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Antropóloga Janice Perlman volta ao Cabo de Santo Agostinho após cinco décadas para realizar pesquisa pela Fundaj-Fulbright
Em 1965, a jovem estudante de Antropologia Janice Perlman esteve no Brasil com um grupo de universitários locais e estadunidenses, todos muito entusiasmados com a oportunidade que se apresentava, após a renúncia de Jânio Quadros, de se construir um modelo de desenvolvimento próprio para o país. Juntos, eles tinham a missão de imaginar um sistema “ideal”, com mais justiça, inclusão e participação social. O programa do qual participavam, guiado, no Recife, por lideranças religiosas como Dom Helder Câmara, estava previsto para iniciar em meados de 1964, mas precisou ser adiado pelo cenário político que se apresentava naquele ano. Foi durante essa jornada internacional que a norte-americana, graduanda na Cornell University, em Nova Iorque, visitou as comunidades de Pontezinha e Ponte dos Carvalhos, no Cabo de Santo Agostinho, Região Metropolitana do Recife.
Quase 60 anos depois, Janice Perlman está de volta a essas localidades para conduzir um estudo sobre as mudanças urbanas ocorridas nas últimas décadas sob a visão dos próprios moradores. A pesquisa da Doutora em Political Science and Urban Studies pelo MIT (Massachusetts Institute of Technology) acontece em parceria com a Fundação Joaquim Nabuco através do convênio com o programa Fulbright, em vigor há cinco anos.
“Em 65, fizemos passeata com Dom Helder e com os pescadores da região para proteger o rio, o meio ambiente e a vida dos jovens e crianças que estavam morrendo pelos tóxicos jogados na água. Essa é a primeira pesquisa que faço nesses dois lugares, mas sempre os guardei com muito carinho no coração”, conta a antropóloga.
Quando soube da linha de colaboração da Fundaj com a Fullbright, cujo objetivo é consolidar pesquisas relacionadas à gestão pública e ao enfrentamento de desafios sociais, Janice ficou fascinada com a possiblidade de voltar ao Recife e observar como a expansão da região metropolitana, associada às mudanças na economia local, afetaram a qualidade de vida da população dos dois bairros ribeirinhos.
A proposta da antropóloga é a de analisar se a incorporação do território estudado à área metropolitana e o surgimento de indústrias, área portuária e novo turismo trouxeram mais oportunidades para os moradores. Na Fundaj, a proposta foi acolhida pela coordenadora-geral do Centro de Estudos em Dinâmicas Sociais e Territoriais (Cedist) da Fundaj, Alexandrina Sobreira, parceira de Janice no estudo. “Agradeço muito à Fundaj por terem me recebido com tanto carinho. Abriram todas as portas e facilitaram toda a experiência. Estar aqui fazendo essa pesquisa não seria possível sem Alexandrina, que é minha companheira, minha contrapartida, minha grande amiga”, celebra Janice, que esteve reunida com o presidente da Fundaj, Antônio Campos.
Este não é o primeiro trabalho que a norte-americana conduz no Brasil. Ela é reconhecida mundialmente por seu trabalho contínuo sobre a formação das favelas. Desde 1976, publica obras relevantes, como “O Mito da Marginalidade”, que contesta os estereótipos sobre a pobreza urbana do mundo. Em 2010, publicou "Favela: Quatro Décadas de Transformações no Rio de Janeiro", onde revisita as favelas cariocas e entrevista residentes antigos que ela conheceu em 1968, assim como seus filhos e netos, e oferece uma perspectiva única de longo prazo sobre as transformações nessas comunidades.
PESQUISA
Ao tentar captar o que piorou e o que melhorou nas últimas décadas para os moradores, Janice mergulha no dia a dia das comunidades para conduzir suas entrevistas e coleta de dados. A pesquisa de campo, que começou em 2020 e interrompida com a pandemia, é guiada pela perspectiva antropológica da pesquisadora. “Eu sempre converso com as pessoas mais vulneráveis, ando muito nas comunidades e entrevisto quem possa me ajudar a entender as minhas perguntas e tirar as dúvidas. Posso chamar essa de uma pesquisa exploratória”, explica Janice sobre a sua metodologia.
Em suas visitas a Pontezinha e a Ponte dos Carvalhos, a antropóloga trabalha em parceria com funcionários de órgãos de assistência social atuantes na região, como os CRAS (Centro de Referência de Assistência Social). “Admiro muito a dedicação das pessoas e sinto muito a falta de continuidade por causa da mudança do quadro profissional, técnico, com as mudanças de governo. Trabalhando com favelas, leva-se dois anos ou mais para conseguir conquistar a confiança das pessoas, para uma mãe dizer que seu filho usa drogas, sua filha engravidou com 14 anos. Quando se chega nesse nível de confiança, para ser útil e eficaz, as pessoas já não estão mais naquela casa”, revela a antropóloga sobre os desafios da implementação de políticas públicas.
Primeira fellow do programa Fulbright-Fundaj, Janice enxerga suas análises na região por três aspectos centrais: relações no campo do trabalho, mudanças econômicas e transformações ecológicas. Ela relata que em 1965, quando conheceu essas comunidades, as dinâmicas relacionadas à cultura da cana-de-açúcar ainda eram muito presentes. “Essa mentalidade da cana-de-açúcar, de atuar quase como escravidão, estava replicada na antiga fábrica de pólvora de Pontezinha, que oferecia um salário maior, mas um risco muito maior também. Muitos moradores trabalhavam nessa fábrica, que tratava as pessoas como descartáveis. Os trabalhadores não ganhavam dinheiro, ganhavam tickets com os quais podiam comprar comida na loja controlada pelo dono da fábrica”, explica. “Quando as pessoas criticam Suape e os seus danos ao meio ambiente, além das várias pessoas que eles tinham que expulsar, eu acho que tem uma coisa paralela”, complementa a antropóloga.
A fábrica de pólvora deixou uma marca aberta em Pontezinha, com um terreno imenso que segue desocupado e muitas mulheres que perderam maridos, pais e irmãos nas explosões dessa fábrica, mas a comunidade, assim como Ponte dos Carvalhos, viu chegar à região várias outras indústrias que acabaram não tendo o sucesso esperado. “Foi um boom. Muitas pessoas ganharam emprego e dinheiro e depois esse boom acabou. As pessoas estão aguardando ele retornar”, conta Janice. As transformações ambientais também são marcantes, segundo a pesquisadora. “Era um lugar maravilhoso, cheio de pesca e acesso à água, e agora quase não há acesso ao rio. O espaço verde quase sumiu”, conta.
A pesquisa, inicialmente, culminará em um relatório que pretende contar a história dessas grandes mudanças, como elas foram vistas pelos moradores, e quais são as influências dos setores público e privado nesses processos. Estudos de caso e entrevistas também vão compor os materiais. “Vai ser um primeiro olhar num sujeito muito grande, que tem influência de vários fatores, incluindo o da religião, dessa igreja que trabalhava com o povo, com a comunidade. Eles (os moradores) falam muito das associações de moradores que não tem mais poder, por exemplo”, comenta a antropóloga.
MUDANÇAS
No longo prazo, Janice pontua que, com o final do governo militar e a Constituição de 88, passos largos foram dados rumo a uma sociedade mais participativa e inclusiva. “O direito à cidade e à moradia, assim como os sistemas de saúde e de educação, melhoraram muito. Nesse sentido se vê muito progresso. Temos entrevistado as pessoas da assistência social no Cabo, temos visitado os CRAS, e é muito impressionante. Pessoas altamente qualificadas visitando as casas uma por uma, oferecendo uma diversidade de oportunidades e programas”, comemora.
Contudo, a construção de uma sociedade ideal, como buscava quando era estudante universitária, não se concretizou. “Não tivemos, em nenhuma parte do mundo, de 1965 a 2022, países que atingiram esses ideais. Avançamos muito, desde o final da ditadura no Brasil, no tratamento de pessoas pobres de diferentes raças. Infelizmente, nesses últimos anos, o mundo todo parece estar na outra parte parte do pêndulo, voltando para uma mentalidade bem mais fechada, mais baseada em medo e não na esperança”, analisa.
No contexto local, Janice relata que os moradores de Pontezinha e Ponte dos Carvalhos também percebem mudanças na educação e na saúde. “O tratamento ginecológico da mulher, a oportunidade de saber como se preparar o parto, jamais ia estar disponível em 65. Muitas mulheres morreram no parto”, compara a antropóloga. O nível de consumo é outra diferença que impacta na qualidade de vida da população, mas o crescimento da violência foi um aspecto negativo que acelerou bastante para a pesquisadora. “Muito parecido com as favelas, o que piorou foi o grau de violência. Viver com medo, ficar mais dentro de casa”, comenta.
Algo marcante para Janice em sua análise comparativa é o esfacelamento do senso de comunidade. “Falta solidariedade”, afirma. A pesquisadora avalia que antigamente a lutava junto por água, pela iluminação nas ruas, pavimento, eletricidade. “Agora é muito mais individual”, revela. Ela atribui esse movimento à falta de uma corrente católica que atuava fortemente nas comunidades. Cita Padre Geraldo, que era discípulo de Dom Helder e também trabalhou muito com Miguel Arraes, como um incentivador para as pessoas nas comunidades se sentirem empoderadas.
“O padre incentivava que se sentissem que podem decidir e fazer coisas coletivamente, sem receber ordens de alto nível. Isso marcou muito essas comunidades e, depois dessa época, veio outra linha da igreja católica e de evangélicos que não estão apoiando as pessoas a atuar e pensar coletivamente, conscientizá-las sobre seus direitos, capacidades e valores. Meu trabalho agora vai ser sempre sobre a temática de quem recebe o direito de ser tratado como gente e de quem é tratado como descartável”, pontua a pesquisadora