Carnaval - Um enredo preservado pela Fundação Joaquim Nabuco em seus 75 anos
“Como guardiã da memória das manifestações da cultura brasileira, a Fundação Joaquim Nabuco comemora seus 75 anos reverenciando o Carnaval que atrai multidões e reflete a diversidade do nosso povo. E abre o ciclo do Carnaval com reflexões sobre a sua história”, destaca a presidenta Marcia Angela Aguiar.
O Carnaval é uma explosão de cores, sons e movimentos, caracterizado pela mistura de ritmos e danças que refletem a diversidade cultural do Brasil. Desde o samba das escolas do Rio de Janeiro ao frevo de Pernambuco.
Cada região contribui com seu estilo único para criar esse mosaico que é o Carnaval brasileiro. Uma festa que tem influência de culturas africanas, indígenas e europeias, com origem que remonta à Idade Média, quando os cristãos europeus celebravam o período de festa e indulgência antes da Quaresma, período de jejum e reflexão que antecede a Páscoa.
Com a colonização do Brasil, os portugueses trouxeram essa tradição, que se misturou com a riqueza cultural dos povos originários e a dos negros africanos escravizados.
Como instituição de pesquisa, educação e cultura, a Fundação Joaquim Nabuco reúne em seu acervo a memória desta festa - ritmos, danças, imagens. No próximo post, a pesquisadora doutora Rita de Cássia Barbosa de Araújo, da Coordenação-Geral de Estudos da História Brasileira (Cehibra) da Diretoria de Memória, Educação, Cultura e Arte (Dimeca) da Fundaj nos relata momentos significativos desta história.

Frevo, ferver, fevereiro
Por Rita de Cássia Barbosa de Araújo, Pesquisadora doutora da Coordenação-Geral de Estudos da História Brasileira (Cehibra) da Diretoria de Memória, Educação, Cultura e Arte (Dimeca) da Fundação Joaquim Nabuco
Sábado, 9 de fevereiro de 1929, véspera de Carnaval. Mário de Andrade, escritor modernista, crítico literário, musicólogo e folclorista, encontrava-se no Recife, cidade contemplada no roteiro de sua “viagem etnográfica” ao Nordeste do Brasil. Naquele dia, acordara bem-disposto, louco por cair na “frevolência” ou por topar com algum maracatu pelas ruas da cidade. Não encontrara nenhuma coisa nem outra. — “Noite besta”, resmungara.
Verdade que, na noite anterior, em companhia dos amigos Ascenso Ferreira, poeta, e Cícero Dias, pintor, havia experimentado o frevo no “Vassouras”, antigo clube carnavalesco popular da capital pernambucana. No domingo de Carnaval, aí sim, além de ver a saída do maracatu “Leão Coroado”, caíra “no frevo por demais”. Anos mais tarde, em 1944, ao refletir sobre o frevo e algumas danças folclóricas nacionais, o autor de “Macunaíma” se recordaria perfeitamente dessa experiência única vivida no Recife:
"O frevo, como qualquer delírio multitudinário, aceita displicente no seu bojo infinito, até um paroara como eu, que uma feita, em companhia de Cícero Dias, no único Carnaval do Recife a que já teve o direito de... de participar, de repente se viu despido de suas longinquices paulistas e ficou doido. Mas se os doidos podem ser “frevolentos” e ter suas “frevolências”, por pobreza minha não posso me considerar passista, incapaz de tesouras e dobradiças que sou."
O influente folclorista exaltava a diversidade e a beleza dos passos do frevo e a entrega dos bailarinos à força da improvisação. Sobre o frevo, dizia, era alegre, inocente, livre e, principalmente, de “uma leveza incomparável”. Concluía suas reflexões dizendo que o frevo era “a grande contribuição pernambucana para a coreografia nacional”.
Mário de Andrade registrava suas impressões sobre o frevo em plena vigência do Estado Novo, entre 1937 e 1945. Período dominado pelo Estado autoritário e centralizador, em que se acirraram os mecanismos de controle político, estético e ideológico das classes trabalhadoras urbanas e dos grupos sociais racializados. Marcado, no campo ideológico e da cultura, pela construção e afirmação de uma nova nacionalidade para a nação brasileira, com suas particularidades regionais.
No campo musical, o registro fonográfico, o rádio e o cinema sonoro concorreram para a consolidação de formas musicais urbanas que expressavam a diversidade étnica, cultural, regional e demográfica da sociedade brasileira. Artistas plásticos, cineastas e fotógrafos, profissionais e amadores, esmeravam-se em buscar apreender e expressar, a seu modo, os fugidios e desafiantes movimentos dos brincantes populares de rua, com suas indumentárias, insígnias e símbolos próprios, seus gestos e suas atitudes para com corpo e para com o sagrado e o profano em plena festa.
Em meio a esse processo, o Carnaval foi oficialmente incorporado às fileiras do Estado, passando a fazer parte das políticas públicas de cultura nas esferas nacional e estadual. O samba carioca foi elevado à condição de música tipicamente brasileira; e o frevo transformado em símbolo de identidade cultural de Pernambuco, então considerado síntese das três raças formadoras do Brasil — a negra, a branca e a indígena.
Coube à Federação Carnavalesca Pernambucana, criada em 3 de janeiro de 1935, formular as estratégias e estabelecer os mecanismos por meio dos quais poderes públicos e representantes das elites procuraram modificar práticas culturais tradicionais, disciplinar e controlar modos de organização, rituais e símbolos carnavalescos produzidos, vividos e significados pelas classes trabalhadoras urbanas e pelas populações afrodescendentes e afro-ameríndias. Urgia revestir o Carnaval de “cores pernambucanas, de espírito superior e patriótico”, dizia o edital do "nuário do Carnaval Pernambucano", espécie de porta-voz oficial da Federação. Em contexto de forte repressão e perseguição políticas, poucos se atreveram a levantar a voz e a criticar o “dirigismo cultural” do Carnaval pelo Estado e por seus representantes diretos e indiretos; “dirigismo” que, afirmavam, sufocava a espontaneidade e o processo criativo da cultura popular.
Ao longo da segunda metade do século XX, poderes públicos, políticos e intelectuais, que se afirmavam ardorosos defensores das mais puras tradições culturais populares, posicionaram-se a favor das manifestações culturais por eles vistas como legítimas e autenticamente pernambucanas, dentre as quais o frevo, o maracatu nação, o caboclinho, o boi, o urso e o maracatu de orquestra; e contra o que consideravam práticas culturais alienígenas e ameaçadoras às mais caras expressões culturais regionais e locais, a exemplo do samba carioca e do “axé music”. De igual modo, mostravam-se avessos à massificação da cultura e à espetacularização da festa carnavalesca, exemplarmente representada, no caso do Recife, pela passarela e pelos desfiles das agremiações carnavalescas populares nas avenidas.
Nesse terceiro milênio, as determinações oriundas do mundo da mercadoria, fortalecidas, intencionalmente ou não, por certas políticas públicas de cultura, impactam fortemente o Carnaval, influenciando a dinâmica cultural da festa em todo o país. Em Pernambuco, no Recife em particular, o confronto se estabelece principalmente entre o palco, com os grandes shows midiáticos que nele têm curso e ganham visibilidade, e o chão áspero por onde transitam as agremiações carnavalescas, cujas cores e brilhos não escondem as dificuldades crescentes que enfrentam para sustentar-se e manter salvaguardadas as expressões carnavalescas populares e tradicionais.
Tensões e conflitos emergem também entre o direito da comunidade à festa e à cidade, e as tentativas de apropriação, valorização e ressignificação do espaço público urbano pelo capital privado, representado pelas grandes empresas de bebidas alcoólicas, de comunicação de massa e pelas chamadas “bets”, de existência recente no país. Domingo, 9 de fevereiro. Vamos sair por aí, como fez Mário de Andrade há quase cem anos, em busca da alegria, das máscaras, do frevo, do maracatu, do caboclinho, do urso, do boi, do samba, do brega...
Carnavá taí
Vamo vadiá
Vamo vadiá, se a polícia não atrapaiá
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Frevo: melodias, passos e poesias
Por Miguel Colaço Bittencourt, Antropólogo e assistente técnico da Coordenação-Geral de Estudos da História Brasileira (Cehibra) da Diretoria de Memória, Educação, Cultura e Arte (Dimeca) da Fundação Joaquim Nabuco
O frevo é uma tradição de impacto na cultura pernambucana, nordestina e do Brasil. “Frevar” é uma expressão rotineira do carnaval que reúne um conjunto artístico de música, dança, poesia, encontro, tradição e festa. O frevo é mais do que um passo, uma nota ou uma palavra e está presente na história da construção de Pernambuco e no cotidiano da cidade do Recife, Olinda, Paudalho, Vitória Nazaré da Mata e demais, sendo na festa dos carnavais o momento em que se vive a maior efervescência cultural desta tradição.
O gênero musical surgiu no final do século XIX com a junção dos elementos das matrizes indígenas, africanas e europeias, desenvolvendo com o passar dos anos uma característica de símbolo original de regionalidade e nacionalidade. É na reorganização das estruturas sociais pelas camadas populares, misturando elementos da marcha, maxixe, capoeira, polka, mazurca, dobrado e ritmos binários que surgiu o frevo com metais de ataque e letras líricas. Devido à sua importância sócio-histórica e artística, no ano de 2007, foi considerado Patrimônio Cultural Imaterial Brasileiro pelo Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Depois, no ano de 2012, o frevo foi intitulado como Patrimônio Cultural da Humanidade pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco).
A comunidade do frevo agrega músicos, passistas, poetas, apreciadores das artes e o público de modo geral. É possível afirmar que o frevo é vivido durante todo o ano pelos grupos sociais e oralidade dos mestres (detentores do saber cultural) que interagem com os processos de aprendizagem das composições, melodias, ritmos e contos desta tradição dos festejos populares das cidades. Alguns personagens pioneiros são: Levino Ferreira, Nelson Ferreira, José Gonçalves (Zumba), Guerra Peixe, Capiba, José Menezes, Maestro Duda, Edgard Moraes, entre outros.
O Centro de Documentação e de Estudos da História Brasileira (Cehibra), da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj), preserva um valioso acervo sonoro e musicográfico. A Sala da Fonoteca conserva bens culturais como: discos, CD´s e partituras, que mantêm viva a memória e o conteúdo produzido pelos maestros, arranjadores e músicos.
Breves composições e bens do maestro José Menezes
O Cehibra detém um importante material do maestro e compositor José Menezes (1923 - 2013), que, nascido em Nazaré da Mata/ PE, em uma família de músicos, iniciou seus estudos musicais ainda jovem na banda Revoltosa. Já aos 12 anos, tocava trompa no carnaval da Zona da Mata, aperfeiçoando-se futuramente no Conservatório Pernambucano de Música (CPM) e nas convivências musicais. Maestro de carreira promissora, integrou no ano de 1943 a Jazz Band Academia de Pernambuco, depois, em 1949, recebeu o convite do maestro Nelson Ferreira para participar da Orquestra da Rádio Clube. José Menezes também atuou como regente e arranjador, no ano de 1954, em São Paulo, na Rádio e TV Tupi. De volta ao Recife, em 1961, foi diretor musical da Rádio Clube. Posteriormente, ele criou a Orquestra José Menezes, que celebrou vários carnavais. Também foi um dos fundadores da Academia Pernambucana de Música, criada em 1985, sendo um dos grandes nomes nacionais do frevo.
No ano de 1950, José Menezes escreve o seu primeiro frevo intitulado - Freio a Óleo, gravado em discos RCA Victor. Após 50 anos da criação desta música, o compositor foi o homenageado do Carnaval do Recife no ano 2000, com o Carnaval José Menezes. Outras composições e partituras também integram o repertório e parcerias de J. Menezes, como: Boneca (1953), Baba de Moça (1953), Toada da Saudade (1958), Terceiro Dia (1961) e Galo da Madrugada (1982), que se tornaram referências no repertório popular, revelando-se como um dos compositores de frevo com um significativo número de músicas gravadas ao lado de Capiba e Nelson Ferreira.
Os arranjos e discos de J. Menezes foram marcos fonográficos na música popular brasileira. Na década de 70, o maestro elabora para a gravadora Rozenblit o álbum - O Frevo Vivo de Levino. Após o sucesso desta gravação, em 1977, pela gravadora Philips, o compositor faz a seleção do repertório do vinil - Antologia do Frevo - com 36 composições, que, segundo as informações do disco, busca detalhar as nuances dos estilos do frevo de rua (executado por orquestra sem letra cantada), frevo canção (música cantada derivada da ária) e frevo de bloco (executada por orquestras de pau e corda com violões, banjos, bandolins, baixo, violinos, cavaquinhos e etc). Logo, escutar esta antologia e os demais frevos é se encontrar com a sensação de entrar e estar no Reino do Carnaval.
Vamos aproveitar a festividade dos Carnavais para conhecer o frevo e os repertórios que ilustram momentos de festa, brincadeira e alegria. Pois, ser feliz também é um ato de memória e preservação das melodias, passos coreográficos e poesias, por isso, vamos “ferver” ao som das orquestras!
Acesse o acervo do Fundaj pelo link: Terminal - Acervo
Para outras informações, visite a Villa Digital na Rua Dois Irmãos, nº 92, Apipucos, Recife, Pernambuco, Brasil. Contato: villa.digital@fundaj.gov.br
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Claudionor Germano
Por Walter Andrade, antropólogo e Assistente Técnico Administrativo da Coordenação-Geral de Estudos da História Brasileira (Cehibra) da Diretoria de Memória, Educação, Cultura e Arte (Dimeca) da Fundação Joaquim Nabuco
Ao som dos clarins, sax, trombones, tubas e caixas, o frevo rasga as ruas e toma conta dos corpos de quem está por perto, especialmente dos pernambucanos, que já nascem com o sangue fervendo. Durante o carnaval, os frevos são cantados pelos foliões nas ruas, ladeiras e pelos blocos líricos, são inúmeros intérpretes marcantes. No entanto, apenas um deles é chamado pela alcunha de “A Voz do Frevo”. Nascido no Recife, no dia 19 de abril de 1932, Claudionor Germano da Hora, filho de Severina da Hora e José Germano da Hora, iniciou sua trajetória musical como cantor romântico e interpretando diversos gêneros, mas foram os frevos que lhe ajudaram a construir essa história sem igual.
Em época de profusão dos conjuntos vocais, ele integrou o grupo Os Diabos Verdes e também o famoso conjunto Ases do Ritmo. Integrou orquestras, animou bailes e participou de diversos discos. Foi pela Fábrica Rozenblit que Claudionor gravou a canção “Boneca”, de autoria do maestro José Menezes e Aldemar Paiva. O lado B desse disco emblemático conta com a música “Come e Dorme”, de Nelson Ferreira, maestro com quem o cantor trabalhou como integrante da Orquestra. Esse disco em questão é relevante também por ter sido o primeiro a estampar o selo da lendária fábrica nordestina, importantíssima para a história da música brasileira.
Claudionor ainda gravou outros artistas consagrados. Só do “Velho Capiba”, como carinhosamente ele chamava o maestro, foram mais de 100 músicas. Foi, inclusive, em um disco em homenagem ao mestre — Capiba 25 Anos de Frevo — e a outro grande personagem, Nelson Ferreira — O Que Eu Fiz e Você Gostou — que a carreira de Claudionor Germano ganhou grande projeção. Graças a esses trabalhos, ele emplacou seus primeiros sucessos nas paradas musicais da época e ganhou notoriedade local e depois nacional.
Em 1947, ele começou a trabalhar na Rádio Clube de Pernambuco. Passou ainda pela Rádio Tamandaré, transferindo-se para a Rádio Jornal do Commercio em seguida, chegando também a participar de programas televisivos do grupo de comunicação. Com o passar do tempo, Claudionor conseguiu conquistar seu espaço como grande intérprete de frevos, criando sua própria identidade musical e sendo considerado um dos principais intérpretes do gênero.
Em 1980, em um momento de mudanças sociais e diminuição do fôlego dos carnavais de rua, o cantor participou da primeira Frevioca, um caminhão com um potente sistema de som elétrico para as orquestras e intérpretes, percorrendo um circuito pelas ruas do centro do Recife. Idealizado por Leonardo Dantas, à época, diretor da Fundação de Cultura Cidade do Recife, instituição na qual Claudionor Germano também trabalhou, o projeto foi uma tentativa de reavivar os carnavais de rua.
Outro episódio marcante na história de vida do cantor foi descrito em sua biografia, escrita por José Teles. Durante a ditadura militar de 1964, Abelardo da Hora, seu irmão, foi preso na Casa de Detenção do Recife - atual Casa da Cultura. Sabendo da saudade que sentia da música, Claudionor foi até lá com um violonista e, da rua mesmo, cantou algumas canções para ele, até que o guarda ordenasse o fim.
Além da sua longeva carreira artística, Claudionor “se virou” de outras formas em momentos mais difíceis de sua vida. Ele foi vendedor das obras de arte de Abelardo da Hora, teve uma empresa de exportação de lagosta junto com o irmão e o sobrinho (TELES, 2017), foi representante de uma empresa de bebidas e atuou em cargos públicos.
A história dele se mistura com a do carnaval, da rádio, da TV, e com os fãs do frevo que tiveram e ainda têm a sorte de ouvir Claudionor Germano. Com uma trajetória musical ímpar e tão longeva, animando os foliões através dos seus discos, dos bailes municipais e dos carnavais, Claudionor Germano contribuiu significativamente para a nossa cultura e para consolidação do frevo, fato reconhecidamente comprovado com o seu título de Patrimônio Vivo de Pernambuco.
Ao longo desses anos ele emprestou sua voz para várias músicas memoráveis como: “A mesma Rosa Amarela”, “Elefante de Olinda” e “Último regresso”. Em uma delas, escrita por Capiba, Claudionor canta o seguinte: “eu danço o frevo e forró, danço até maracatu. Neste frevo bom, só faltava tu!”. E é com esse convite do Bom do Carnaval que abrimos as portas para a folia de 2025.
A Fonoteca da Fundação Joaquim Nabuco possui um vasto acervo, incluindo diversos discos citados ao longo do texto, para consultar o nosso acervo, acesse o link: Terminal - Acervo.
Para mais informações, visite a Villa Digital na Rua Dois Irmãos, nº 92, Apipucos, Recife/Pernambuco, Brasil. Contato: villa.digital@fundaj.gov.br
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Ursos de Carnaval: brincadeira é coisa séria
Por Rita de Cássia Barbosa de Araújo, Pesquisadora doutora da Coordenação-Geral de Estudos da História Brasileira (Cehibra) da Diretoria de Memória, Educação, Cultura e Arte (Dimeca) da Fundação Joaquim Nabuco
Ele vem chegando de mansinho, pé ante pé. Traz o rosto encoberto por uma máscara de estopa, pelúcia, lã, agave ou papel marchê. O disfarce esconde-lhe todo o corpo, mãos e pés inclusive. — Quem é ele? Ninguém o reconhece. Só se sabe que, mais que uma pessoa mascarada, é um urso de Carnaval fazendo travessuras na folia de Momo de Pernambuco.
Os ursos de Carnaval, também conhecidos por La Ursa, uma das manifestações culturais desse estado da federação, exibem-se em público com músicas, danças, representações dramáticas, artes, saberes e fazeres, singularizando-se sobretudo por seu aspecto lúdico. Distribuídos por quase todo território pernambucano, apresentam variações nas suas composições artísticas e estéticas, seus sentidos, significados e rituais, de acordo com as suas localizações geográficas e os grupos portadores.
Há registro documental sobre a presença da figura do urso nas manifestações festivas, ocorridas no espaço público recifense, nas primeiras décadas do século XIX. O francês Tollenare anotou em seu diário de viagem haver assistido, em 1817, a uma dança em que um homem e uma mulher representavam a concupiscência ora do macaco ora a do urso. Acrescenta ainda que, entre eles, havia um “caçador”, de espingarda na mão, que brincava ao redor dos dançarinos. Esse testemunho foi recuperado pelo historiador e estudioso do folclore pernambucano, Pereira Costa, no nas primeiras décadas do século passado, que logo o interpretou e o classificou como “danças africanas lascivas”.
Relatos escritos e orais costumam atribuir a origem do urso nas brincadeiras de Carnaval do Recife e da Região Metropolitana aos imigrantes italianos e aos ciganos, que apresentavam quadros artísticos e bem-humorados nos circos e nas ruas, visando ganhar algum trocado. Nessas exibições públicas, a presença de uma pessoa travestida de urso e do italiano ou domador eram certas. A antropóloga estadunidense Katarina Real, que pesquisou o Carnaval do Recife na década de 1960, diz haver tido uma memorável e inspiradora experiência ao deparar-se, casualmente, com o Urso Aliado, no bairro popular de Afogados, no ano de 1961. A agremiação fazia suas brincadeiras por entre os “mocambos paupérrimos” do lugar, cantando:
“Viemos da Itália
Não trouxemos roupa
Trouxemos este urso
Enrolado na estopa”.
A inclusão dos ursos de Carnaval na lista das agremiações oficialmente reconhecidas pela Federação Carnavalesca Pernambucana, nas décadas de 1930 e 1940, consolidou uma determinada performance desses grupos. Além das figuras do urso, do italiano ou domador, e a do caçador, trazem o porta-cartaz, que expõe o nome do grupo, podendo ou não apresentar ainda as “damas de frente”, baliza, malabarista e os cordões de dançarinos. Exibem-se acompanhados por uma orquestra, na qual a sanfona, intimamente ligada à Itália no imaginário popular, é indispensável. Além desse instrumento característico, as orquestras compõem-se de triângulo, bombo ou zabumba, reco-reco, pandeiros e tamborins; as mais elaboradas podendo trazer ainda cavaquinho, violão, surdo e tarol. Há, no entanto, grupos de La Ursa que se constituem e se apresentam de forma mais espontânea, sem estar vinculados a essas memórias coletivas e sem atender a esses requisitos.
Muitos ursos de Carnaval trazem a marca da irreverência, da malícia, do impulso por romper com certos padrões culturais ou sociais estabelecidos. Diversas agremiações possuem suas denominações baseadas em situações risíveis ou veem a figura do urso como estereótipo do homem traidor e infiel, cobiçador da mulher alheia. Dentre esses, destacam-se o Urso Pé de Lá, o Urso da Tua Mãe, o Urso do Vizinho, o Língua de Ouro, o Urso do Ovão, e os de existência mais recente, o Traíra e o Boa Pinta, que fazem a alegria da moçada no Poço da Panela.
Um aspecto importante, dentre outros, que permeia e mesmo estrutura os ursos de Carnaval, e que cabe destacar neste brevíssimo ensaio, é a presença da religiosidade em muitos grupos, sobretudo de matriz afro-brasileira e afro-ameríndia. Pesquisa de campo realizada por especialistas, entre os anos 2016 e 2017, com vistas à elaboração do inventário sobre essa forma de expressão cultural, evidencia o vínculo de diversos ursos de Carnaval e de suas lideranças com o sagrado.
O Dossiê Ursos de Carnaval de Pernambuco registra várias narrativas dessas lideranças nas quais emergem a força da Jurema Sagrada, da Umbanda, do Candomblé e mesmo do Catolicismo entre essas agremiações. A religiosidade presente nesses e em outros tipos de agremiações carnavalescas revela-se, assim, forte elemento estruturador desses grupos organizados, sendo grandemente responsáveis por dotar de sentido a brincadeira carnavalesca e por assegurar a continuidade da tradição.
Os ursos de Carnaval estão a reclamar maiores atenções dos poderes públicos, como também a merecer registros documentais sistemáticos e estudos que contribuam para o conhecimento sobre essa forma de expressão cultural e, principalmente, que venham a contribuir com a sua preservação e vitalidade. No acervo do Centro de Documentação e de Estudos da História Brasileira (Cehibra), o pesquisador interessado encontra não apenas registros fotográficos, a exemplo da mostra aqui expostas, como também registros publicados na imprensa e documentos sonoros, fonográficos e bibliográficos.