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Festival Movimento Cidade
Ê tem jangada no mar / Ê eiê hoje tem arrastão
Tem Festival Movimento Cidade, um acontecimento, um movimento conectado às tendências, às sofisticadas tecnologias sociais, às flechas apontadas para o futuro. Mas nesse tempo circular, a memória viaja no tempo. Em 1965, traz Elis Regina, a primeira pessoa a vencer o Festival da Música Popular Brasileira pela TV Excelsior. Foi uma mulher, interpretando “Arrastão”, de Edu Lobo e Vinícius de Moraes. “Olha o arrastão entrando no mar sem fim / Ê meu irmão me traz Iemanjá pra mim”. E mais pra frente: “Valha meu Nosso Senhor do Bonfim /Nunca, jamais se viu tanto peixe assim”. Irmandade, trabalho, alimento, abundância e as bênçãos da Orixá presentes e celebradas na canção, em rede nacional. Na sequência daquele 6 de abril de 1965, outros jovens artistas eternizaram momentos históricos, fazendo chegar à população canções que diziam do seu tempo, do horror daquele tempo. Surgia ali algo essencial para o enfrentamento de tudo o que se instaurou após o golpe empresarial, civil-militar e também para a imaginação de dias de vida livre, farta e celebrativa. Trago hoje nesse corpo e fala as lembranças daquele tempo não só porque sou constituída por essa história, mas porque a memória é o direito de um povo, refunda sonhos e só ela é capaz de garantir que nunca mais aconteça o horror. Contemos essa história que atravessa esse e tantos festivais de arte, que em suas vocações nos conectam com o nosso tempo e apontam futuros.
Desde lá, anos 60, desde sempre, nossos festivais brasileiros são espaços para imaginar e experienciar um novo mundo. Espaços que modificam nossas dinâmicas, nossas experiências sociais. Gosto de pensar na experiência dos festivais como uma imersão em um espaço que suspende o tempo com uma linguagem própria. O que acontece quando um espaço como o Parque da Prainha abre seus portões pra receber uma multidão que vem de diversos cantos? O que essas pessoas, que se preparam para estar aqui, vêm buscar quando cruzam esse portal que insurge do cotidiano de uma cidade e modifica o seu ritmo, sua paisagem, a vida das trabalhadoras e trabalhadores que fazem essa experiência acontecer? Qual ou quais experiências estão sendo propostas para essa multidão e quais experiências elas constroem juntas, no encontro? O que fica desse evento é mesmo efêmero? Qual pensamento está por trás das escolhas que são feitas na organização de um festival? Com quais gentes, para quais gentes? A que ele se propõe?
Festivais produzem territórios, produzem encontros improváveis, reinventam afetos. Criam formas de habitar o mundo com gramática própria. São terreiros que ajudam a sacudir a vida, as estruturas, com corpos e corpas em festa. Os festivais brasileiros são oportunidades de reinvenção de lugares - geográficos, sociais e simbólicos.
O Festival Movimento Cidade traz um selo: CIDADES SÃO PESSOAS. E convoca uma reflexão: se festivais são microcosmos das cidades e cidades são pessoas, que pessoas precisamos ser para construir as cidades que queremos? De que forma podemos guiar nossas ações criativas, artísticas e culturais na transformação das cidades, e também das pessoas? Há uma ofensiva sensível das artes em movimento, em que também se inscrevem os festivais e as políticas públicas. Uma ofensiva que vem rompendo cenários históricos de opressão, com uma produção simbólica, como dizia Nego Bispo, contracolonial, que nasce da experiência de corpas indígenas, de corpas negras, de mulheres, de LGBTQIAPN+, de pessoas com deficiência, corpas das margens, das periferias, do Sul Global. Uma ofensiva que desestabiliza eixos quando aponta para outros territórios, outras formas de viver, de fazer arte, de se relacionar, de amar. Qualquer política pública dedicada às artes precisa acompanhar esse movimento, promover essa ofensiva.
Assim como metade dos projetos contemplados pelo Programa Funarte de Apoio a Ações Continuadas, este festival não acontece numa capital. Isso responde a demandas históricas de territorialização, descentralização e articulação entre territórios. O Ações Continuadas, que aposta na longevidade de feiras, mostras, encontros e festivais, traz no seu escopo ações afirmativas como política estruturante e medidas que induzem, em cada projeto contemplado, ações que podem proporcionar equidade de raça e gênero e de pessoas trans, acessibilidade, empregabilidade - reparação! Aqui no Movimento Cidade, estamos vendo não apenas a materialização dessas medidas, mas como elas estão sendo incorporadas, ampliadas, amplificadas e transformadas em exemplos de experiências criativas, culturais e artísticas acessíveis, inclusivas, seguras e acolhedoras para todas as pessoas. Políticas que refletem valores comuns e tomam a forma de ação, com a criação de vagas para profissionais trans e travestis, bolsa-auxílio para oficinas, consultorias com pessoas PCDs para assegurar medidas de acessibilidade, protagonismo e representatividade na equipe e na programação, medidas de segurança para as mulheres, em defesa das mulheres.
Estamos em plena construção de uma política inédita, que é prioridade para a Funarte e para o Ministério da Cultura, a Política Nacional das Artes. Falaremos dela amanhã em maior profundidade. Mas uma das principais perguntas que esta política nos lança é qual o papel de cada agente das artes no fortalecimento dessa ofensiva sensível capaz de transformar nossos eixos e lentes, de fazer frente aos discursos de ódio, de inscrever a força das nossas pluralidades na história?
Não existe festival sem rede, não existe cultura sem comunidade. E não haverá democracia real enquanto a vida, todas as vidas, não estiverem garantidas! Estamos juntas pra criar políticas, ações, experiências, pra transcender fronteiras e culturas, pra produzir justiça, festa e vida!
Maria Marighella