Arrigo Barnabé
Entrevista concedida a Ester Moreira e Sharine Melo, na casa de Arrigo Barnabé
São Paulo, 27 de abril de 2017.
Ester – Vou explicar um pouquinho pra você: a Sharine é servidora da Funarte e, no momento, eu sou coordenadora da Funarte São Paulo. Mas eu entrei lá, antes, como terceirizada. A Sharine estava pensando em fazer uma pesquisa, porque este ano a Funarte São Paulo faz 40 anos: ela nasceu em 1977. Então ela queria fazer uma pesquisa porque há uma demanda de estudantes e de artistas que querem saber da história arquitetônica do lugar – do casarão e dos galpões –, e não existe nenhum material organizado sobre isso. Aí ela me convidou para fazermos esse trabalho juntas. Basicamente, estamos fazendo uma pesquisa documental e entrevistas – e, claro, você é fundamental para essa história.
Sharine – Com certeza!
E – Nós já entrevistamos o Wilson Souto, do Lira Paulistana, que foi importante naquela década (de 1980). Agora, a gente queria conversar um pouco sobre a sua experiência na Funarte São Paulo, mas a gente queria começar um pouquinho antes, até para a gente poder aprender um pouco mais sobre esse assunto. Eu queria saber como você começa com a música – a gente sabe que você é de Londrina -, como você vem para São Paulo…
A – Eu vim aqui para estudar, fazer cursinho; entrei na Faculdade de Arquitetura. Eu gostava muito de música, tinha estudado música em Londrina. E continuava muito interessado – aquela época era um momento muito rico, né? Os festivais, aquela geração maravilhosa: Paulinho da Viola, Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Edu Lobo, Milton Nascimento… Era um negócio! Tinha o Sidney Miller, né? Muita gente! O Geraldo Vandré, mesmo o pessoal da Jovem Guarda, era uma coisa impressionante. E a gente era muito inspirado por esses caras, então todo mundo queria fazer música e tal, compor. Eu participei de um festival de inverno em Ouro Preto, em 71. Fazendo um curso de música, lá, eu resolvi trancar a matrícula na FAU (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, da USP), voltei para Londrina. Em Londrina eu comecei a compor. Fiquei meio ano em Londrina e, no final desse ano, o Mário Lúcio, que fazia o ITA (Instituto de Tecnologia Aeronáutica), aqui em São, Paulo, e que era o meu interlocutor em Londrina, veio de férias e, aí, nós compusemos o começo do (disco) Clara Crocodilo. Depois, eu voltei para a FAU – já era o ano de 72 – e, em julho, nós voltamos para Londrina, de férias de novo, eu e o Mário, e terminamos o Clara – a parte musical. E aí, mais ou menos no final de 73, meio de 73, eu resolvi fazer música mesmo, largar a faculdade de arquitetura. Fiz vestibular para a ECA (Escola de Comunicações e Artes da USP) e entrei no curso de música da ECA. Mas eu já estava compondo: já tinha feito o Clara, Sabor de veneno, tinha feito um monte de coisas. Tinha participado de um festival em Curitiba, um festival que, infelizmente, foi cancelado agora – acontecia em janeiro, um festival importante. Eu tive aula com o Egberto Gismonti nesse festival – bárbaro, mostrei as minhas músicas para o Egberto nesse festival… Então, eu me lembro que, em 78, eu fui assistir a alguns shows na Funarte. Em 79, a Tetê (Espíndola) e o Lírio Selvagem fizeram uma temporada lá, e eu fui assistir. Eu já tinha ganhado o festival da TV Cultura – isso em 79 – e, no final do ano, ia ter o festival da Tupi. E aí eu ia montar o Sabor de Veneno, no começo de janeiro de 80. Mas, nesse ínterim, eu me lembro de ter ido à Funarte várias vezes, com a Tetê. Conheci um cara que era o bilheteiro, um cara meio rústico, bravo…
E – É? Você não lembra o nome dele?
A – Não me lembro. (…) E tinha aquela menina muito legal, a Myrian, né? A Myrian ainda está lá?
E – Não, já se aposentou.
S – A Myrian Christofani…
E – A gente já a entrevistou.
A – E era a época da Lulu. A Lulu estava lá nessa época, a Librandi, né? Eu peguei a época do Marcelo Kahns também, o Marcelo Kahns também trabalhou lá, na Funarte. Fez uma curadoria, uma coisa assim, (…) acho que em 80. Fizemos vários shows do Clara Crocodilo lá, com sessões duplas e tal, uma sessão extra. Porque lotava demais! Era uma coisa impressionante, viu?
S – Nessa época acho que o coordenador já era o Marcello Nitsche, mais para o final dos anos 80. Ou você pegou só a época da Lulu Librandi?
A – Olha, eu acho que nesse período ainda era a Lulu. A Lulu foi, ainda, acho que até 84, por aí…
S – É, até o meio dos anos 80.
A – Depois eu fiz alguns shows na Funarte, já nessa época aí, já no final dos 80: 88, por aí, 89. Fiz vários shows lá, então a gente fez bastante coisa. É um espaço muito bom, né? Muito legal, e as pessoas tinham o hábito de ir à Funarte.
E – Havia poucas opções, ainda…
A – Era o Lira Paulstana…
E – Não tinha o que tem hoje, né?
A – Tinha o Colégio Equipe, que fazia shows que a gente ia assistir; a Funarte – na Funarte era mais intenso, e no Equipe era algo, assim, mais esporádico, mas eu lembro de ter assistido no Equipe ao Cartola e Nelson Cavaquinho juntos! Então tinha coisas bem legais, mesmo. E eu sei que a Funarte sofreu várias reformas… Sabia que eu estava lá no dia em que pegou fogo? Foi num ensaio do Bonsai – um trio, que era o Paulo Braga, o Mané Silvério e o Guello. Eu sou muito amigo deles e, por acaso, eu fui lá assistir ao ensaio.
E – E pegou fogo.
A – Pegou fogo! Começou a pegar fogo, mas a gente achou que não era nada!
E – O cheiro de queimado…
A – A gente viu, mas a gente achou que não era nada! De repente, chegaram os bombeiros…
E – Um escândalo!
A – Nossa, e acho que um piano dançou nessa.
S – Eu não sei.
A – Tinha um Steinway lá.
S – Ah, é? Porque tem até hoje um Yamaha, que é dessa época também…
A – Eu acho que eles tinham um Steinway. Não tenho certeza, será que era um Yamaha?
E – Se tinha, deve ter pego fogo!
S – Que pena!
E – Então, quer dizer: naquela época, mesmo para as pessoas que faziam música, (a Funarte São Paulo) era um espaço de convivência com outros músicos…
A – Ah, era! A gente ia assistir a shows lá. Eu lembro de ter ido assistir lá ao Tiago Araripe, acho o Papa Poluição, um grupo que também fazia shows lá e a gente ia assistir. Eu fui assistir ao Grupo Um, que era o trio do Lelo Nazário, de música instrumental. A gente ia assistir a muita coisa na Funarte! Mas, quando veio o Projeto Pixinguinha – engraçado –, ele ficou ali no Teatro do SESC.
E – Na Consolação. Porque eles achavam – “achavam” não, provavelmente não caberia: a Sala Guiomar Novaes tem 100 lugares. É pequena. Aí, fizeram essa parceria com o SESC. De uma certa forma – eu conversei outro dia com o Danilo Miranda, e ele também acha isso – a força do SESC, como um espaço de cultura, começa também nesse período, e com o sucesso do Pixinguinha. Aí eles começam, aos poucos, a investir cada vez mais na área de cultura, porque (anteriormente) eles tinham mais aquela parte de esporte, aquela parte social e, aos poucos, eles vão ampliando a área de cultura – o Pixinguinha foi muito importante.
A – É, eu lembro que a gente fez um festival da TV Cultura lá, no SESC. Foi em 79. Porque já tinha essa tradição do Pixinguinha – o Pixinguinha começou em 77?
S – Em 77.
A – Eu lembro que eu vi a Marina, no Pixinguinha…
E – A Marina Lima. Tocou gente muito bacana!
A – Muito bacana!
E – Ontem (no lançamento da reedição do Projeto Pixinguinha, na Funarte Rio), se apresentou um grupo novo, que até tocou um disco deles aqui… Muito bacana! Não falaram a origem, não sei de onde eles são. E, depois, se apresentaram O Moraes Moreira e A Cor do Som – eles foram contando a importância que teve o Pixinguinha para alavancar as carreiras deles. O Moraes Moreira, a carreira solo, e a Cor do Som como uma banda pop rock, meio regional, meio rock. E o Armandinho ainda toca, que é uma coisa! Eu fiquei impressionada! Toca maravilhosamente, toca cavaquinho como se fosse uma guitarra. O cara faz cada solo maravilhoso… E aí eles foram contando da importância do Pixinguinha para essa geração, que não tinha espaço.
A – É, a gente, todo mundo, depois, foi fazer show na Funarte: o Itamar (Assumpção) foi fazer show lá. A gente ia assistir a shows do Itamar. Eu lembro que eu ia com a minha mãe. A minha mãe fez toda a roupa da banda do Itamar.
S – Ah, é?
A – Todos!
E – Do Isca de Polícia?
A – Todas.
E – Ela era figurinista deles.
A – A minha mãe comprou o pano e costurou toda a roupa daquela primeira formação do Isca de Polícia. Ela ia assistir a todos os shows, era apaixonada! Nossa, adorava. E a gente vivia lá na Funarte, ia bastante, mesmo. Eu lembro quando a Myrian teve um filho, eu acho.
E – É, ela teve um menino. Ia trabalhar, grávida.
A – A gente ficou sabendo, a gente estava fazendo show e ela estava tendo filho. Acho que foi numa sexta ou num sábado, eu não tenho certeza…
E – E onde você conheceu o Itamar? Ele é de Londrina, também, né?
A – Ah, a gente se conheceu em Londrina. Tinha um movimento musical na região, né?
E – Você falou que estudou música. Você estudou em conservatório?
A – Estudei em conservatório.
E – Você gostava desde pequeno, mesmo.
A – Não, não era uma coisa assim, não. Eu comecei a me interessar mesmo por música na época em que acontecem os festivais, porque você começa a ouvir, ver que existem outras coisas. Foi muito importante, na época, aparecerem os festivais porque você começa a ter uma discussão estética. E, ao mesmo tempo, estava acontecendo Woodstock! Janis Joplin, Jimi Hendrix, era um momento muito rico!
E – Muito poderoso.
A – Então, nesse momento a gente, que já tinha a ferramenta, que sabia ler música e tal, começa a tentar fazer, entendeu? Mas não é que a gente, desde pequeno, quisesse ser músico. Eu não tinha essa intenção.
S – Você veio da música clássica?
A – Eu vim mais da música clássica. Bem mais.
S – A música dodecafônica, o Schoenberg?
A: Não, isso aí… Eu uso o dodecafonismo em algumas músicas, sabe? Mas o Clara não é dodecafônico…
S – Não, o Clara não.
A – O Sabor de Veneno não é, sabe? Orgasmo Total é dodecafônica, praticamente até o refrão final, quando começa a repetir e deixa de ser. Mas ela é. O Infortúnio, a primeira parte é dodecafônica; a segunda parte não é. Mas tem muita coisa que não é!
S – É que é difícil alguém ter essa fonte da música clássica, para a popular.
A – Mas o pessoal tinha, viu? Você vê muita gente: o Tom Jobim. Mesmo o Dorival Caymmi, você vê como ele fala do Debussy: “Ah, eu gostava de escutar o Debussy…” Então, tem uma ligação. E o Tom Jobim curtia muito o Stravinsky, o Villa-Lobos… (…) O Egberto Gismonti. O Edu Lobo: o Edu Lobo é um cara que tem formação de música erudita. Então, você tinha naquele grande festival que virou filme (o documentário Uma noite em 67) – quem ganhou foi o Edu Lobo com ‘Ponteio’; o segundo lugar foi ‘Domingo no parque’, do Gilberto Gil, já fazendo uma coisa que chamou muito a atenção da gente: o arranjo do Duprat chamou muito a atenção da gente, lá. A gente estava em Londrina, né? O cara misturando berimbau com as guitarras elétricas! Tudo aquilo já é um negócio que tem a ver com a música erudita contemporânea. Então, tinha essa ligação e a gente estava muito interessado.
E – É uma experimentação boa de fazer, né? Abrindo portas, novos caminhos… E vocês tinham um grupo de música, lá em Londrina? Ou era um grupo de amigos músicos?
A – Não, ninguém era profissional. Nós éramos amigos – alguns eram músicos, outros escreviam. Mas aí viemos para São Paulo. Aí o Mário terminou o ITA, foi para a Bahia. Eles trabalharam um ano na Telebahia, ganharam dinheiro – ele e os amigos –, compraram um saveiro e montaram uma companhia de pesca! Lá em Mar Grande. Aí, depois, em uns 4 anos, eles faliram, porque não trabalhavam, e voltaram para cá. O Mário voltou para São Paulo e a gente passou a ter mais contato. O Robson estudava em Curitiba. Quem ficou aqui em São Paulo, mesmo, fomos: eu, o meu irmão, Paulo, o Itamar e o Tonelli, que largou a música e, agora, é um comerciante de instrumentos musicais – coisa que já era da família dele, os irmãos dele tinham uma loja em Londrina e tal. Ele desiste e vai trabalhar com o comércio de música. Ele estava certo! (risos) Se deu bem.
E – E como foi quando, nos anos 80, Clara Crocodilo explode? Como você se sentiu naquele momento? Era praticamente a sua primeira música, né?
A – É um negócio impressionante. Porque o Clara foi uma gestação, sabe? A gente fez a música em 72, aí, no final de 73, eu acho, tive a ideia para o nome da música, Clara Crocodilo – eu sabia que era um personagem. Fiz a letra, mas não tinha estrutura dramatúrgica. Ao longo de sete anos foi surgindo: a narração, no começo, depois eu falo aquelas coisas, isso foi tudo construído. Porque o problema é o seguinte, o Clara Crocodilo tinha dois refrãos. O primeiro: “Quem cala consente, eu não me calo / Não vou morrer nas mãos de um tira”. O segundo refrão (canta): “Clara Crocodilo fugiu / Clara Crocodilo escapuliu”. São esses dois refrãos. E a gente tinha feito a música modular, eram vários módulos. A gente tinha feito sete módulos diferentes. E, quando a gente compôs, a gente não pensava em letra; pensava em que as pessoas pudessem usar esses módulos para improvisar: você dá para uma orquestra e cada músico escolhe uma sequência e toca. E aí, eu acabei colocando a letra e tive que montar a música. Então, essa versão do Clara é uma das montagens possíveis.
S – Ah, que legal!
A – Ela é uma obra aberta, pode ser montada de outras maneiras. E o que permitiu isso foi a estrutura da narrativa radiofônica: como se eu fosse um repórter policial, e as pessoas acham que eu estou fazendo o Clara Crocodilo. Eu não estou fazendo, eu sou um repórter policial e estou indo entrevistar um monstro.
S – Muito legal. Tem outras gravações, outras versões?
A – Tem três versões. Tem a original; tem uma que eu gravei em 99, no SESC Ipiranga – que saiu, e você consegue encontrar na internet também; e tem uma versão que eu fiz agora, em 2014, com as meninas novinhas – acho que nenhuma delas era nascida quando eu fiz o Clara. A Maria Portugal está com 31 anos, eu acho. Eu gravei o disco faz 36… Então, fizemos essa versão com as meninas, elas curtiram muito. Muito legal!
S – Eu vou procurar.
A – Você encontra na internet. Você procura “Clara Crocodilo ao vivo no SESC Ipiranga”; depois tem Claras e Crocodilos, que é um outro disco; depois ainda tem duas versões que eu fiz com o Jamil Maluf, com a Orquestra Sinfônica Jovem e banda.
S – Que legal! Eu conhecia só a original. Você digita no Youtube, é a primeira que aparece. Outro dia eu estava ouvindo.
A – E tem aquela capa do Luiz Gê, né?
S – É.
A – Eu acho que o Luiz Gê fez uma filipeta, uma história em quadrinhos, anunciando o show na Funarte.
S – Ah, é? Vamos procurar…
A – A Suzana Sales deve ter isso. A Suzana Sales ou a Vânia Bastos, uma das duas deve ter essa filipeta, se não tiver lá na Funarte. Eu acho que foi o show da Funarte, sim.
E – Lá (na Funarte SP) não sobrou quase nada. Quando eles fecharam, quando o Collor e o Ipojuca fecharam (extinguiram o Ministério da Cultura e suas vinculadas), despacharam tudo embora, jogaram fora, mandaram as coisas para o Rio de Janeiro. E, depois, teve uma enchente, lá, que destruiu muito. Tem bastante coisa, mas muita coisa se perdeu.
A – Puxa vida! Olha, no SESC Ipiranga a gente fez uma exposição e eles tinham essa filipeta.
E – É só falar com a Rosana (Paulo da Cunha), aquela moça que foi à reunião. Ela é coordenadora…
A – É, Rosana. (…)
E – Isso é fato? Dizem que foi você quem trouxe o Itamar e trabalhou com ele no primeiro disco.
A – Não, o meu irmão. O meu irmão é que era amigo do Itamar, lá em Londrina: o Paulinho. O Itamar, quando veio para cá, eu e o meu irmão falamos, mas quem era mais próximo do Itamar era o Paulinho. Depois é que eu fiquei próximo do Itamar. Aí, o Paulinho falou (para Itamar Assumpção): “Olha, você pode vir para São Paulo, a gente arruma um lugar, uma república para você ficar”. Aí, o Itamar veio. E fomos arrumando os lugares para ele ficar.
E – Você lembra mais ou menos quando foi isso?
A – Em 74. Aí, em 75 a gente morou junto. Em 75 nós montamos o conjunto, que era eu, o meu irmão de bateria, o Tonelli no baixo e o Itamar cantando. E a gente foi morar numa república: alugamos uma casa perto da represa de Eldorado, longe pra chuchu…
E – Eu nem sei onde fica isso!
A – Perto de Diadema. Longe, longe, muito longe! Sem carro e sem telefone, fomos morar lá e ficamos ensaiando. Lá nós vivemos meio ano, juntos. Convivemos muito, porque a gente ficava o dia inteiro, não tinha lugar para ir. E aí, o que acontece, como acaba a coisa? O Itamar vem pra mim e fala: “Olha Arrigo, a Zena (Brigo de Assumpção) está grávida.”
E – Ah, ele já era casado?
A – Ele não era casado, mas aí ele fala: “A Zena está grávida, eu vou ter que largar isso aqui e arrumar um emprego”. Eu falei: “Claro, Itamar, vai lá! Pelo amor de Deus, né? Bicho, imagina!” Aí, ele saiu e foi morar naquela casa da Penha, já, onde ele morreu – eu lembro que a gente foi visitar a Serena, quando ela nasceu. Ele começou a trabalhar, se não me engano trabalhou no correio, trabalhou em algumas coisas. Aí, eu voltei para a ECA, tinha trancado a matrícula. Cada um foi fazer uma coisa, a gente se separou. Daí, eu, o Paulinho e o Tonelli fizemos um trio com a Eliete Negreiros – a Eliete cantando, fizemos um trio e tal. Foi uma coisa que também não avançou e, nessa época, eu conheci o dodecafonismo, em 78 mais ou menos. Aí eu comecei a compor as coisas. Cada um na sua, o Tonelli desistiu, foi trabalhar com outra coisa, fotografia, depois comércio de música… A gente se encontrava às vezes, e o Itamar começou a trabalhar com o Tom Zé, fazia percussão para o Tom Zé, se não me engano. Aí: “Ô, o Itamar tá com o Tom Zé!” A gente foi ver show, o Itamar tocando percussão para o Tom Zé. Era o Tom Zé? Acho que era o Tom Zé… E aí, apareceu o festival da TV Cultura. Eu chamei o Paulinho e o Itamar para fazerem o arranjo de base para as duas músicas. Eu escrevi o arranjo de teclados e metais e eles fizeram o arranjo de base de versões do Infortúnio. Aí a gente voltou a ficar juntos, a ficar mais próximos. Nessa época o Itamar compôs o Nego Dito e mostrou para a gente: “P., que música legal, que bárbaro!” Ele botou no festival da Vila Madalena, tirou o segundo lugar, o Nego Dito.
E – Você sabe quem tirou o primeiro?
A – Foi o Jorge Mateus. É um cara legal, tinha um trabalho bacana. Se ele tivesse tirado o segundo lugar, seria melhor para ele. Porque ele é um cara legal, tinha um trabalho interessante e tudo, sabe? Nesse período fizemos a banda Sabor de Veneno e o Itamar começou a abrir os shows.
E – Mas era só ele, por enquanto?
A – Não, ele com o meu irmão na bateria, o baixista tocava junto, o tecladista tocava, às vezes o Bozo (Barreti) escrevia alguma coisa para os metais. Então era um show legal, não era ele sozinho, com o violão. Ele abriu vários shows. E começou a ter uma resposta muito boa. Quando ele ganhou o festival com o Nego Dito, foi uma coisa mais forte, né? Nesse momento eu paro com a banda Sabor de Veneno e o Itamar monta a Isca de Polícia – e grava o disco dele, o Beleléu, Leléu, Eu.
E – Que foi lá no Lira Paulistana. E você também tinha essa relação com o pessoal do Lira?
A – Olha, o pessoal do Lira eu conheci assim: eu lembro do Ribamar, a gente se encontrou num bar do Bixiga em 78, acho. E ficamos conversando, eu falei pra ele do Diversões eletrônicas, que eu estava fazendo. Eu não o conhecia, ele era de Quixeramobim, e o Chico Buarque tinha uma música que falava de Quixeramobim, então: “Ah, você é de lá e tal…” Aí, a gente pegou um ônibus, umas 2 ou 3 da manhã, em frente ao (bar) Redondo (região central de São Paulo)…
S e E – Em frente ao Arena (Teatro de Arena Eugênio Kusnet)!
A – É. Pegamos um ônibus e eu desci na Cardeal (rua Cardeal Arcoverde), em Pinheiros (bairro da zona oeste de São Paulo) – ele foi me falando que eles estavam montando um teatro, não sei o quê. Depois, já em 79, eu conheci o Gordo.
E – Que é o Wilson Souto.
A – Que é o Wilson. Ele já tinha aberto o Lira, ainda era um lugar indefinido – era mais para teatro. E aí ele se aproximou de mim, começamos a conversar muito, fomos juntos à casa do Augusto de Campos, o Augusto queria falar… Na época do Sabor de Veneno, isso.
E – É, porque o Augusto começou com a poesia concreta, depois ele vai bastante para a área da música, né?
A – É, ele faz crítica de música.
E – Diferente do Haroldo, que ficou mais na área de literatura, no campo da crítica literária…
S – Vocês não tocavam muito no Lira Paulistana, né? Vocês tocavam mais na Funarte…
A – Não tinha como tocar no Lira. Porque a banda era muito grande.
E – Não cabia no palco!
A – É, você imagina, a gente tinha um set de percussão com xilofone, que já é um negócio que ocupa espaço; uma bateria; cinco sopros; três teclados; três cantoras; baixo, guitarra. E, naquela época, os equipamentos não eram pequenos. Então, os monitores, as caixas, eram todos enormes! Ocupavam espaço, entendeu?
E – E lá (no Lira Paulistana) era bem menor que o palco da Guiomar, né?
A – Ah, sim!
E – É que agora o palco está um pouquinho menor: antes o palco da Guiomar era um pouco mais profundo, não era?
S – Você tocou recentemente lá, não tocou?
A: Eu toquei em 2010.
S – É, eu já estava lá.
E – Já tinham feito a reforma. Você não achou que o palco ficou um pouco mais curto?
A: Puxa, eu não lembro, viu? Eu sei que teve alguma mudança. Eu lembro que o palco era ótimo.
E – É um palco bom, sem dúvida, mas eu acho que eles diminuíram.
A – Era um palco para teatro, também. Ali também se fazia teatro. Era muito bom, lá. Tinha iluminação, tinha vara de luz, era um negócio bacana!
E – Tinha uma boa estrutura.
A – Quem fazia a luz? Eu lembro que tinha um cara que fazia a luz na minha época…
S – Cacá… Cacá D’Andretta, não é?
A – E tinha um cara ruivo, bem ruivo. Alto, magro.
S – Eu não sei porque eu não conheci. Estou dizendo pelo que falaram nas entrevistas, acho que era esse nome…
E – Eu acho que ele está falando do Gyorgy. Alto, magro…
S – Pode ser o Gyorgy, então.
E – Ele está lá, ainda.
S – Mas o Gyorgy sempre ficou mais na área de exposições.
E – Mas acho que, como naquela época não havia tanta separação entre as áreas, ele pode ter convivido com o Gyorgy. Pode ser que o Gyorgy tenha trabalhado com shows, também.
S – Pode ser. Eu pensei naquele iluminador que alguém falou que era o marido da Myriam Muniz…
E – Ah… Mas acho que esse era só de teatro. Pode ser o Gyorgy…
S – Pode ser.
E (para Arrigo) – Então, você acha que ter esse espaço lá na Funarte foi importante para a cena paulistana, para essa música experimental?
A – Claro!
E – Tinha uma outra coisa: a imprensa, né? Isso era impressionante!
A – É, a imprensa tinha importância. As pessoas liam e a imprensa era mais consistente.
E – Tinha crítica…
A – Tinha crítica, era um negócio mais consistente, né? Hoje em dia, a internet já está ocupando o espaço da imprensa, né? E a imprensa é o seguinte… Não tem mais, e as pessoas já não dão mais importância.
E – Dão mais importância ao boca a boca do que ao que sai na imprensa. Porque quase tudo é pago, hoje, não é?
A – Agora, o Clara foi tudo boca a boca, viu? Incrível!
E – É porque era uma cultura bem alternativa…
A – Quando começou a sair, quando a coisa pegou, aí começou a sair na imprensa. Eu lembro que – eu não acreditava – o primeiro show que eu fiz na Funarte, quando terminou, os caras aplaudiram tanto! Mas eu não acreditava, dizia assim: “P., mas eles gostaram disso!” Tive que voltar cinco vezes, fazer bis!
S – Mas, agora eu estava pensando, acho que no seu caso deve ter sido mais boca a boca, mesmo. Porque eu estava procurando no acervo da Folha, no do Estadão, e eu achei pouquíssima coisa. Eu estava até inconformada e perguntei para a Marta, que era bilheteira naquela época: “Marta, mas o Arrigo Barnabé tocou aqui!” Ela falou: “É claro que tocou, Sharine!” E eu: “Mas eu não encontro muita coisa na imprensa.” Do Itamar Assumpção tem…
E – Mas o Itamar é depois.
A – É depois.
S: Seu (material de imprensa sobre Arrigo na Funarte), eu achei pouquíssima coisa. Tem, mas é pouco e são mais “notinhas”.
E – A Funarte é razoavelmente nova…
A – Gente, estamos ok?
S – Sim.
E – Desculpe por ocuparmos o seu tempo.
A – Imagina!