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Por Cibele Barbosa
Historiadora e pesquisadora da Fundação Joaquim Nabuco
Gilberto Freyre foi um dos intelectuais brasileiros mais conhecidos na cena internacional e nacional do século passado. Em 1948, ele foi chamado pela Unesco para fazer parte de uma reunião com oito estudiosos do mundo todo para discutir as tensões que levavam os países a entrarem em guerras. Sentou-se ao lado do célebre teórico Max Horkheimer. O autor de Casa-grande & senzala foi um dos poucos pensadores brasileiros, assim como Josué de Castro, a falar sobre questões que afligiam o planeta e não apenas temas relacionados ao Brasil. Para chegar até aí, Freyre percorreu um longo caminho, mas o que mais pesou foi a fama que angariou com seu livro Casa-grande e senzala, publicado quase vinte anos antes (1933).
Ao longo de sua trajetória, e em razão de escolhas políticas controversas e posições polêmicas, ou da insistência em dizer que o racismo, embora existisse, não era um problema central no Brasil, isso pelos idos na segunda metade do século 20, quando já existiam vários estudos provando o contrário, Freyre se tornou persona non grata em muitos círculos intelectuais. Mas quem se interessar um pouco mais em estudar o Brasil sabe que Freyre pautou muitas das discussões sobre a nação e seus problemas centrais, como modernização, relações raciais (esse o ponto mais polêmico), região, ecologia etc.
Sabe também que uma obra tão vasta, como Casa-grande & senzala, traduzida em diferentes países e com dezenas de edições no Brasil não pode ser resumida a chavões ou um breve parágrafo ou comentário. Não dá para entender o Brasil, com suas contradições, seus problemas e suas ficções sem passar pela leitura de Gilberto Freyre, inclusive o autor sendo parte dessas contradições que formam o Brasil. O fato é que Freyre ficou famoso ainda jovem, por volta dos seus 30 anos, quando publicou Casa-grande e senzala, depois Sobrados e Mucambos(1936) e, mais tarde, Ordem e Progresso (1957), fechando uma trilogia sobre a História da sociedade patriarcal no Brasil.
Escreveu, porém, muitas outras obras, dezenas, aliás, sobre arte, sobre medicina, sobre região, sobre moda, sobre Brasília, sobre arquitetura, sobre açúcar, sobre castigos físicos, sobre pós-modernidade e outra outros temas, incluindo a escrita de romances. Mas foi seu livro de 1933 que conquistou o mundo e abalou o meio intelectual brasileiro. Em seu texto de mais de duzentas páginas, com um modelo de escrita muito próprio e original para a época e ainda para os dias de hoje, logo chamou atenção e criou rebuliço. Primeiro por tocar em pontos sensíveis da história nacional, até então um emaranhado de textos que destacavam feitos heróicos, guerras, batalhas e documentos oficiais.
Freyre, ao contrário, buscou escrever uma história pautada em elementos da cultura material, sobre a vida social nas casas-grandes patriarcais dos tempos coloniais. Uma história que transformou situações e fontes históricas aparentemente sem relevância para os historiadores, como receitas de bolo, brinquedos, manifestações da cultura popular, danças, cantigas, diários pessoais , em peças centrais para entender a formação do Brasil, Freyre escreveu sobre sexo, violência, comida, festejos, cantigas, torturas, vestimentas e outros tantos elementos para retratar o Brasil profundo, íntimo, antagônico, das casas senhoriais, e mais especificamente o Nordeste, porque foi nesta região (na época ainda chamada de Norte) que se concentrou grande parte da economia e política dos primeiros séculos da colonização.
Além da escrita e dos temas “escandalosos” sobre o qual tratou como troca de casais entre senhores e sinhás, das violências das senhoras com as escravizadas, foi um aspecto, em especial, que abriu os olhos dos seus pares intelectuais e o alavancou como figura de proa da intelectualidade brasileira entre os anos de 1930 e 1950: o fato de tentar, com as ferramentas intelectuais que dispunha, usando o léxico da época, mostrar que o maior trunfo do Brasil em relação à Europa (tão ovacionada por seus pares como centro da civilização na Belle Époque), ou aos Estados Unidos, era o fato de sermos um país miscigenado e principiante por termos a presença africana nessa mistura. Se hoje sabemos que não há uma só pessoa no mundo que não seja “mestiça”, na época era comum se falar em raças puras para dizer que um povo era superior a outro e, no Brasil, esse critério estava pautado na cor da pele. Para muitos intelectuais, estrangeiros e brasileiros, o Brasil estaria fadado ao fracasso por conter na genética de seus cidadãos, o sangue negro e indígena. Freyre pensava exatamente o contrário.
Nos séculos anteriores (séculos 18 e 19) e até meados do 20, as pessoas enchiam a boca para dizer que os brancos tinham genérica superior, eram mais “civilizados” e outras asneiras. Esses e outros ditos racistas eram em parte aceitos nas instituições políticas e acadêmicas e por isso rotulamos esse tempo como o período do “racismo científico”. Muitos escritores e intelectuais defendiam essas ideias supremacistas e deterministas que foram postas abaixo em meados do século 20.
O sociólogo Oliveira Viana, ao escrever sobre as “populações meridionais” afirmava que os negros tinham tendência a várias doenças, infertilidade etc. Tudo isso seria suspostamente causado por uma falibilidade genética. Longe dele dizer que a causa das doenças e mazelas que afligiam a população pobre e afrodescendente das cidades e do campo eram as condições sociais a que estavam submetidos. O lócus do progresso, ali no início do século 20, diziam, era o Sul e Sudeste, em especial São Paulo, que estava recebendo milhares de imigrantes europeus. Para intelectuais como Viana, a mistura com imigrantes até seria boa porque “branquearia a população”. Esse tipo de tese colocava o Nordeste (o grande Norte) como lugar do atraso: uma população mestiça majoritariamente com ascendência negra e indígena, de clima tropical. Freyre, que havia chegado dos EUA há pouco tempo e estudado com o antropólogo Franz Boas, opunha-se a Viana e tinha uma outra visão da mestiçagem: ela não seria nosso fator de degeneração e muito menos seria o meio de nos branquear. Pelo contrário, ela ofertaria o melhor de diferentes povos, ou seja, herdaríamos as qualidades das “três raças”. Freyre afirmava que isso nos tornaria um povo exemplar porque tínhamos as contribuições de diferentes culturas impressas na nossa formação.
De cara, Freyre estava rebatendo a ideia de que havia raças superiores e de que as qualidades dos indivíduos estariam ligadas à sua biologia. Na introdução de Casa-grande senzala afirma: “Aprendi a considerar fundamental a diferença entre raça e cultura, a discriminar entre os efeitos de herança puramente genética e os de influências sociais.” O jovem autor pernambucano não foi o primeiro a dizer isso, mas dizer isso naquela época, no Brasil, era algo disruptivo, progressista mesmo. As pessoas não eram determinadas em seus feitos, conquistas e comportamentos pela biologia, mas
pelas condições sociais e culturais a que estavam submetidas.
Os problemas enfrentados pelas populações mestiças, afrodescendentes e indígenas, não eram devido à sua raça, mas aos descasos que sofriam, principalmente em razão da herança escravocrata. Quando organizou o Primeiro Congresso afro-brasileiro em 1934, Freyre estava enviando uma “indireta” para seus colegas brancos que olhavam de modo enviesado para religiões de matriz africana ou achavam que a música e a cultura africana eram inferiores. Para esses outros, bom mesmo era o que vinha da Europa: era essa a tônica que permeou o período da chamada Belle Époque. Como
Freyre bem mostrou na obra Sobrados e Mucambos, a arquitetura, a alimentação, tudo que vinha de fora, dos franceses e ingleses em especial, era abraçado, valorizado e copiado no Brasil por suas elites, mesmo que não fossem viáveis para nosso clima e nossos hábitos. Era sobre o preconceito à cultura de matriz africana que Freyre se referia.
Quando falou sobre o I Congresso afro-brasileiro que estava organizando, afirmou que aquele evento seria uma forma de combater o preconceito. No evento houve participação de pais e mães de santo em um tempo que as religiões de matriz africana estavam sofrendo ameaças e perseguições. Nesse sentido, Freyre focou na valorização das populações negras pela via da cultura sem adentrar, porém, nos pontos nevrálgicos da discussão sobre as desigualdades raciais brasileiras. Essa e outras questões foram a razão para a acirramento dos debates, no final dos anos 1940 e nos anos 1950 com autores como Abdias do Nascimento e, mais adiante, Florestan Fernandes e outros. Os debates sobre a crença de Freyre de que o Brasil era uma democracia racial é apenas um dos vários aspectos ligados à vida e principalmente obra do autor. Intelectual público, contraditório e polêmico em muitas de suas posições, inclusive em adesões políticas, pautou debates e frentes de estudo, abriu temas e abordagens, alguns já refutados outros ainda bem atuais.
Freyre discutiu meio-ambiente, sexualidade, alimentação, arquitetura, biografias, infância etc. Mas sem dúvida, a questão da democracia racial foi um tema tão popularizado, criticado e debatido (e não sem razão) que, por outro lado, muito se esquece do tanto que ele produziu e contribuiu para a cena intelectual brasileira em vários outros campos: da história cultural à antropologia do corpo. Além do grande leque de variedade nos seus trabalhos, consultar as obras de Freyre é poder ler um dos escritores mais criativos do país. Só pela qualidade literária dos muitos dos seus textos já vale a leitura. Quer se goste ou não de suas obras ou se concorde ou não com suas ideias, conhecer a trajetória de Freyre e ler os seus escritos são elementos.