Myrian Christofani
Entrevista concedida a Ester Moreira e Sharine Melo, no Memorial da América Latina
São Paulo, 04 de agosto de 2016.
E – Como é que você começou a trabalhar na Funarte?
M – Eu fui para a Funarte em 79, quando da inauguração da Sala Guiomar Novaes. A Maria Luiza Librandi era Coordenadora, nomeada pelo Parreira. Estava precisando de trabalho, liguei para ela, que me respondeu: “Estou precisando de alguém para administrar o espaço”, e eu fui para lá. E, de fato, eu acho que foi o melhor trabalho que fiz na minha vida. Fiquei 16 anos na Funarte… Momentos muito bons, outros terríveis. Éramos uma equipe bem reduzida…
E – Você lembra quem já estava lá nessa época?
M – Assim que eu cheguei eram só duas pessoas. Era a Lulu e a Telma Monteiro, secretária pessoal dela. E, logo depois, a Lulu contratou um casal: o Paulo Roberto, que era o nosso porteiro, elegantérrimo, e a Marta, na época, mulher dele, que era a nossa bilheteira. Ela está lá até hoje. Eu não lembro quando o Bicelli foi pra lá.
S – Acho que foi em 84, mais ou menos…
M – E o Bicelli foi mais para cuidar da parte de artes plásticas. O Manoel, eu acho que era mais ou menos dessa época. Não lembro do Chico e do Gyorgy, que foi para as montagens.
E – O Gyorgy foi logo depois do Bicelli.
M – É isso – aliás, quem indicou o Bicelli foi o Miguel de Almeida, que na época trabalhava na Folha de São Paulo, muito amigo da Lulu, um jornalista super badalado, época do Matinas Suzuki… Era aquele povo de lá…
E – E você conhecia a Lulu de onde?
M – Eu conhecia a Lulu porque eu trabalhava com a Ruth Escobar e em 1973 ou 75 a Lulu voltou de Roma porque ela foi exilada para lá, e aí nós nos conhecemos. Ela tinha um gênio muito forte, a Ruth também, então… Foi amiga da Ruth até o fim da vida, mas para trabalhar mesmo durou um ano… E eu continuei amiga da Lulu (…), então, quando eu saí da Ruth fui trabalhar na Funarte. No entanto, todas as vezes que a Ruth fazia um grande seminário, uma coisa maior, ela ligava para a Lulu e falava assim: “Eu preciso da Myrian, então, você manda a Myrian meio período para ajudar”. Isso sempre funcionou sem atrapalhar ninguém. E a Sala Guiomar Novaes foi inaugurada com um concerto do Jacques Klein, naquele piano Yamaha maravilhoso que, agora, se Deus quiser, vocês vão deixar impecável. (…)
Isso foi em maio de 1979. E, nessa época, a maior parte da programação era feita no Rio de Janeiro, pelo Hermínio Bello de Carvalho.
E – Então, nessa época, o Hermínio estava lá.
M – Já estava lá. Quando comecei na Sala Guiomar Novaes eu também cuidava do Projeto Pixinguinha, que era ali onde é o SESC Vila Nova, tinha o Teatro Pixinguinha naquele lugar.
E – Era ali embaixo onde tem o Teatro hoje?
M – Não, era em cima. Era um ginásio anteriormente… Era época de Zezé Motta, Marina Lima, Zé Ramalho, Belchior, Ivan Lins… E aquele projeto maravilhoso de trazer uma pessoa de fora do estado, já com nome, apresentando um talento do estado que as pessoas ainda não conheciam.
E – Então, eu fiquei com essa dúvida: eu li um pouco no site da Funarte sobre o projeto Pixinguinha e não fala do espaço da Funarte SP em lugar nenhum… Isso porque não aconteceu lá?
M – Não, não cabia, tinha muito público. Era promovido pela Funarte, só que acontecendo no Teatro Pixinguinha.
E – Vocês trabalhavam juntos.
M – Trabalhávamos juntos. Era uma ótima parceria. Assim como os cursos que vinham do Adauto Novaes, só um deles foi feito na Guiomar Novaes, porque o Marcello Nitsche quis, o resto eu consegui espaço na FAAP, uma vez.
E – Esses cursos eram os seminários organizados pelo Adauto Novaes?
M – Eram, eram seminários maravilhosos. E aí, a Funarte SP, a sala Guiomar Novaes era muito conhecida e as pessoas iam muito, porque a programação era muito boa. O que a gente fazia? A gente soltava editais, as pessoas se inscreviam e tinha um grupo que selecionava entre os inscritos. Para vocês terem uma ideia, era assim: o Pipoca, da TV Cultura; o Antonio Carlos Rebesco, que é professor da FAAP, não sei se até hoje; o Chico de Assis; o Armando Aflalo, crítico de música; o Zuza Homem de Mello, então, a gente pegava todos os materiais, nos fechávamos em algum lugar dois, três dias. Eles ouviam absolutamente tudo, selecionavam as pessoas que poderiam fazer e aí eu montava a grade.
S – Era fita? Era gravação de fita cassete?
M – Era, era fita ainda. Muita gente começou, mas muita gente, nessa época.
E – Só mais uma pergunta, ainda, em relação a esse processo. Esses artistas recebiam um cachê?
M – Nessa época nós tínhamos dinheiro para tudo.
E – A Sala oferecia também condições de equipamento… Toda a infraestrutura?
M – Sim, tinha iluminador, tinha o técnico de som, com uma aparelhagem decente para a época. (…) Para eles era interessante porque era uma vitrine. Era, em matéria de música popular, o Lira Paulistana, um espaço que tinha na Teodoro Sampaio, um sobrado velho em que você descia umas escadas… O Gordo, Wilson Souto Jr, mantinha aquilo, e foi super badalado. Era muito normal o Gordo me ligar e falar assim: “Myrian, tem um grupo aqui que vocês não podem perder…” Então, por exemplo, o Grupo Paranga foi prá lá, assim… E muita gente começou ali. Eu lembro que o Arrigo Barnabé, quando fez o Clara Crocodilo, eu fui assistir no SESC Vila Nova, fiquei enlouquecida com o trabalho e falei: “Lulu, a gente precisa trazer o Arrigo para cá”. Quando contei quantas pessoas… Ela falou: “Você tá louca, não vai caber”. E lógico que deu para fazer. Então, era um espaço que tinha gente o dia inteiro. Não tinha aquele entorno desagradável. As pessoas pegavam o Metrô, desciam na Marechal ou na Santa Cecília… E tinha também um projeto que a gente fazia à tarde, durante as férias, que a gente chamava de Verão Funarte, era para as mulheres que tinham filhos pequenos e não tinham para onde levar e que iam para lá ouvir música. Era uma coisa de muita vitalidade. Não só de música popular, mas também de música erudita, mas isso tudo vindo da Funarte do Rio. E grandes nomes também. A gente teve a comemoração dos 80 anos do Dorival Caymmi na sala Guiomar Novaes, com todos eles: Dorival, Dori, Nana, Danilo. A Nana fez muito Sala Guiomar Novaes, Clementina de Jesus também fez muito… Isso foi em 79, maio de 79. Aí eu fiquei grávida do meu filho, e a Lulu falou: “Agora você não vai mais ficar fazendo administração, você vai fazer assessoria de imprensa…”
E – Porque administração era quase uma produção, né?
M – É, e fora que você tinha que trabalhar sábado e domingo. Então, ela me colocou para fazer assessoria de imprensa: eu saí da administração da sala e ela chamou a Heleninha (Helena Angela Barbosa) para ficar no meu lugar – pena que eu não tenho o telefone dela. A Heleninha que, inclusive, era muito amiga do Hermínio e já tinha trabalhado no Projeto Pixinguinha. (…)
E, na vinda do Bicelli, nós tivemos coisas importantíssimas nas artes plásticas. A Semana (Ciclo Nacional) de Performance, por exemplo…
E – Foi quando começou a ter essa área, né?
M – É. Daí vários artistas, vários… Por exemplo, Maria Bonomi ia ensinar as pessoas a fazer gravura ali, naquele salão que antecede a Sala Guiomar Novaes. Então, era normal você encontrar não só ela, vários artistas realizando oficinas para as pessoas que se inscreviam…
E – Era um lugar aonde as pessoas iam.
M – Iam, independente da programação. E também a Myriam Muniz, que saiu da Escola Macunaíma, que era aqui na Lopes Chaves, onde é a casa do Mario de Andrade – ela se separou do Sylvio e foi para lá montar grupos de teatro. Não era só para ator, ela dava toda a formação de figurino, de iluminação, de cenário… Para as pessoas que se inscreviam no curso e que ficavam o ano todo com a gente, duas vezes por semana. E terminava num espetáculo que ela montava no final do ano, aberto ao público. Era muito bonito. Aí, na época do Projeto Musical Funarte, tinha um diretor da TV Cultura, um grande amigo, Carlos Queiroz Telles. Eu fui com a Lulu até ele e começamos esse projeto musical Funarte, em parceria com a TV Cultura, os músicos todos gostavam, mesmo sem receber cachê, porque era uma forma de divulgar o trabalho deles pelo Brasil. Ainda no Youtube vocês conseguem ver alguma coisa.
E – Eles filmavam e transmitiam na TV Cultura?
M – É, porque os grupos não ficavam só um final de semana. Eram espetáculos de duas semanas, de quinta a domingo. Era a primeira semana pra já fazer o boca a boca e, depois, lotar na segunda semana. E do Rio vieram vários projetos: As Novas Cantoras do Rádio… Então, quem eram as novas cantoras do rádio, isso em 80? Ângela Rô Rô, Zizi Possi, Sueli Costa, Rosinha de Valença… O Maestro Radamés Gnatalli esteve várias vezes tocando na Sala Guiomar Novaes, com Raphael Rabello.
E – Mas você disse que esse programa não tinha cachê.
M – Não, o Projeto Musical Funarte tinha, tinha cachê e bilheteria. Porque, por incrível que pareça, na época da ditadura, a gente tinha dinheiro para pagar os artistas. Olha o que eu estou falando, olha o absurdo. A nossa colega de Funarte era a Amália Lucy (filha de Ernesto Geisel, o quarto presidente da ditadura militar brasileira), que fazia um belo trabalho no Museu do Folclore.
E – O Chico (Buarque) até fez uma música inspirada nela (Jorge Maravilha, 1973, canção satírica cujo refrão alude ao fato, conhecido na época, de a filha do presidente ser uma grande fã do compositor, frequentemente censurado pelo regime militar).
M – Era uma pessoa encantadora. Então, a gente trazia grupos de outros estados e tinha dinheiro para hospedagem, para alimentação, um pequeno cachê e bilheteria. Tivemos Aracy Cortes, imagina?
E – E promoção, né? Passar por um lugar badalado repercutia, não?
M – E era uma produção assim: eu saía e ía com os artistas para as redações. Eu tive muita sorte também, porque na época, na Folha a gente tinha o Ruy Castro, que era um grande amigo, o Luis Antonio Giron, o Luis Chagas, que era o guitarrista do Itamar Assumpção, pai da Tulipa Ruiz, que era do Jornal da Tarde, e, como eu havia trabalhado com a Ruth por muitos anos, e fazia também assessoria de imprensa, eu já conhecia o Edson Paes de Melo, o marido da Irene Ravache, todos da Cultura. Mas era corpo a corpo. Uma vez por semana tinha que sair, ir para as redações com o release debaixo do braço, se possível acompanhada pelos artistas. O Xangai adorou passear pela Barra Funda. Tinha que ser. E era tão bom!
S – Então, a programação de música erudita vinha pronta do Rio de Janeiro?
M – É, vinha pronta.
S – E a de música popular não, vocês selecionavam aqui?
M – É, selecionávamos, com exceção de alguns espetáculos que já vinham prontos do Rio, ou algumas coisas que também foram criadas aqui. Por exemplo, os 5 anos da Funarte a Myriam Muniz dirigiu, chamou o Flávio Império para fazer o cenário e era, por incrível que pareça, Nana Caymmi, Isaurinha Garcia e Itamar Assumpção. Foi uma loucura!
E – Isso foi filmado?
M – Foi, foi, mas a TV Cultura teve aquele incêndio…
S – E a programação de música erudita também era por edital, ou era por curadoria?
M – Não, aí era lá no Rio… E também, alguma coisa veio pela Lúcia Camargo. A Lúcia Camargo também era da Funarte, de Curitiba. Não sei se vocês conhecem a Lúcia, também vale a pena vocês irem atrás da Lúcia para falar da Funarte. Ela estava, há um tempo, com o pessoal do Teatro Municipal… A Lúcia pode falar muito da Funarte.
E – Mas ela trabalhou aqui na Funarte SP?
M – Não, mas ela trazia coisas lá de Curitiba. Ela era da Funarte Curitiba.
E – Quando você chegou, em 79, você chegou na inauguração da Sala Guiomar Novaes. Além da Sala, como era o restante do espaço físico?
M – A gente só tinha aquele galpão, que funcionava como sala de espera e tinha a lojinha com as coisas da Funarte, com todas as publicações. Tinha muita coisa de fotografia – eram muito bons aqueles cadernos de fotografia –, coisas de música, tinha uma loja bem interessante e frequentada, também.
E- E as exposições? Ainda não tinha, né?
M – Não, ainda não tinha. Uma das primeiras exposições, inclusive, foi a de caricaturas do Miécio Caffé.
S – O Bicelli falou dele.
M – Miécio Caffé era uma figura muito importante, porque ele fazia cartazes do cinema nacional. Aqueles cartazes maravilhosos que ficavam na porta dos cinemas eram feitos por ele. Um dos artistas que sempre que vinha a São Paulo e que ficava na casa dele, tocando a noite inteira, era o João Gilberto, amigo do Miécio. E eram caricaturas de todo mundo de música, dos mais famosos, do Gil, do Caetano, da Bethânia… Era uma exposição belíssima. E o Miécio vivia com a gente na Funarte. Deve ter muita foto ainda. Talvez eu até tenha.
S – Se você conseguir, ótimo.
M – Eu acho que tenho uma foto, com o Hermínio, do lançamento do Alaíde Costa canta Hermínio Bello de Carvalho, que foi num bar do qual um dos donos era o Claudio Mamberti, que chamava Light, na Rua Augusta. Esse LP da Alaíde é maravilhoso, com o Hermínio musicando música de João Pernambuco e cantado pela Alaíde. É lindo, lindo, lindo.
M – Quem mais era importante lá? Ah, tem a semana (o Ciclo Nacional) de Performance. E, por exemplo, a Rochelle Costi, a fotógrafa super badalada agora, começou lá fazendo instalação, no galpão.
E – Ela começou na Semana Nacional de Performance?
M – Não, não na Semana de Performance. Num outro evento, eu acho que ligado à fotografia. Talvez o Gyorgy lembre.
M – E vocês devem ter os vidros que eles pintaram, não têm? Uns vidros enormes?
S – Não é aquele que está na sala do Tadeu (Judas Tadeu de Souza, coordenador da Funarte SP quando realizada a entrevista), será?
M – É, deve ter na Funarte ainda alguma coisa. É uma pena, porque toda a parte de clipping, acho que cupim devorou, né?
S – É, tem algumas coisas lá que a Ana estava levantando, mas eu acho que dessa época não tem quase nada. Acho que foi tudo para o Rio.
M – Mas eu tenho certeza de que o Paulo César Soares vai gostar de ajudar vocês. Então, por exemplo, o Paulo César e eu somos grandes amigos, porque ele também era muito amigo da Lulu. E, quando a Lulu foi dirigir o Centro Cultural Vergueiro, ele foi trabalhar com ela e ela me chamou para fazer um aniversário do Centro Cultural, um aniversário de 11 anos. E não me pergunte por que 11 anos… A direção do evento era do Chico de Assis e eu era sua assistente. O Centro Cultural com programação das 9h da manhã até às 21h, encerrando com um espetáculo só com artistas de São Paulo. Então era Inezita Barroso, Miriam Batucada, Osvaldinho da Cuica e uns meninos grafitando o cenário. Quando terminava o show, era a cidade de São Paulo grafitada naquela época! Porque o Chico de Assis era um visionário, que eu conheci quando fui com a Missa Leiga para Portugal e África. Foi um sucesso.
E – Então quer dizer que a Missa Leiga nunca se apresentou na Sala Guiomar Novaes.
M – Não, nunca. Imagine, a Missa Leiga não caberia jamais. A Missa Leiga, o primeiro projeto era para ser na Igreja da Consolação. Mas não deu certo. Depois foi para a Fábrica da Lacta, que era na Vila Mariana. Até o dia que eu fui assistir, nunca mais esqueço, tive o prazer de conhecer o Chico Xavier, que foi assistir ao espetáculo. Agora, o sucesso na África e em Portugal… Com o sucesso da Missa Leiga, comecei meu trabalho com a Ruth Escobar, nós saímos do Brasil para ficar um mês em Portugal e acabamos ficando dois meses e um mês em Angola, na época, ainda colônia portuguesa. Só não ficamos mais porque o pessoal não tinha contrato e estava com saudades do Brasil.
M – O que mais que teve na Funarte? Bom, a Lua de Cetim, No Natal a Gente Vem te Buscar, coisas do Naum (Alves de Souza), Márcio Aurélio dirigiu. Ele também pode falar bastante sobre a Funarte.
E – Então, a Sala Guiomar Novaes é uma sala reconhecida como espaço de música, mas ela também abrigou bastante espetáculo de teatro, antes de ter sala específica de teatro no Complexo.
M – Exato. Ela funcionava para música popular, música erudita – com menos frequência – e alguns espetáculos de teatro; e o Hermínio também trouxe um projeto para cá que chamava… Era um encontro de compositor e letrista. E outra coisa que aconteceu, antigamente, na Rua das Palmeiras: tinha a Rádio Globo se não me engano, e tinha um programa que chamava Balancê, o Osmar Santos era o locutor, e era um programa que todo mundo fazia. Tinha muito Balancê, muito Show da Manhã na Jovem Pan, todo mundo ouvia. Eu sempre gostei muito de trabalhar com rádio, e rádio todo mundo escuta. Então a gente ia mesmo para as rádios. E nessa época eu conheci o Goulart de Andrade, que estava fazendo um programa que se chamava Perdidos na Noite, gravando num espaço na Rua Apa que era um teatrinho, menor ainda que a Sala Guiomar Novaes – eu não lembro o nome daquele teatrinho –, e a gente fez amizade. A produtora era a Lucimara Parisi, e um belo dia eles foram pedir para fazer as gravações do Perdidos na Noite na Sala Guiomar Novaes, e fizeram por um tempo. Pouco tempo, porque o dia em que foi a Gretchen, que na época estava aquele sucesso do bumbum, quase quebraram tudo, todo mundo queria invadir, o Fausto Silva era o apresentador; então eles viram que o espaço também era muito pequenininho e foram para o Teatro Zaccaro. Vocês iam adorar conhecer a Funarte daquela época. Você não parava um minuto, mas não dava para ficar cansada, porque tudo dava certo. E o Faustão era outro Faustão.
E – Você trabalha na Funarte esse tempo todo, com toda essa efervescência, e a gente sabe que chega uma hora que a Lulu sai de São Paulo e vai para o Rio de Janeiro.
M – Exatamente, ela vai para o Rio de Janeiro e vai ser Diretora Executiva. Só não fui ao Rio trabalhar com ela porque o meu filho era pequeno e o pai do meu filho é do Grupo Raíces de América, então não dava para ficar no Rio sozinha: e o filho, ia ficar onde? Então resolvi ficar aqui, aí eu fiquei como coordenadora da Sala Guiomar Novaes e o Walter Moraes Martins, que era do administrativo – veio do Rio, eu não lembro em que ano ele veio. Eu fui à posse quando ela foi Secretária de Difusão e Intercâmbio, com a Caravana Bandeirantes, que era o Carlos Perrone, que na época era da Imprensa Oficial do Estado, o Casimiro Xavier de Mendonça, que era crítico de artes plásticas, a Ruth Escobar, grande amiga do teatro, e eu, que já trabalhava com ela que gentilmente me convidou.
E – Você ficou então como coordenadora da Sala…
M – Coordenadora e programadora da Sala e assessora de imprensa da Funarte. O Walter ficou na administração e veio como coordenador da Funarte São Paulo o Marcello Nitsche. (…)
E – Em 87 o Celso Furtado era o ministro, a Lulu a Diretora Executiva, você coordenadora da Sala e ela te chama para montar a exposição internacional (Modernidade – Arte Brasileira do Século XX, no Musée d’Art Moderne de la Ville de Paris).
M – Isso, a comissão conceitual da exposição era da Aracy Amaral, Marie Odille Briot, Frederico Morais e Roberto Pontual. Eu até tenho o material dessa exposição, depois eu posso passar para vocês. É Modernidade – Arte Brasileira do Século XX – Ano Brasil França. E essa exposição depois veio para São Paulo, no Museu de Arte Moderna, local onde trabalhamos na montagem da exposição para levar a Paris. O diretor de lá era o Aparício Basílio da Silva, muito amigo da Lulu, que nos cedeu uma sala. Aí foi um sucesso. Na volta, a Maria Luiza Librandi foi nomeada Secretária de Difusão e Intercâmbio em Brasília. Queria também que eu fosse para lá, mas eu falei: “Não, Lulu, não vou” e… aquelas coisas da vida, enquanto funcionária dela, o Marcos Vilaça, que, acho, era Secretário da Cultura, pediu para a Maria Luiza e para o Carlos Augusto Calil organizarem um coquetel para homenagear o Pietro Maria Bardi, no MASP. A Lulu me indicou para fazer a produção e divulgação e o Carlos Augusto Calil chamou a Carmelita Guimarães, que era a pessoa que trabalhava com ele na época. E deu tão certo, mas tão certo esse coquetel, que o Calil falou para a Lulu: “Olha, quando ela não estiver mais trabalhando com você eu quero que ela vá trabalhar para mim”. Quando ela me chamou para Brasília e eu não pude ir, acabei indo para a Cinemateca. Comissionada na Cinemateca, trabalhei quase 2 anos.
E – Você veio para cá em 79, já se passaram quase 10 anos. Mas você nunca foi efetivada como servidora pública?
M – Não, eu sempre fui CLT.
E – E quando o Collor assumiu?
M – Aí eu fiquei em disponibilidade.
E – E você não entrou, depois, na justiça? Porque um monte de gente entrou e foi efetivada.
M – Não, nunca liguei muito para essas coisas, infelizmente.
E – Você continuou como CLT sempre.
M – Sempre. Me aposentei como CLT e nem notório saber me deram. Então, meu salário é ridículo. Por isso eu trabalho. Aposentadoria aqui não dá para sobreviver. E na época em que ele (Collor) deixou todo mundo em disponibilidade eu fui trabalhar no Ópera Room, que era uma casa de espetáculos na Rua Pinheiros, e lá eu fazia direção artística e assessoria também. Foram 10 meses, eu parei porque entrava às 16h e saía às 4 da manhã. Aliás, sempre trabalhei muito, com a Ruth Escobar era de segunda a segunda.
E – No teatro dela, né?
M – A gente ficava muito pouco no teatro. A gente ficava mais na casa dela do que no teatro, trabalhando. Eu conheci a Ruth porque eu era amiga de dois atores do Balcão. Um fazia o Bispo, que era o Rofran Fernandes, e o Márcio Ferreira. Era lindo o espetáculo. Foi uma das vezes que ela quebrou o teatro.
S – Quebrou, quebrou literalmente…
M – Sim, ela quebrou várias vezes o teatro.
M – Eu estava falando como conheci a Ruth, é preciso completar. Eu trabalhava numa loja e a Ruth Escobar – sempre precisando de dinheiro – foi até lá porque ela queria vender uma balança portuguesa que era uma cabeça de touro, uma coisa gigantesca, maravilhosa. E eu lembro que fiquei encantada com ela, porque ela era mil por hora e eu só a conhecia de nome. Eu já tinha ido assistir a dois espetáculos montados por ela: o Cemitério de Automóveis e o Balcão, ambos dirigidos pelo genial Victor Garcia, que me foi apresentado por meus vizinhos de prédio, o Rofran Fernandes e o Márcio, que trabalharam com ele no Balcão.
E – Que loucura que foi o espetáculo, não?
M – Foi, e é até hoje, considerado um dos mais importantes espetáculos de teatro de todos os tempos. Tanto o Balcão quanto o Cemitério de Automóveis tiveram cenários de Vladimir Pereira Cardoso, marido da Ruth, na época, pai de duas das filhas dela: da Inês, que é videomaker, e da Rutinha, que é artista plástica e musicista. A Ruth sempre quebrou os teatros. A última produção que eu fiz com a Ruth em 1976 foi Torre de Babel, do Arrabal. Ela chamou o Luiz Carlos Ripper para fazer, e também acabou com tudo. Sempre foi muito corajosa. Os festivais todos que ela fez a vida inteira… Ela foi a única pessoa que conseguiu montar Os Lusíadas. Nunca ninguém teve essa coragem. Ela não só montou como levou para Portugal, com direção de Marcio Aurélio e cenário da Daniela Thomas. Foi um sucesso. Eu estava com ela de novo nessa montagem de Os Lusíadas.
Bom… Aí teve o Collor… Todo mundo foi colocado em disponibilidade, depois tivemos que voltar. O (Reinaldo) Maia (servidor da Funarte de 1988 a 2009 e coordenador interino da Funarte SP durante a reativação) me ligou e disse “Myriam, você tem que voltar”.
M – Pedi para ficar trabalhando na Teodoro Baima (Teatro de Arena Eugênio Kusnet), ele concordou e pediu para que eu reabrisse a Sala Guiomar Novaes. Olha com quem eu trabalhava: Reinaldo Maia, Fernando Peixoto, o Marco Antonio Rodrigues, o Chico de Assis, que dava aula. Isso é um presente! O Maia é uma pena, não está mais aqui (Reinaldo Maia faleceu em 2009), porque ele tinha muita história.
E – Você se lembra como o Teatro de Arena acabou indo para a Funarte?
M – Isso eu não sei, não sei mesmo. Porque a gente ficava tanto na Nothmann que a Teodoro Baima ficava uma coisa…
E – Mas acho que isso foi só depois da ditadura.
(…)
M – Tinha também na Funarte os cursos da Myriam Muniz. Cursos de formação, mesmo.
E – Era quase como um profissionalizante?
M – Exatamente. Era tudo: cenário, figurino, até divulgação. Eu não sei se você conhece, eu lembro até hoje, o Paulo Marra, um menino ainda, nós íamos juntos para as redações e ele virou um grande assessor de imprensa. Começou tudo lá. Muita gente, os Irmãos Garfunkel participavam muito dos cursos com ela, o Zebba dal Farra, a Cláudia Pacheco. Queria tanto que vocês estivessem nessa época… Mas só de vocês conseguirem resgatar um pouco dessa memória já é muito importante, muito importante. Ontem eu fiquei tão feliz aqui, que meu filho falou: “Ah, tá fazendo o que você gosta, né? Falando da Funarte”. Eu falei: “Tô lembrando das coisas importantes que aconteceram por lá”.
E – E das coisas boas que fizeram parte da sua vida profissional, né?
M – Nossa, eu lembro, eu estava com uma barriga enorme e o Hermínio mandou a Clementina de Jesus fazer um espetáculo na Sala Guiomar Novaes. Ela botou a mão na minha barriga e falou: “Oh, que meninão que vai sair daí”. No ano seguinte ela veio, eu levei o meninão para sentar no colo dela. Ele vivia na Funarte. Foi criado na Funarte. Cada show! Teve um show que era Carmem Costa e os Tincoãs, que também não tem nenhum material.
S – Tem pouquíssimo material. Eu estou achando algumas coisas no acervo da Folha de São Paulo, no Estadão…
M – Uma outra pessoa que talvez seja interessante vocês conversarem, que é jornalista e músico, é o Luiz Chagas. O Chagas, pai da Tulipa Ruiz. Eu acho que ele vai curtir falar sobre isso. Luiz Antônio Sampaio Chagas. Ele acompanhou bem de perto porque ele era do Jornal da Tarde e músico. E o Arrigo Barnabé também. Arrigo, Vânia Bastos.
S – Ele fez um show lá, não sei, acho que no ano passado.
M – Do Lupicínio? Que agora ele está fazendo Lupicínio.
S – É.
E – Aí você voltou, pós-Collor…
M – Pós-Collor, a convite do Maia, para reabrir a sala Guiomar Novaes, liguei para o Itamar (Assumpção) e falei: “Tô precisando de você”. Ele falou: “Tá, então vou pegar o metrô; e onde você tá?” Eu disse: “Tô indo para a Nothmann para conversar com você”. “Tô pegando o metrô, daqui a uma hora tô aí”. Aí veio aquele negão lindo, com aqueles óculos gatinho dele, fiz a proposta, falei: “Itamar, a gente precisa reabrir a Sala, reabrir mesmo, trazer o pessoal para cá. E você começou aqui, e agora você é o Itamar Assumpção que todo mundo conhece, e você vai trazer público”. Aí ele ficou, parou “É, tem razão, eu volto. Eu vou montar uma banda só de meninas para fazer a reabertura da Sala”. Aí nasceram As Orquídeas.
E – Você se lembra em que ano foi isso?
M – Ah… Não sei, 92,93… E aí foi um sucesso! Retomamos a Sala como deveria ser. Mas, logo depois, eu resolvi me aposentar, porque, na época, você podia se aposentar com 25 anos de trabalho, proporcional. Porque o salário na época do Collor despencou e aí continuou despencando. A gente ganhava muito bem antes. Quem me deu notório saber foi a Isaura (Botelho). Mas não aconteceu nada lá no Rio de Janeiro quando a Isaura mandou. Porque a Isaura também foi nossa coordenadora, foi uma passagem rápida. Portanto, resolvi me aposentar para poder sobreviver, mesmo. Voltei a trabalhar com a Ruth, voltei e fiquei até 2000. E aqui estou no Memorial da América Latina há onze anos e meio já.
E e S – (Isaura) Que escreveu o livro.
M – Isaura é um encanto de pessoa. Eu não lembro o período em que ela foi coordenadora lá.
E – Eu acho que no livro ela não comenta que foi coordenadora lá. Ela vai fazendo toda uma discussão de como a Funarte foi funcionando em termos de políticas públicas, quais eram as propostas, os caminhos, mas ela não faz um trabalho de historiador. Então ela não historiciza no livro. Ela cita que era da Funarte, que fazia parte do corpo técnico, da Assessoria Técnica. Mas vale a pena entrevistá-la.
E – Você pegou a época do PX (Silveira, coordenador da Funarte SP de 1995 a 2003)?
M – Não, quando o PX chegou foi na época em que eu estava saindo.
E – Você estava se aposentando?
M – É, e o PX não queria que eu saísse de forma nenhuma. Foi muito engraçado e me deu até a produção de um jornalzinho sobre o Jorge Mautner, que fiz com a Malu… Foi muito engraçado porque na época em que eu fui para a Cinemateca, o Calil me levou para fazer assessoria de imprensa, e na Cinemateca já tinha assessoria de imprensa, era a Maria Lúcia Alves Ferreira. Eu até falei: “Meu Deus, vai ficar uma coisa, né? Chegar alguém de paraquedas”. Mas foi exatamente o contrário. Ficamos muito amigas e somos até hoje. Amigas a ponto de a Malu pedir transferência da Cinemateca para a Funarte. A transferência dela saiu quando saiu a minha aposentadoria – muita coincidência.
E – E aí, nessa época ainda tinha o MEC lá?
M – Tinha, tinha.
E – O Bicelli e o Gyorgy foram falando que o Px teve uma coordenação muito importante em termos de ocupação dos espaços.
M – Com certeza, ele foi pegando os galpões. Isso ele fez mesmo.
E – Porque, até então, continuava ali a loja, o administrativo, a Sala…
M – É, tudo pequenininho, tudo meio abarrotado.
E – E ele consegue ir tomando lá os espaços, conforme vão desativando.
M – É, tinha ainda a Priscila que ficava praticamente dentro da Funarte, que era da Biblioteca Nacional, não sei se ela ainda está…
E – A Biblioteca ainda está lá…
M – O Px seria uma pessoa bem interessante para conversar. O Bicelli deve ter o contato dele.
S – Com certeza o Bicelli deve ter.
M – Ele é bem de artes plásticas, o Px.
S – Até 85 a Funarte era do MEC, né? Depois passou para o Ministério da Cultura. Como foi essa relação? Ou não teve muita diferença.
M – Não, para nós não. A única diferença que nós tivemos foi quando o Collor chegou (…) na hora em que a gente soube assim: “Não venham mais, fiquem em disponibilidade”. Aí deixaram a Marta de zeladora do prédio. E aí, acabou. Fechou tudo. (…)
E – Mas você não sentiu nessa mudança, deixar de ser Secretaria sob o MEC e vir a ser ministério e a Funarte no meio, abaixo do ministério? Você não sentiu mudanças, por exemplo, no volume de orçamento que vocês tinham, liberdade que vocês tinham de produzir, de produção, de fazer as programações?
M – Nessa época ainda tínhamos condições de oferecer espaço para os artistas se apresentarem, apesar de não termos mais verba para pagar o cachê e o som e a luz ainda serem da inauguração da sala, eles iam pela bilheteria. Era mais uma vitrine para mostrar seus trabalhos.
E – Então manteve-se o orçamento.
M – Dessa parte, o responsável era o Walter Morais Martins.
E – Não teve um impacto porque saiu do MEC, não teve um impacto.
M – Não, eu não lembro disso. Não lembro mesmo. Isso foi em 85?
E – E o MinC foi criado em 85.
M – É, mas até a criação, até começar… Não, não mesmo. Inclusive era uma vida pacífica, porque funcionava a Embrafilme também ali. A Embrafilme funcionava lá, na casa.
E – No casarão?
M – É, funcionava lá. O Calil trabalhou lá. O Carlos Augusto. Uma pessoa brilhante. Ele que conseguiu, em comodato, o terreno onde está a Cinemateca agora.
E – Aquele prédio é maravilhoso.
M – É, foi ele quem conseguiu. Ele já foi Secretário Municipal de Cultura (…). Eu acho a gestão dele ótima, foi diretor da Cinemateca e eu acho que agora ele está só como professor da ECA. E também fez um trabalho muito bonito aqui na Casa de Mário de Andrade e tem até uma publicação de todo o trabalho de Mário de Andrade, que eu acho que saiu em uma revista da USP. Se eu não me engano.
S – Você conheceu, frequentou a Funarte depois da reforma dos galpões?
M – Fui, fui ver algumas coisas, sim.
(…)
E – Você tem fotos da época, em algum lugar, alguma imagem que mostre como era?
M – Não tenho, infelizmente não tenho. Eu lembro daquele portãozão da Nothmann, daquelas portas gigantescas do primeiro galpão, onde depois virou aquela galeria.
E – Quando ali era o Instituto de Educação (Instituto Federal de Educação), por essas portas entravam caminhões.
M – A casa, então, aquela casa era maravilhosa!