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Discurso de Maria Marighella na Universidade Metropolitana de Manchester
Olá, bom dia a todas as pessoas aqui presentes! Antes de tudo, quero saudar, na pessoa do Professor MARTYN EVANS, Diretor da Escola de Artes, toda a Universidade Metropolitana de Manchester por seus 200 anos de atividades, por sua inestimável contribuição nos campos da formação, da pesquisa e da produção de conhecimento em tantas áreas e por sua busca contínua em inovar e se conectar com o nosso tempo, suas transformações e os novos desafios. Quero também agradecer aos professores Patrick Campbell e Eliene Benício pelo convite, acolhimento e colaboração aqui hoje em minha fala.
Para que possam conhecer um pouco mais sobre essa mulher que vos fala e sobre o contexto de onde venho, gostaria de começar compartilhando com vocês um provérbio yorubá, que se tornou muito conhecido no Brasil nesses últimos anos, diz assim:
“Exu matou um pássaro ontem com uma pedra que só jogou hoje”.
Exu é um orixá, uma entidade das religiões de matriz africana, cultuado nos ritos de candomblé, religião muito presente na Bahia, estado onde nasci, no Nordeste do Brasil. Para alguns, Exu é um mensageiro, uma energia de comunicação, de abertura de caminhos - energia muito bem vinda aqui hoje em nosso encontro que reúne pessoas com diferentes experiências em diálogo! O que quero destacar nesse provérbio é o modo como ele conecta os tempos (ontem, hoje e amanhã) e nos convida a pensar que uma ação realizada hoje também pode ressignificar o ontem e projetar o amanhã. Assim como ações do passado podem encontrar novos ecos e formas no presente. Por que estou dizendo isso?
O próximo dia 31 de março marcará os 60 anos do Golpe Civil Militar que atravessou violentamente a história do Brasil entre 1964 e 1985, marcado por perseguições, censura, torturas, assassinatos, corpos que até os nossos dias não foram encontrados. Foi nesse contexto que meu avô, Carlos Marighella, político, poeta, escritor, enfrentou radicalmente o regime e foi morto pelo estado brasileiro em 1969. Quando eu nasci, em 1976, meu pai estava preso, meu avô morto e a minha avó exilada. Não houve um primeiro dia de luta. Eu Já nasci imersa numa situação de país bastante singular. Então, de algum modo, segue viva em mim a luta de meu avô pela liberdade, pela democracia, a admiração pelas artes. Sobretudo, segue viva em mim a atenção permanente, porque aprendi que a luta não dorme, o fascismo está sempre à espreita e, agora, ainda mais, se pensarmos nos movimentos de extrema direita que ganham força em tantas partes do mundo.
Esse contexto do passado encontrou, recentemente, alguns ecos em meu país. O Brasil viveu entre 2016 e 2022 uma das mais graves crises de sua jovem democracia. A destituição da presidenta Dilma Rousseff, legitimamente eleita pelo povo, deu início a um novo tempo sombrio que, sob o governo de Bolsonaro, mergulhou o Brasil em retrocessos abissais, exemplo disso, destaco e também lamento as milhares de mortes pela pandemia de convid-19 sob a liderança de um presidente negacionista, e, para a área cultural mais diretamente, a extinção do nosso Ministério da Cultura e a criminalização sistemática dos artistas e dos mecanismos de fomento às artes. Em resumo, um governo que era inimigo da ciência, do conhecimento, da cultura e das artes.
Nesse sentido, estar aqui hoje, diante de vocês, é um sinal da vitória da democracia que elegeu pela terceira vez o presidente Luís Inácio Lula da Silva e recriou o Ministério da Cultura, nomeando como ministra Margareth Menezes, uma artista brilhante de nossa música, uma mulher negra do Nordeste do Brasil e que sabe, como ninguém, o papel da arte e das oportunidades na emancipação dos sujeitos, especialmente para grupos sociais tantas vezes invisibilizados e negligenciados, sobretudo em países que lidam com os vestígios da empreitada colonial e o combate às suas lógicas tão enraizadas, que seguem perpetrando o racismo, o machismo, a exploração. A convite da Ministra, assumi no ano passado a presidência da Fundação Nacional de Artes – Funarte, uma instituição de 49 anos, vinculada ao Ministério de Cultura e que tem como atribuição o desenvolvimento de políticas e programas para as artes visuais, o circo, a dança, a música e o teatro. Eu era coordenadora de Teatro dessa instituição em 2015 e deixei o cargo quando da saída da presidenta Dilma. Foi muito emocionante e simbólico retornar à Funarte e tem sido uma missão incansável colaborar na retomada do papel das artes e da cultura na vida do país e na formulação de políticas públicas para o setor. A principal meta de nossa gestão é a criação e implementação de uma Política Nacional das Artes, tendo como eixos: a criação e acesso; a difusão nacional e internacional; memória e pesquisa: formação e reflexão e direitos trabalhistas e previdenciários das trabalhadoras e trabalhadores das artes.
Então, o primeiro ponto que gostaria de ressaltar em nossa discussão sobre Ação Cultural e Artes Cênicas: Modelos Equitativos de Crescimento Econômico diz respeito a importância de um ambiente que cultive a liberdade de pensamento, de expressão e a diversidade (territorial, étnico-racial, de gênero, de formas, de temas, de poéticas) como condição para que as artes cênicas floresçam na sua potência e possam impactar seus contextos. Compreendo que as artes têm um papel muito importante no fortalecimento de uma cultura democrática, diversa, solidária e inclusiva.
O segundo ponto que quero destacar é o impacto das artes e da cultura - um setor produtivo que mobiliza milhares de profissionais em áreas diversas – na geração de emprego e renda e sua incidência na economia. Em estudo mais recente sobre o tema no Brasil (dados do Observatório Itáu Cultural), em 2020, a economia da cultura e das indústrias criativas do Brasil movimentou R$ 230,14 bilhões, equivalente a 3,11% do Produto Interno Bruto (PIB). O PIB da economia da cultura e das indústrias criativas supera, por exemplo, o índice da indústria automobilística que registrou um valor de 2,1% no mesmo período. Além disso, o levantamento aponta que em 2022 o setor gerou 308,7 mil novos postos de trabalho em comparação com 2021. Foram 7,4 milhões de empregos formais e informais no país, o que equivale a 7% do total dos trabalhadores da economia brasileira. Em 2020 existiam mais de 130 mil empresas de cultura e indústrias criativas em atividade no país e a área foi responsável por 2,4% das exportações líquidas do país. O compromisso do ministério da Cultura é aperfeiçoar seus sistemas de indicadores e dados sobre o impacto da cultura na economia, a nós, da Funarte, interessa, por exemplo, conseguir levantar dados precisos sobre a participação das artes cênicas nesses resultados e temos encontrado nas universidades parcerias importantes na busca por indicadores, dados e informações que auxiliem os governos na tomada de decisão em suas políticas para cultura.
O terceiro ponto que chamo a atenção é sobre o modo como políticas e programas para as artes podem incorporar dispositivos de justiça e reparação que possam contribuir efetivamente para mudanças sociais e na promoção de caminhos mais equitativos. No ano passado, nos seus programas e politicas de fomento às artes, a Funarte lançou 33 chamadas públicas, com investimento direto superior a R$ 90 milhões de reais, incorporou importantes dispositivos: a reserva de recursos assegurando 20% dos investimentos em projetos de artistas e produtoras negras e negros; 10% para projetos de indígenas; 10% para propostas de pessoas com deficiência. São medidas afirmativas que, retomando a imagem do provérbio yorubá que falei inicialmente, lançam no hoje uma “pedra” que procura minimamente reparar injustiças históricas com essas populações. Além da reserva de recursos, adotamos também critérios de bonificação em algumas chamadas públicas, com pontuações suplementares para projetos preocupados com a equidade de gênero e a inserção e empregabilidade de pessoas transexuais.
O quarto e último ponto que gostaria de destacar, tenho chamado de Ofensiva Sensível das artes brasileiras. Na minha avaliação, a produção artística do Brasil tem inscrito dentro e fora do país uma ofensiva sensível em que as artes, em especial as artes performativas, operam contra-narrativas ou narrativas contra-coloniais, redesenhando e ampliando imaginários. As formas e os conteúdos das criações problematizam as velhas lógicas patriarcais do empreendimento colonial e reivindicam outras narrativas e imaginários sobre corpos negros, indígenas, mulheres, pessoas com deficiência e comunidade LGBTQIAPN+. Artistas desses grupos sociais, historicamente excluídos e invisibilizados, têm ocupado os palcos com grande protagonismo, colocam em cena seus próprios pontos de vista e questões, resgatam traços identitários, discutem o mundo a partir de outros cosmogonias. Hoje esse é um traço pulsante e provocador de nossas artes. Como metáfora, eu diria que nossas artes são hoje “a pedra certeira que Exu lança para mover e fazer mover o mundo ao qual estamos acostumados, dando outros sentidos ao passado e nos convocando a imaginar outro mundo possível. Essa ofensiva sensível passa também pelo papel do Brasil, sob a liderança do presidente Lula, em advogar por um mundo sem guerras, na defesa da paz, do combate a fome e por um planeta justo e sustentável.
Na década de 1940, uma médica psiquiátrica brasileira chamada Nise da Silveira revolucionou os métodos de tratamento na saúde mental numa associação direta com as práticas artísticas e o cuidado humanizado, lutando contra eletrochoques, isolamento e violência. Aquela médica apaixonada pelas artes gostava de citar uma frase, inspirada no encenador francês Antonin Artaud, ela o traduzia mais ou menos assim: "Há dez mil modos de ocupar-se da vida... e de pertencer a sua época... há dez mil modos de pertencer a vida e de lutar pela sua época".
Acho que é esse o chamado diante de um mundo profundamente desigual, num planeta com desafios climáticos e ambientais urgentes: como cada uma e cada um de nós, nas instituições, nos centros culturais, em cena, podemos pertencer e lutar por nossa época?
Muito obrigada por me ouvirem.