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Dia das Mães
No Dia das Mães, servidoras da Funai relatam os desafios de conciliar o trabalho à maternidade
Foto: Ana Paula Sabino com sua filha Carolina Rowehö Wéré’é - Acervo pessoal
No próximo domingo (14), em que é comemorado o Dia das Mães, a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) homenageia suas servidoras e as mulheres indígenas que enfrentam os desafios e vivenciam a maternidade real, e traça um paralelo entre a concepção da maternidade indígena e da maternidade não indígena.
Na sociedade não indígena, existe um sistema estruturado em que o papel social da maternidade é, muitas vezes, desenhado para ser desempenhado por mulheres, o que é aprendido durante a socialização e constantemente reforçado ao longo do tempo. Para muitas mães, esses papéis sociais de sexo reforçam essa estrutura hierárquica, e diversos mecanismos sociais, culturais e institucionais existem somente para garantir que esta hierarquia seja mantida.
Essa realidade contrasta com as sociedades indígenas, embora haja diferenças entre elas, já que existem, no mínimo, 305 povos indígenas no Brasil. Mesmo diante dessa pluralidade étnica, é possível identificar alguns elementos que atravessam as organizações sociais e culturais das sociedades indígenas e convergem para modos, em comum, do exercício da maternidade.
Para a coordenadora de Gênero, Assuntos Geracionais e Participação Social da Funai, Lídia Lacerda, a maternidade indígena pressupõe uma dimensão mais ampla que outros modelos de maternidade. “As crianças vivenciam as experiências sociais e têm participação em todos os espaços, respeitando, apenas, as interdições culturais. Se a mãe frequenta a universidade, reuniões, dentre outros, a criança acompanha ativamente. O processo de aprendizagem ocorre no dia a dia. Esses arranjos fortalecem o vínculo entre as mães e as filhas(os), assim como a dinâmica de convívio comunitário promove o exercício da maternidade compartilhada”, afirma.
Nas sociedades indígenas, o fenômeno da maternidade adquire uma leitura especial, em função da multiplicidade e riqueza da produção simbólica, e reflete uma cosmologia reveladora que o constitui. Neste contexto, o conceito de gênero e reprodução reflete uma cosmologia típica e reveladora do modo como os membros de uma sociedade constroem o seu universo e pensam sobre si próprios.
Veja, a seguir, depoimentos de servidoras da Funai que vivem, no dia a dia, o desafio de conciliar a maternidade ao trabalho específico e desafiador do órgão.
Ana Paula Sabino
Assessoria Parlamentar – Mãe da Elis, da Carolina Rowehö Wéré’é e do Francisco Tsiróbó Wéré’é
Ser mãe me trouxe vários desafios. Em alguns momentos até pensei em desistir da profissão para garantir os cuidados com os filhos. Para conciliar e harmonizar, o melhor caminho foi ensinar o quanto os Povos Indígenas são diversos e como cada qual tem suas especificidades. Em muitos momentos, é necessário trazer as crianças para a convivência com os parentes. Ter filhos, para as comunidades indígenas, não é um impedimento e sim uma conexão.
Muitas vezes, minhas crianças foram acolhidas e até mesmo amamentadas por mulheres indígenas enquanto eu trabalhava. O cuidado com as crianças é coletivo, sendo assim, a maternidade também é compartilhada com outras mulheres. A minha filha Xavante aprendeu a andar em uma aldeia Krahô enquanto eu cumpria uma agenda de trabalho.
Rita Almeida
Coordenação-Geral de Índios Isolados e de Recente Contato - Mãe do Jorge
Trabalhar para os povos originários e poder observar as suas lógicas comunitárias, sua relação com o tempo, me faz pensar bastante sobre acolhimento social da maternidade. Lembro daquele ditado que diz que é necessária uma aldeia inteira para se criar uma criança. A maternidade, nos moldes que nossa cultura concebe, tem me ensinado sobre reconhecer meus limites e estabelecer prioridades. Esses são imperativos quando você deseja ser presente, saudável e disponível para uma criança numa sociedade adoecida pelo excesso de trabalho. O desafio é ingrato. Mas tento escolher caminhos que me permitam operar no meu modo, que é lento.
Dentro da Funai, optei pela redução da carga horária e tive também que abrir mão, temporariamente, das atividades em campo, que são recorrentes na coordenação-geral em que trabalho. Entendo que o serviço público traz à trabalhadora melhores garantias que muitos outros setores. Não as entendo como regalias, absolutamente. Todas merecemos mais, não só no que tange à proteção do Estado quanto às condições de trabalho durante a primeira infância da cria, mas também em termos de acolhimento comunitário.
Maíra
Coordenação Regional Xavante - Mãe da Isadora
Assim como boa parte dos servidores da Funai, eu também fui trabalhar em uma cidade no interior do país, no vale do Araguaia mato-grossense, região na qual vivo até hoje e onde minha filha nasceu, distante da minha família, sem acesso por avião e com pouca estrutura. Hoje, com seus 11 anos de indigenismo, minha filha está acostumada a me acompanhar e já participou dos mais variados eventos: reuniões, cursos, encontros, seja na capital de Mato Grosso, seja em Brasília, mas principalmente nas aldeias. Todos os Xavante a conhecem e a viram crescer.
Sua primeira visita na aldeia foi aos 2 meses de idade, quando eu ainda estava de licença maternidade, e foi nomeada e ornada por um ancião. Aos 4 anos, ela me acompanhou na etapa estadual de Mato Grosso da Conferência Nacional de Política Indigenista, em Cuiabá. Aos 6 anos, foi comigo para um Encontro de Mulheres do Xingu. Além disso, já perdi a conta das suas incursões às aldeias Xavante.
Se, por um lado, esses encontros são enriquecedores para sua formação como cidadã, que certamente conhece a diversidade de culturas brasileiras como poucos neste país, por outro, muitas dessas situações aconteceram por falta de suporte e condições para que eu pudesse deixá-la enquanto viajava. Acabamos, mulheres, mães e trabalhadoras, nos sobrecarregando ao trabalhar e cuidar dos filhos ao mesmo tempo, em muitos casos frustradas por não conseguirmos fazer nenhuma das duas coisas direito.
Lucia Alberta Andrade
Diretoria de Promoção ao Desenvolvimento Sustentável - Mãe do Felipe e mãe de coração da Alane e da Bruna
Ser mãe, trabalhadora, esposa e dona de casa é uma mistura de muitas atribuições. Mas ser mãe é o que nos dá gás para superar qualquer adversidade que aparecer no meio do caminho. Eu sou mãe de um menino de 15 anos, e também mãe de coração de uma mocinha de 25 e de outra de 26, que é minha enteada. Todos acabam sendo filhos. A gente cria e cuida como se fossem nossas. Para mim, é um prazer muito grande tê-los em minha vida.
O nascimento do Felipe foi uma das coisas mais lindas que me aconteceu. Ele nasceu em Brasília, num momento em que eu tinha uma vida muito agitada. Eu viajava para acompanhar escolas indígenas e ficava de dois a três meses em comunidades do Alto Rio Negro (AM). Quando fiquei grávida, minha vida mudou completamente para que eu pudesse me dedicar a ele.
Mesmo assim, logo que ele nasceu, eu continuei viajando, e a dor mais forte que senti, quando eu ainda estava amamentando, foi que, quando ele tinha 5 meses e tive que ir a uma comunidade a trabalho, tive que deixá-lo com minha irmã, que também estava amamentando minha sobrinha. Eu ficava na comunidade, com os seios cheios de leite, olhando aquelas crianças e pensando como queria que meu filho estivesse lá comigo para mamar. Mas eu consegui resistir. Foram dias difíceis, mas ser mãe é isso: é superação, é carinho...é tudo.
Antonieta de Oliveira
Coordenação-Geral de Gestão Estratégica - Mãe da Marina, da Carolina e da Catarina
Quando entrei na Funai, há 37 anos, tive a oportunidade de conhecer os Povos Indígenas em suas Terras Indígenas. Vi as indígenas carregando cestas de alimentos na cabeça e, ao mesmo tempo, segurando as mãos de seus filhos. Isso me encantou e me fez sentir forte, e acreditei que podia ser mãe, cuidar dos meus filhos e trabalhar ao mesmo tempo.
Na Funai, conheci pessoas incríveis, inclusive meu marido, que me fez crescer como pessoa e profissional. Sou muito grata por isso. Sou mãe de três filhas, consegui conciliar a minha vida profissional com a maternidade. Tive apoio total da família, isso foi muito importante, me fez contribuir com o trabalho mais livre sem sofrimento e preocupação.
Na maternidade, percebi o quanto sou forte e, ao mesmo tempo, frágil pelo desafio de educar. Percebi minha capacidade de ser resiliente, de amar e estar sempre presente nos momentos felizes e difíceis da vida das minhas filhas.
Daniele Brasileiro
Coordenação Regional de Minas Gerais e Espírito Santo - Mãe do Pedro e do Gabriel
Quando fui para a Funai do Vale do Javari e morei no município de Atalaia do Norte (AM), eu já tinha meu filho, Pedro, que é uma criança especial, o que por si só já é um grande desafio, principalmente quando não se conta com uma rede de saúde adequada para dar um suporte. No entanto, eu ainda queria muito ter outro bebê, e comecei a me programar para isso. Um dia, fui chamada pelos Kanamari para tomar uma bebida tradicional utilizada em seus rituais, e eu vi uma semente em meu útero, que ria de uma maneira muito gostosa. Logo em seguida, engravidei. Em homenagem aos Kanamari, coloquei o nome de meu filho de Gabriel Karon, que é um nome Kanamari, e os indígenas têm um carinho muito grande por ele. É muito especial o carinho e a energia que os Povos Indígenas têm com a gente.
Flávia Denes
Coordenação Regional de Ponta Porã - Mãe da Beatriz
Trabalhar na Funai tem muitas peculiaridades, que tornam a maternidade ainda mais desafiadora. Nosso cotidiano é cheio de demandas que precisam de uma certa entrega, de dedicação, assim como o ofício de ser mãe. É muito difícil conseguir conciliar a necessidade de deslocamento, de trabalho de campo, de lidar com problemas complexos, com a tarefa de criar um serzinho que precisa de você todos os dias, e precisa de você inteira! Ainda amamento e pretendo continuar, mas sei que, para isso, ainda enfrentarei muitas barreiras profissionais, pois temos muito a avançar na construção de um mundo que, de fato, comporte as necessidades das mães trabalhadoras e suas crias.
Lorena Soares
Auditoria - Mãe do Paco
A Funai e o indigenismo entraram em minha vida pela via da maternidade, embora não a minha. Minha mãe teve na Funai um de seus primeiros empregos. Meus pais, como tantas outras famílias dos anos 1990 se separaram e, por diversas vezes, acompanhei minha mãe no seu trabalho. Ainda tenho na lembrança a sala da educação onde as colegas de trabalho indigenista generosamente ajudavam mamãe a me distrair ao longo do dia me mostrando seu trabalho, me ensinando a usar a máquina de datilografia, me explicando os usos das peças de artesanato que compunham o acervo.
Algum tempo depois, fiz o concurso e tive a felicidade de ser nomeada ainda em setembro de 2010 para a Funai-Sede em Brasília. Em 2015, tive meu filho, Paco, e novamente o ambiente acolhedor da Funai me permitiu uma maternidade tranquila, dentro dos parâmetros possíveis, é claro. Quando nos tornamos mães abdicamos de parte da nossa individualidade absoluta, de estar sozinhas quando dê a gana, de algumas viagens a trabalho, de dormir noites inteiras, da boa e velha diversão despreocupada. Mas, ainda que não tenha trabalhado na área finalística nesses 13 anos de Funai, devo dizer que muito me encanta a bravura de tantas mulheres indígenas e indigenistas que conheci ao longo dos anos, e me comove essa noção de que a criação é um trabalho coletivo e perene que altera nossa vida, mas não a impede de seguir.
Talvez por isso, ainda amamentando meu filho pequeno, cursei uma pós-graduação e fiz, como conclusão de curso, um trabalho de campo com os Potiguara da Paraíba. Novamente a ajuda de colegas, dessa vez da CGETNO e da CGGE, foi essencial. Muita gente me deu a mão para que eu trilhasse o meu breve caminho de pesquisa, dos chefes que me incentivaram a solicitar meu direito à licença capacitação aos colegas que contribuíram com a interlocução com os indígenas em campo e possibilitaram que eu adentrasse no território Potiguara com um bebê no colo e um caderninho cheio de perguntas.
A maternidade mudou tudo. Me fez mais sensível, mais cansada, mas imensamente mais corajosa. Conciliar essa função de tempo integral com o trabalho é extenuante e só se tornou possível pela ajuda da família, da babá, da escola integral. Contudo, embora árduo compatibilizar essas duas demandas, o sustento da minha maternidade só é possível pela via do trabalho. Felizmente, de um trabalho do qual tenho orgulho e que muito me alegro por fazer parte de toda a minha história.
Por Ana Carolina Aleixo Lima, servidora da Funai, mãe da Helena e à espera da Olívia
Assessoria de Comunicação/Funai