Marília Librandi
Entrevista concedida a Ester Moreira e Sharine Melo, na Sala Guiomar Novaes
São Paulo, 6 de julho de 2017.
Entrevista com Marília Librandi, 2017.
Ester – Boa tarde, Marília!
Marília – Boa tarde, Ester! Boa tarde, Sharine!
E – Eu gostaria de começar perguntando para você quais são as primeiras lembranças que você tem da Funarte São Paulo com a Lulu Librandi.
M – Bom, primeiro eu quero dizer que eu fico muito emocionada com esta conversa, neste espaço aqui do teatro, da Sala Guiomar Novaes, porque eu tinha, então, nove para dez anos de idade e, se ela ficou aqui nove anos na direção, eu cresci neste espaço. Justamente neste espaço, o primeiro impacto, então, eu realmente era criança, foi sentada numa dessas cadeiras, assistindo neste palco à montagem da Morte do Vaqueiro (Rezas de Sol para a Missa do Vaqueiro, de Janduhi Finizola, com direção de Renato Borghi). Não me lembro do título completo, mas ficava como A morte do Vaqueiro, que era um espetáculo musical sobre o sertão… Eu me lembro do cenário, eu me lembro sobretudo das músicas e, sobretudo, da música Assum Preto (Luiz Gonzaga), que era cantada lindamente e que causou impacto. Era uma coisa muito emotiva, muito forte. Então, foi um acontecimento incrível, inesquecível mesmo, aquele espetáculo para mim. Depois disso, foi, eu acho que foi alguns anos depois, eu não me lembro das datas agora… Mas o segundo impacto muito forte foi mesmo com esses dois artistas incríveis da cena cultural paulistana, que são Arrigo Barnabé e Itamar Assumpção, com a banda Isca de Polícia. Aí, eu já era, devia estar entrando na adolescência e aquilo foi, assim, era também… Era um… O que era aquilo? Era muito novo, né?! E muito jovem. Então, Clara Crocodilo (Arrigo Barnabé), assim, era “uau!” Aquela ópera, né? E o Itamar Assumpção… O Arrigo… Eu lembro do coro, eu lembro da Tetê Espíndola e de outras cantoras que acompanhavam o Arrigo, de toda a banda Isca de Polícia. Aquilo (era) muito forte, não é? E a Clara Crocodilo também foi mesmo muito impressionante. Foi, assim, algo que marcou uma geração mesmo de jovens e de artistas naqueles anos, neste espaço. Então, era muito vibrante, era muito acolhedor, era muita gente circulando e era isso, era muito vivo.
E – Que lindo! Fala um pouquinho da sua mãe. Você é filha única?
M – Eu sou filha única da Lulu, não é? Eu nasci em 1968. Na época, ela trabalhava já no Ponto de Encontro, na Galeria Metrópole, e já começou ali uma vida de produtora cultural. Eu acho que ela sempre foi muito, aquilo que a gente só percebe depois, não apenas eu como filha, mas as pessoas em geral… Quer dizer, uma mulher em meados, final dos anos 1960, trabalhando com arte, sendo mãe solteira, tomando a decisão de assumir sozinha uma carreira artística ou vinculada às artes e ter uma filha sozinha, faz parte desse perfil da Lulu, que combina essa coisa muito guerreira, muito de uma geração também, de mulheres se autoafirmando naqueles anos, e muito generosa. Quer dizer, esse coração dela muito aberto para a vida. Eu acho que a Lulu era tudo, menos uma pessoa melancólica. Então, tinha esse impulso, não é? Veja você, a gente nunca conversou (sobre o pai de Marília)… Eu, hoje, tenho contato íntimo com meu pai, com a família do meu pai, um contato muito carinhoso. Mas, quando ela faleceu, por causa de ir atrás dos documentos, eu encontrei uma carta, que ela guardou, datada de novembro de 1967, em que ela informa ao meu pai que ela estava grávida e que ela, depois de muito pensar, tinha decidido ter o filho, que ia ser difícil informar a família dela dessa decisão, que ele fizesse o que quisesse, mas que ela ia ter (a filha) e que ela tinha tomado essa decisão, sobretudo após muitas conversas com os amigos, que ela diz que “são a minha família”. Então, acho que eu cresci, Ester, nesse ambiente de uma família ampliada. Éramos eu e ela sozinhas, mas a casa, o trabalho eram cheios de gente em volta. A vida inteira foi essa população …
E – De amor, né?
M – De amor, exatamente. Uma das figuras que eu lembro que circulou muito lá em casa, eu não sei se chegou a tocar aqui, disso já não me lembro, foi Gonzaguinha. Geraldo Vandré, depois Nana Caymmi.
S – A Nana Caymmi com certeza tocou aqui.
M – A Nana Caymmi com certeza, não é? Então, eu nasci em 68 e eu sei que, eu tinha dois ou três anos de idade, minha mãe chegou a ser presa. Acho que, depois que o Ponto de Encontro foi fechado, por causa disso, na ditadura, por ter conhecidos vinculados aos movimentos de resistência, ela foi presa para denunciar as pessoas e chegou a ficar, se não me engano, um mês na prisão, onde ela chegou a conhecer pessoas que chegaram a ser amigas pelo resto da vida, porque era uma prisão feminina. Depois dessa experiência, ela ficou sem trabalho, ela ficou muito traumatizada, vivendo naquele ambiente de medo. Como muitos dos amigos estavam fora do Brasil, ela resolveu ir para a Itália. Minha primeira lembrança mais forte foi esta: a gente saindo de navio de Santos, Porto de Santos, o navio Eugênio C, em uma viagem de 8 dias até chegar a Lisboa. Quando a gente chegou a Lisboa, era 1974, tinha acabado de acontecer a Revolução dos Cravos. Eu me lembro disso, também criança, porque a gente chegou lá e eles davam cravos para a gente. Quando a gente saiu daqui do navio, eles tocavam a música, tocaram (a música de) Chico Buarque A banda. Eu lembro que foi o primeiro… “Nossa, estamos indo embora do Brasil!”… Foi quando ouvi o Chico…
E – Caiu a ficha…
M – Caiu a ficha. E aí a gente viveu dois anos em Roma numa experiência que foi, para mim, muito formadora. Foi incrível porque, de novo, era uma casa… Ela alugou um apartamento no Trastevere, que era um bairro ultrapopular. Roma não era a Roma de hoje, era uma Roma… Tanto que equivaliam o dinheiro brasileiro e o dinheiro romano naquela época. Então, esse lugar, no Trastevere, era frequentado por cineastas, era frequentado pelo Jirges Ristum, que tinha trabalhado com o Glauber Rocha, pelo Ivan Isola, e por vários amigos que acabaram se conectando ali, latino-americanos, chilenos, argentinos, exilados, uruguaios…
E – Todos com a mesma experiência traumática.
M – Exatamente. Todos fora do Brasil.
E – De seus países.
M – Sim, sim, exato. Então, se uniam ali fora, né? Então, foi essa vivência. E daí a gente voltou para cá em 1976, eu acho. E, logo depois, quando a gente voltou, ela começou a trabalhar no teatro da Ruth Escobar e trabalhou lá por alguns anos com a Ruth, na criação dos festivais. Na época, a gente morava ali na Rua dos Franceses, Rua dos Ingleses, perto do teatro. De novo, era Sérgio Mamberti, Ruth Escobar, a montagem de O Balcão, outras montagens.
E – A montagem de O Balcão foi histórica.
M – Histórica, exato.
E – A parte cenográfica foi uma loucura.
M – Uma loucura. E, também, essa união de mulheres, porque a Ruth era outra…
E – Mulher forte.
M – Forte e tal. E elas conviveram, trabalharam juntas muito bem. A Leina Krespi era uma outra mulher também, que fazia parte desse grupo. Muito forte. Então, eu vivi cercada desse povo.
E – Dessa energia artística e guerreira.
M – Exato.
E – Depois ela vem para cá?
M – Aí vem a Funarte, que é esse período todo muito glorioso, e que foi logo depois do Projeto Pixinguinha. Eu me lembro dela viajando com o Projeto Pixinguinha. Também me lembro de alguns espetáculos ali. Daí veio para cá e aí começou essa fase Funarte.
E – Grande desafio.
M – Grande desafio…
E – Construir a Funarte São Paulo.
M – Exato. Esse espaço aqui tem o nome da Guiomar Novaes.
S – Foi ela (Lulu Librandi) que fez tudo. Isso aqui não existia. Ela e o Roberto Parreira.
M – É verdade, é verdade. E eu, claro, não tinha essa noção na época, de que ela estava começando isso tudo. Eu acho que, sobretudo esse lugar aqui, porque a Lulu sempre teve uma paixão por São Paulo, assim, enorme, e uma defesa desta cidade e dos artistas locais, dos bairros, da Barra Funda. Eu acho que, de todos os espaços em que ela viveu em São Paulo, este é mesmo o espaço Lulu.
E – Sem dúvida (risos). Tem a energia dela aqui.
M – Tem a energia dela aqui, com certeza. O coração dela está aqui mesmo.
E – O que mais você quer perguntar, Sharine?
S – Bom, acho que sobre a programação, porque tinha este espaço e tinha o Lira Paulistana, que eram os dois (espaços culturais) mais importantes (da cena alternativa). Qual relação eles tinham?
E – Você lembra (do Lira Paulistana)?
M – Lembro… Eu ia ver os shows lá também. Eu acho que era muito essa turma jovem. Eu acho que era muito esse espírito jovem, muito experimental.
E – Acho que ela (Lulu Librandi) teve essa sensibilidade. O Wilson Souto e os rapazes que fundaram o Lira, eu tenho impressão de que eram mais jovens do que ela, né? E ela tinha a sensibilidade para o artista novo, para a música nova, para o espetáculo novo…
M – Exatamente.
E – É uma coisa difícil quando é tão diferente.
M – Sim. É verdade.
E – Você ter a sensibilidade para abrir o espaço para que aqueles artistas possam se apresentar, e foi isso que ela fez.
M – É verdade…
S – Eu acho que essa iniciativa de abrir os espaços para os artistas jovens foi muito mais dela do que da própria Funarte talvez, principalmente aqui em São Paulo.
M – Eu acho também.
S – Acho que não era uma decisão da casa…
E – Não era estratégico, era ela quem trazia essa energia.
M – É verdade. Vocês têm toda razão. Eu acho que era uma mente aberta, justamente, acolhedora, sem nenhum tipo de preconceito. Muito pelo contrário, muito antenada nesse sentido… Porque, quem abriria espaço para o Arrigo (Barnabé), para o Itamar Assumpção, não é?
E – A Banda Isca de Polícia, com um som tão diferente. A própria Clara Crocodilo, do Arrigo, é extremamente inovadora naquele momento. (É) uma linguagem muito diferente.
S – Até hoje.
M – Até hoje, exato.
E – É considerado experimental, né?
M – Exato, exato.
E – A Sharine uma vez falou uma coisa, sacou uma coisa que eu acho essencial: a Lulu adiantou em alguns anos a questão da diversidade.
M – Perfeito, perfeito. Eu acho que sim. Eu acho que essa pesquisa de vocês trouxe isso à tona, não é?
S – Porque não era só música experimental, era música clássica, era teatro, o pessoal das escolas, que estava se formando, da EAD (Escola de Arte Dramática), que ela trazia para cá. Isso era legal.
M – Exatamente.
S – A Myriam Muniz…
M – Myriam Muniz, isso, Myriam Muniz… Eu me lembro, anos depois, do Luiz Melodia, já mais conhecido.
E – E ela trabalhava com os jovens e com os clássicos.
M – Isso, isso.
E – Ela traz um monte de gente que tinha perdido espaço e ela traz de volta à cena.
M – Os cantores e cantoras da noite, que ela prezava muito, gostava muito. Então, acho que era uma característica dela, que foi da vida toda mesmo, essa abertura de circular, desde trabalhar, como a gente estava falando, com os (artistas) mais experimentais (até) os músicos clássicos, os mais conhecidos, esse leque amplo de gente. Era igual à vida cotidiana dela, porque ela era muito próxima e amiga do porteiro, da filha do porteiro, do zelador, até de socialites.
E – Ela circulava.
M – Circulava e sempre, eu acho que isso foi muito marcante na personalidade dela a vida toda, era autêntica. Quer dizer, ela não mudava de modo de ser, de falar ou de pensar de acordo com o ambiente. Do mesmo jeito que ela podia brigar com uma pessoa muito próxima, era o jeito (como) ela falava com o governador, com o prefeito, com a socialite, com as amigas da elite ou não. Não tinha…
E – Não tinha personagem.
M – Não tinha personagem, não tinha um jeitinho ou uma adaptação. Era aquilo. Era inteira. A presença muito forte. Aquela voz forte.
E – Eu mostrei o vídeo que você mandou, da entrevista dela, para o meu marido e ele não a conhecia, (porque) ele não é dessa área. Ele falou assim: “Nossa, mas que voz forte!”
M – Exatamente. Era um vozeirão!
E – Ele ficou impressionado com a voz dela.
M – Ela e a Nana (Caymmi). Às vezes ela falava: “Eu podia ser cantora que nem a Nana”.
E e M – É bem capaz…
M – Porque elas tinham (semelhança) até no jeito físico, no timbre…
E – O timbre era bem parecido.
M – E, muitas vezes, como ela falava muito ao telefone, antes da internet, (a pessoa) atendia e falava: “O senhor (…). “Que o senhor coisa nenhuma!” (risos). Olhando aqui nos bastidores, neste espaço, eu me lembro muito do espaço do camarim. Eu vivia, convivia muito ali com os artistas. Outro evento aqui, que foi realmente também um escândalo, de impacto, foi o show do Cauby Peixoto, que foi assim…
E – Lotação esgotada.
M – Lotação esgotada e aquela figura.
E – Era um ícone.
M – Era um ícone, exato, exato.
E – Eu me emocionava só de olhar.
M – Exatamente. Figuras muito fora do comum. Então, essa vivência, esse lugar é um lugar mesmo muito cheio de energia boa.
S – E os servidores? De quem você lembra?
M – Tinha a comunidade dos amigos, dos funcionários que trabalhavam aqui com ela. (Era muito) próxima a Myrian Christofani, durante tantos anos aqui. As duas (ficavam) na mesma sala, eu me lembro muito bem disso. O Gyorgy era outra figura. Eu acho que foi um pouco depois da Myrian, eu me lembro, mais para frente, do Roberto Bicelli, que até hoje é essa figura incrível, com uma alegria de ser contagiante, não é? O Px (Silveira), eu me lembro do Px. Um amigo que não chegou a trabalhar diretamente aqui, mas que estava sempre aqui nas produções, era o Carlito Uruguaio, que estava sempre junto, com o teatro e tudo, era uma figura muito próxima. A Myriam Muniz também, outra figura incrível do teatro. E mulheres também muito sem “papas na língua”, quer dizer, (que) chegavam e dominavam o ambiente.
E – A gente entrevistou a Ângela Dória, que era assistente da Myriam Muniz quando ela fazia o curso aqui, quando ela dava o curso de teatro dela aqui. Ela contou que, no período em que o (então presidente, Fernando) Collor fechou a Funarte, na década de 90, no ano de 1990, a Myriam Muniz manteve o curso dela aqui, obrigava a abrirem o portão para ela entrar, para os alunos entrarem, como forma de resistência, porque ficou tudo fechado, foi tudo empacotado, só ficou a Marta, (que foi) a única servidora que eles permitiram, como se fosse a guardiã do espaço.
M – Nossa, olha só.
E – Até fundarem o IBAC, que também não deu certo, a Myriam permaneceu resistindo como o curso.
M – Ela era uma mulher incrível mesmo, incrível. O Fauzi Arap, acho que deve ter dirigido coisas por aqui também ou, senão, passado por aqui. O Márcio Aurélio, diretor de teatro também, com o Ari… A Marta, que era uma amiga íntima da minha mãe até o fim. Nossa, muita memória boa mesmo.
S – Que bom!
E – E, depois, você foi embora?
M – Depois, eu acho que, quando ela saiu daqui…
E – Você já era adolescente.
M – (Eu) Já era adolescente. Ela foi para a Funarte do Rio, para a direção geral (direção executiva) da Funarte do Rio e ali ficou um tempo. Mas ali já era o fim mesmo desse período. Teve uns entreveros sérios ali, na época do Ziraldo (presidente da Funarte em 1985), que dirigia (a Funarte). Eles brigaram. Aquilo foi um episódio bem chato, desagradável. Aí, realmente, a vida dela seguiu por outros caminhos, de forma independente, como produtora cultural independente. No Ministério da Cultura, com Celso Furtado, que foi uma experiência linda para ela (Lulu Librandi foi Secretária Internacional do Ministério da Cultura de 1986 a 1988).
E – Foi bem forte.
M – (Ela tinha) uma paixão, um carinho enorme pelo Celso, um respeito por ele muito grande. Depois, em São Paulo, com as produções culturais, as produções teatrais.
E – Ela fez aquele grande evento na França, a primeira exposição modernista brasileira.
M – Exatamente, a exposição Modernidade (Modernidade Arte Brasileira do Século 20, no Museu de Arte Moderna de Paris, em 1986), que foi um negócio enorme. E muita viagem… Então, ela circulou muito, fazia música, principalmente, música entre os músicos, teatro. Música, teatro, artes plásticas.
E – E ela continuou fazendo…
M – Ela continuou fazendo até o fim e sempre ajudando os artistas que estavam debilitados, ou com problemas, ou sem dinheiro. Eu sei que tem depoimentos nesse sentido do Johnny Alf. O Plínio Marcos, com certeza, ela conseguiu internamento para ele. Ela ficava batendo na porta dos políticos e insistindo muito…
E e M – Com esse reconhecimento necessário.
M – Eu acho que, por causa desse lado muito expansivo da minha mãe, eu, desde pequena, tenho essa característica mais quieta.
E – Mais intimista.
M – É, mais intimista, para contrabalançar. Porque eu acho que, se eu fosse tão expansiva quanto ela, ia ser uma loucura.
E e M – Ia bater de frente o tempo todo.
M – Então, eu sempre acompanhava muito de perto, mas aí fui fazer uma carreira acadêmica. Ela sempre insistiu muito (em) terminar a faculdade, fazer a faculdade. Sempre deu muito apoio para isso. Respeitava, tinha um orgulho enorme quando eu comecei a dar aula e, depois, quando eu fui dar aula na Universidade de Stanford. Quando eu anunciei para ela que eu tinha passado no concurso lá, ela falou: “Ah, você vai me abandonar, vai sair do Brasil!”. Eu falei: “Eu não preciso aceitar.” “Claro que você vai aceitar!” (risos).
E – A gente sofre, mas apoia.
M – Exatamente. Sofre, mas apoia. Mas a relação dela com os Estados Unidos, sempre com a música, é muito antenada com a coisa dos artistas. Mas a vivência dela com o inglês era mais difícil do que a vivência com a Itália, a França, a Europa em geral, como era a geração.
E – A geração dela era mais europeia, vinculada à cultura europeia. Começa a vinculação com a cultura americana ali, com os jovens que ela está estimulando. Ali que começa esse vínculo maior. Eu acho que sou um pouco mais nova que ela, mas também tenho um vínculo bem maior com a cultura europeia.
M – Sim, também.
E – Você é professora de literatura brasileira ou de literatura?
M – Literatura brasileira, e cultura, né?
E – Não tinha como fugir.
M – Não tinha como fugir, e aí comecei a dar aula sobre música brasileira lá.
E – Você teve uma escola desde a infância. Não precisava estudar muito.
M – Não, não precisava. São todos artistas que eu estou sempre mostrando. E eu acho que (tem) essa coisa do Brasil mesmo, muito forte, com a música. Quando a gente sai daqui é um… O Brasil é muito bom, dá muita pena quando a gente está fora e pensa, assim, nos problemas que a gente vê aqui.
E – E a força que a gente tem, e não reconhece. A força da cultura…
M – A força da cultura brasileira é uma coisa assim, acho que não tem paralelo em outros lugares, sobretudo com os chamados hiperdesenvolvidos, não é? Eu acho que a Lulu é esse chamariz assim, dessa força muito brasileira, porque ela (era) filha de italianos calabreses com sírios. Ela herdou, tanto da Calábria quanto da Síria, aquela característica forte, da força, da batalha guerreira, mas brasileiríssima, brasileiríssima.
E – De alma brasileira.
M – De alma totalmente, totalmente… Muito bom.
E – O que você gostaria de deixar como suas palavras pelos quarenta anos da obra da Lulu Librandi?
M – Essa é uma pergunta bonita e difícil.
E – Pode ser um poema, pode ser o que você quiser. Você tem o tempo que quiser, porque isso aqui não é televisão mesmo.
M – Ah, que bom. Ótimo, ótimo.
E – Não é ao vivo.
M – Olha, eu realmente não preparei nada. Vim descontraída para a conversa, mas eu acho que a mensagem da minha mãe foi uma mensagem de uma pessoa guerreira e generosa. Uma das coisas que eu falei na época do velório… Foi muito emotivo, cheio de gente… Tinha essa coisa dela assim: para se afirmar, precisava ter essa força, inclusive de briga. Era uma característica dela. Ela era briguenta.
E – Ela era italiana.
M – Exatamente. Calabresa, assim, até não poder mais. Ela até me dizia que a bisavô dela era muito (briguenta) também, que a família dizia que ela tinha herdado essa característica. Mas o que foi muito bonito de ver ao longo da vida toda dela, e isso eu acompanhei muito, os atores, como o Raul Cortez e tantos outros amigos, (com quem) ela brigava muito intensamente, e pareciam brigas homéricas, daquelas assim “as pessoas nunca mais vão se ver na vida”, e pouco tempo depois estava, de novo, aquela pessoa dentro de casa.
E – Todos apaixonados novamente.
M – Exatamente, por causa dessa coisa autêntica. (Ela) não guardava nada. Alguém que explode, mas não guarda rancor. Com esse coração amplo assim. Então, eu acho que essa garra, de alguém que vive tudo, vive com toda a intensidade possível, e angaria esse grupo de pessoas. Muitas pessoas, quando ela morreu, voltavam e (diziam): “Nossa, eu tinha brigado com a sua mãe, mas a gente voltava sempre”. Quer dizer, (ela era) essa pessoa de criação de elo.
E – Lealdade.
M – Porque as pessoas reconheciam. Por trás daquele corpo da minha mãe, daquela força toda, tinha uma pessoa muito gentil, muito doce, muito doce, ali. O olhar dela transmitia muito isso. Era um vozeirão e um olhar muito doce. Eu acho que a mensagem… Isso eu falei porque ela escreveu, ao final, um livro sobre a Isaurinha Garcia, chamado Mensagem. Ela gostava demais da Isaurinha… Essa coisa do carteiro, que traz a mensagem e não abre. A música é isso: o carteiro chegou e eu não abri a mensagem, não tive coragem de abrir a mensagem. E a minha mãe era uma pessoa que abria mensagens, mandava mensagens. Eu lembro que disse isso, e repito aqui, digamos assim: onde ela estiver hoje, eu acho que ela abriu a mensagem e o recado dela, a mensagem é de alegria e vivacidade e resistência, com a arte e com os artistas.
S – Que legal!
E – Lindo, lindo! Muito obrigada!
S – Obrigada!
M – Obrigada!