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A polêmica transposição do rio São Francisco
João Suassuna – Pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco
05/06/2004
O sucesso na criação de tudo aquilo que se passa na imaginação das pessoas está no grau de conhecimento daquilo que elas estão pretendendo criar. Existindo o prévio conhecimento, a probabilidade de se ter sucesso na criação é enorme e, em caso negativo, o insucesso é fatal. Essa assertiva é verdadeira para os assuntos alusivos ao processo transpositório de águas do rio São Francisco, em que o sucesso estará na dependência do grau de conhecimento sobre essas questões, principalmente quanto ao ambiente natural por onde corre o rio. Ocorre que no Nordeste brasileiro, as questões pertencentes ao Velho Chico estão sendo conduzidas através de uma enorme desinformação e sem conhecimento de causa. Portanto, o projeto de transposição de parte de suas águas, a todo custo, sem um prévio conhecimento do assunto, seguramente não terá bom resultado.
No ano de 2000, fomos contactados pela Companhia Hidrelétrica do Vale do São Francisco (Chesf), para tomar conhecimento dos estudos conclusivos das questões relativas à "Inserção Regional", aos “Impactos Ambientais” e à "Viabilidade Técnico-econômica" do Projeto de Transposição de Águas do São Francisco, sob a responsabilidade do Ministério de Integração Nacional. Para tanto, a Chesf reservou uma sala especial para consulta dos documentos pelos interessados. Confessamos que ficamos, de certa forma, assustados com o que vimos. Inicialmente, espantou-nos o volume de informações que nos foi ali apresentado (são 77 relatórios que somam centenas ou talvez milhares de páginas), tornando-se impossível, naquela ocasião, a sua leitura detalhada, em curto prazo.
Nesse aspecto, não houve a preocupação das empresas contratadas para a execução dos trabalhos em elaborar um volume-síntese do conteúdo dos mesmos. Portanto, se quiséssemos ter acesso a um determinado assunto, a fim de entendê-lo melhor, tornava-se necessária a perda de um tempo precioso garimpando pilhas e mais pilhas de documentos, dando-nos a impressão de que isso havia sido pensado de forma proposital, pois o fator tempo, no estágio em que se encontrava o projeto, era um elemento estratégico para as autoridades envolvidas. Em outras palavras: na medida em que, por um lado, se perdia uma parcela significativa de tempo na tentativa de ler e avaliar melhor as questões mais relevantes existentes nos estudos, por outro, o governo ganhava espaço, agindo como rolo compressor e unilateralmente, na sua implantação.
Outro aspecto importante que nos chamou atenção foi a atuação de empresas como a ENGECORPS/HARZA, de capital estrangeiro, nas ações inerentes à viabilidade técnico-econômica do projeto, bem como a do consórcio internacional JAAKKO PÖYRY-TAHAL nos estudos de impactos ambientais. Cremos que, em assuntos relevantes como esses, que necessitam de um conhecimento profundo das questões ambientais da área de implantação do projeto, não se deva abrir concessões para atuações de empresas estrangeiras, em razão de se estar pondo em risco a nossa soberania, principalmente com relação à atuação técnica nacional. Essa preocupação procede, principalmente em um país plural como é o Brasil, detentor de uma biodiversidade extremamente variável (existem vários Brasís no território nacional) e possuidor de grupos técnicos de excelência, atuantes nas diversas áreas do conhecimento, espalhados em universidades, centros de pesquisas, companhias de desenvolvimento e em órgãos de gestão ambiental, capazes de proporcionar o apoio necessário à elaboração e realização de trabalhos dessa natureza.
Diante desse quadro, é inadmissível que, no nosso país, não se possa contar com equipes técnicas, oriundas dessas instituições, que sejam capazes de assumir e de dar conta de trabalhos como esses. Claro que nós temos e podemos fazê-lo. Talvez o que esteja faltando aos nossos dirigentes é um pouco mais de seriedade para com o tratamento das questões nacionais. É fundamental que nossos dirigentes voltem a se emocionar ao toque do hino nacional brasileiro. A leitura que fazemos acerca dessas questões é a de que esses estudos foram "encomendados" pelo governo anterior para tornar viável a transposição, sem restrições.
Dos 49 fatores de risco analisados pelo consórcio internacional, 38 apresentaram-se como negativos (existência de impactos), com previsões da extinção de algumas espécies de peixes; proliferação de piranhas; aumento da erosão com conseqüentes assoreamentos no leito do rio, sobretudo nas áreas desmatadas e nas regiões onde serão construídos os canais; redução da geração de energia (o racionamento ocorrido em 2001 foi uma prova disso) e risco de os sítios arqueológicos virem a ser danificados durante as escavações de túneis. Mesmo com a existência desses riscos ao ambiente, o projeto recebeu na época, de forma inacreditável, o parecer “ambientalmente viável”.
O lamentável de tudo isso é que as contas pagas às empresas estrangeiras, pela realização de tais estudos, foram demasiadamente caras para a nação (cerca de R$ 40 milhões, segundo Rômulo Macedo, ex-secretário de recursos hídricos do Ministério da Integração Nacional do governo Fernando Henrique), parte dela foi efetuada em dólar (evasão de divisas) e, como se isso não bastasse, às expensas do contribuinte brasileiro. Se, na fase de elaboração dos estudos, já estamos encontrando situações como essas, imaginem na fase de execução do projeto… Se a implantação, operação e manutenção das ações não forem bem conduzidas, em poucos anos poderemos ter estações de bombeamento, canais, túneis e aquedutos, verdadeiras obras fantasmas, sem a menor utilidade. Aliás, nesses maus exemplos o Brasil é um país por demais pródigo.
Apesar de uma apresentação visualmente extraordinária, contendo mapas bem elaborados, detalhados e coloridos, com gráficos, tabelas etc., alguns aspectos dos estudos, no entanto, nos chamaram atenção. Primeiramente, a existência de uma quantidade significativa de túneis (dos 77 relatórios existentes, um deles trata especificamente sobre essa questão), com um dos túneis possuindo, aproximadamente, 15 quilômetros de comprimento por 8 metros de diâmetro (o túnel Cuncas I, localizado no ramal norte). Trata-se de uma obra verdadeiramente monumental e completamente fora de propósito, se levarmos em consideração a situação de pobreza por que passa o nosso país na atualidade. Do ponto de vista de viabilidade técnico-econômica o que seria mais viável: construir o túnel com essas dimensões ou transportar a água, por intermédio de uma estação elevatória, vencendo o relevo existente?
Para esse tipo de questionamento não há respostas nos estudos. Neles, também sentimos falta de outras informações essenciais sobre as quais o povo nordestino certamente irá querer maiores esclarecimentos. Referimo-nos à efetiva destinação quantitativa das águas transpostas: para o consumo humano e animal, irrigação, uso industrial, perdas por evaporação e infiltração e possíveis perdas para o mar; os custos da transposição; as parcelas que integrarão o preço a ser pago pelos usuários (amortização do investimento e operação, incluindo bombeamento e manutenção); quem vai gerenciar a água; quem vai construir, operar e manter o empreendimento; quais as salvaguardas adotadas contra especuladores e grileiros; como será feito o abastecimento das populações residentes a poucos quilômetros dos canais; quais as defesas previstas para evitar a expulsão de pequenos proprietários e posseiros nas áreas beneficiadas pela transposição.
Para dar continuidade a obra de transposição do São Francisco, é bem provável que o governo Lula venha a aproveitar os estudos em questão. Só nos resta saber se, seguindo essa lógica de contratação de empresas estrangeiras, o governo pretende, no futuro, continuar permitindo a sua participação no projeto. Em caso positivo, só nos resta externar uma profunda indignação.
João Suassuna é engenheiro agrônomo, pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco e um dos maiores especialistas na questão hídrica nordestina.