos quais 600.000.000 MW/h produzidos por hidrelétricas. Nesse sentido há de se perguntar: estando o potencial gerador do São Francisco praticamente esgotado, onde será gerada, futuramente, a energia necessária para o desenvolvimento do Nordeste? Caso a sociedade concorde na necessidade de serem planejados os usos múltiplos das águas do São Francisco, através da elaboração de um orçamento que garanta volumes para irrigação, geração de energia, abastecimento das populações, transposição de bacias, uso industrial etc.., seria de bom termo que essa decisão fosse tomada com certa antecedência, para possibilitar, ao setor elétrico, tempo suficiente para se organizar e alterar a origem da energia. Essas medidas são indispensáveis, pois ajudarão a população a se conscientizar da importância da questão - ÁGUA - no contexto desenvolvimentista do país e, em particular, da região nordeste.
RS - Existe água suficiente na região para desenvolvê-la ou certas áreas do semi-árido estão destinadas a permanecerem como estão?
JS - Existe uma carência enorme de planejamento no uso dos recursos hídricos nordestinos. A água disponível para ser usada pela população encontra-se em três fontes principais: nos açudes, nos rios e no subsolo de regiões sedimentárias. A região cristalina nordestina tem cerca de 70 mil açudes, os quais represam algo em torno de 30 bilhões de m³ de água. É o maior volume de água represada em regiões semi-áridas do mundo. A represa Armando Ribeiro Gonçalves, no Rio Grande do Norte, que tem capacidade de acumular 2,2 bilhões de m³, sozinha teria condições de abastecer toda a população norte-rio-grandense nos próximos 20 anos. Os 28 maiores açudes do Nordeste têm capacidade de represar 12 bilhões 750 milhões de m³ de água, sendo que 30% desse volume são utilizados na irrigação e no abastecimento das populações. Os 70% restantes se evaporam. Em síntese, nós utilizamos muito mal as águas dos nossos açudes. Por outro lado, a descarga dos rios nordestinos representa uma infiltração de água nos seus aqüíferos da ordem de 58 bilhões de m³/ano, significando dizer que a extração de apenas 1/3 dessas reservas representaria potenciais suficientes para abastecer a população nordestina atual (cerca de 47 milhões de habitantes), com a taxa de 200 litros/habitante/dia, preconizada pela Organização Mundial de Saúde, e irrigar mais de 2 milhões de hectares com uma taxa de 7.000 m³/ha/ano. Isto posto, é notória a necessidade de se desenvolverem políticas capazes de fazer chegar essa água às torneiras da população. É importante que se dê seqüência ao programa de construção de açudes com a interligação de suas bacias, objetivando o melhor uso de suas águas. Tem-se que continuar investindo na perfuração de poços no sedimentário, geologia sabidamente detentora de maiores volumes e com água de boa qualidade. É imprescindível a implantação de programas de construção de cisternas rurais. Sabe-se que uma cisterna de placas com 16.000 litros é capaz de abastecer, com água de boa qualidade, uma família de 5 pessoas durante os 8 meses sem chuvas na região. E, finalmente, é importante que comecemos a incentivar projetos de reutilização de águas servidas como forma de utilizá-las para fins menos nobres, tais como, aguar jardins, lavar automóveis, dar descargas em sanitários e para alguns usos industriais. Portanto, a utilização das águas deverá ser feita numa abordagem de gerenciamento integrado - água de cisterna, de rio, de poço e de reuso de água não potável no meio urbano e no campo.
RS - Para crescer é preciso investimento. Grandes ruralistas e agroindústrias possuem dinheiro para a implantação de tecnologias que aumentam a produção. Sabe-se também o quanto é necessário distribuir terras às parcelas mais pobres da população. Contudo, o acesso aos recursos por parte dessa camada é pequeno e, quando há, esbarra nos altos juros do financiamento. É possível equacionar essa relação econômica ou, no futuro, teremos que fazer uma escolha entre progresso e sobrevivência?
JS - Sobre essas questões é de fundamental importância a criação de um programa de crédito rural que adeque a política agrícola a uma realidade regional, no qual o pequeno produtor tenha possibilidades de pagar suas dívidas com o produto gerado na sua propriedade. Mas, sobre esse assunto, somos pessimistas, pois sabemos que os políticos, de uma maneira geral, não costumam ouvir previamente os técnicos e elaboram suas políticas sem qualquer planejamento ou conhecimento de causa, só se pronunciando tardiamente para exigir sacrifícios de nosso povo já tão sacrificado. O racionamento de energia é um bom exemplo disso que estamos tratando.
RS - Se há tantos projetos, por que a situação permanece igual?
JS - Essas questões passam pela falta de seriedade com que foram conduzidas as políticas de implantação da maioria dos projetos na região. Certamente, a corrupção e o clientelismo prevaleceram em meio à demanda de projetos aprovados. A Sudene, como principal órgão desenvolvimentista da região, talvez tenha sido a principal responsável pela situação lamentável de falência em que se encontra boa parte dos projetos que receberam incentivos fiscais do governo federal o que resultou na sua extinção e na criação de uma Agência de Desenvolvimento Regional, como forma de solucionar ou mesmo de minimizar o problema. A mídia televisiva e a imprensa de um modo geral têm divulgado essas questões. Já estaria em tempo de serem elencados os projetos que deram certo na região, como forma de se divulgar os seus resultados e mostrar que existem exemplos de sucesso entre os projetos aprovados e em andamento. Sobre essas questões, também mereceria atenção do governo federal, através da criação de programas específicos, a participação do pequeno produtor, o qual sempre ficou à margem do processo produtivo, sufocado que foi pela força dos mais abonados e detentores de prestígio e de crédito no meio político e governamental.