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Mutirão garante registro civil de indígenas de recente contato na região do Vale do Javari
No município de Atalaia do Norte, no estado do Amazonas, um mutirão composto por servidores da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e de órgãos parceiros atendeu à demanda por acesso à documentação civil do povo Korubo, constituído por indígenas de recente contato da região do Vale do Javari.
A iniciativa proporcionou o registro civil de nascimento de 87 pessoas. Os indígenas de recente contato, que têm como unidade de atenção indigenista a Coordenação da Frente de Proteção Etnoambiental Vale do Javari (CFPE-VJ), relataram dificuldades para obter a certidão de nascimento (CN), sendo que a principal demanda pelo acesso a esse documento está relacionada ao atendimento em saúde. Eventualmente, existe a necessidade de acompanhamento médico no meio urbano, internações hospitalares e acesso a tratamentos fora de domicílio. A falta de documentação civil dificulta o acesso dos pacientes e acompanhantes Korubo aos serviços de saúde e tratamentos médicos.
Durante a ação, foram atendidas cinco aldeias principais em dias diferentes. Os indígenas passaram por um processo de triagem que envolveu emissão da Declaração de Nascido Vivo (DNV) pelo DSEI-VJ SESAI, nos casos aplicáveis, tendo sido registrados individualmente em atendimentos por família que envolveram também entrevistas e serviços fotográficos para impressão de fotos em tamanho 3 centímetros por 4 centímetros (3x4) nos formulários de registros tardios. Ao final do processo, cada indígena teve acesso ao registro civil de nascimento e obteve a respectiva certidão de nascimento. Após obter a certidão de nascimento, os indígenas oficializam diante do Estado brasileiro seus nomes e sobrenomes étnicos, bem como sua nacionalidade.
Importante mencionar que os povos de recente contato possuem atenção diferenciada do Estado no que diz respeito ao exercício de sua cidadania e ao acesso a políticas públicas, uma vez que não dominam alguns códigos da sociedade nacional, como a língua portuguesa. Equipes indigenistas especializadas atuam, assim, com o intuito de facilitar o diálogo com outras instituições e promover a qualificação de políticas públicas.
Com vistas a assegurar constitucionalmente sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre suas terras, o registro civil de nascimento e a documentação civil básica não devem ser obrigatórios para garantir o acesso de povos indígenas de recente contato a políticas públicas como saúde, mas um direito e uma opção que pode ser acessada a partir de processos qualificados de escuta e consulta.
A ação foi idealizada e planejada pela CFPE-VJ e pela Coordenação-Geral de Promoção dos Direitos Sociais (CGPDS/DPDS), tendo contado com o apoio direto da Coordenação Regional Vale do Javari (CR-VJ) e da Coordenação Geral de Índios Isolados e de Recente Contato (CGIIRC). Com base nas reivindicações dos indígenas, a equipe da CFPE-VJ também articulou parcerias com o Cartório Único de Atalaia do Norte, com a Defensoria Pública do Estado do Amazonas (DPE-AM) e com o Distrito Sanitário Especial Indígena Vale do Javari (DSEI-VJ).
Segundo a Tabeliã Mariana de Almeida, “muita expectativa foi gerada, haja vista ser uma ação inédita com indígenas de recente contato em um local tão distante. Muitos desafios iniciais foram superados. A principal ameaça era o tempo da ação e o número de indígenas atendidos. A preocupação era a de que não conseguíssemos atender a todos. Foi a primeira ação de combate ao subregistro em local fora da sede do Cartório. Sendo um verdadeiro sucesso, nossa expectativa é promover mais ações nesse sentido em outras comunidades indígenas e, ainda, estabelecer uma interlocução entre as instituições para que o registro seja feito imediatamente em locais em que haja internet, possibilitando, assim, que o indígena não precise se locomover até a cidade, em viagens de vários dias em condições insalubres.”
Para o Defensor Público André Beltrão, “estamos falando de uma comunidade de difícil acesso, que vive distante da cidade. Aqui, a maioria dos indígenas não falam português e a produção documental é fundamental para que eles tenham acesso a direitos básicos existenciais, como o direito à autoidentificação, atendimento em saúde mais efetivo, dentre outros”.
Buscando atender às especificidades culturais e linguísticas de nomeação dos Korubo, o mutirão contou, ainda, com a presença do professor, pesquisador e linguista Sanderson Castro de Oliveira, que também atuou como intérprete, tendo facilitado a comunicação nas entrevistas sobre a descrição dos nomes, bem como a correta grafia nos formulários. Segundo Sanderson, " o acesso a bens, serviços e a fontes de renda são conversas antigas entre o grupo Korubo, contactado em 1996. Desde o início do meu trabalho, em 2007, posso asseverar que esses temas ocorrem com maior ou menor intensidade. Na verdade, segundo informações, essas conversas ocorrem desde antes da minha chegada. É importante registrar que o grupo contactado em 1996 interage com outros indígenas da Terra Indígena Vale do Javari, notadamente com os Matis, e que essa interação leva ao conhecimento das relações desses outros povos com a nossa sociedade e do conhecimento indireto sobre o funcionamento da sociedade envolvente. O documentário ‘Korubo: uma etnia entre fronteiras’, produzido em 2013, encerra-se com Takvan Vakwë dizendo literalmente ‘eu penso assim: vou aposentar minha mãe. Depois aposentar meu pai. Nós também temos que estudar, fazer documento também’. Longe de ser uma fala isolada, reflete várias discussões que já ocorriam na aldeia e várias demandas apresentadas aos atores locais. Em Oliveira e da Silva (2022), nós também apresentamos um breve relato das mudanças nas relações entre a CFPEVJ e o grupo Korubo, nos últimos 17 anos, terminando com a inserção do grupo no trabalho da Frente”.
Para o servidor Marco Túlio, "à medida que as variadas sociedades indígenas estabelecem o chamado ‘contato’ com a sociedade envolvente, sendo-lhes apresentada a necessidade de serem reconhecidas como cidadãs pelas diversas instâncias do Estado, cada uma desenvolve estratégias próprias de adaptação e usufruto do aparato burocrático. No caso dos povos denominados como de ‘recente contato’, desafios ainda maiores vêm à tona, uma vez que o domínio incipiente dos códigos e trâmites estatais por parte dos mesmos dificulta o pleno entendimento a respeito desta demanda, não raras vezes emergindo dúvidas acerca das reais necessidades e justificativas no momento da emissão de um documento X ou Y. No caso dos Korubo do baixo rio Ituí, público-alvo da atividade de emissão de RCNs na forma de mutirão in loco, tal atividade propositiva visou a sanar, como um todo, uma demanda prática há muito estancada, qual seja a garantia do acesso aos serviços estatais e plena cidadania, os quais têm como pré-requisito o acesso à documentação civil básica. Importante destacar, ainda, que o mutirão realizado via articulação interinstitucional se ateve aos três subgrupos Korubo hoje residentes em cinco aldeias localizadas nas calhas dos rios Ituí e Itaquaí, cujos contatos foram realizados no ano de 1996 (grupo da Maya – igarapé Quebrado), 2014 (grupo do Visa/Pinu – rio Itaquaí) e 2015 (grupo do Xuxu/Mëlanvo – rio Branco). Os membros do grupo que reside no rio Coari (grupo do Makwëx), junto ao qual a Funai deflagrou plano de contingência e expedição para estabelecimento de contato no ano de 2019, se encontram, ainda, em estágio muito preliminar de pós-contato, não havendo, por ora, premência na emissão de seus registros civis de nascimento”.
O servidor Haroldo Resende destaca que “foi uma experiência inédita que demonstra o comprometimento e o grande amadurecimento institucional proporcionado por esta gestão. Foram superados desafios de coleta de dados e produção de informações para o objetivo da ação; foram superados desafios de interlocução e diálogos entre diferentes áreas administrativas da Funai e foram superados os desafios de alinhamentos interinstitucionais entre a Funai e as instituições parceiras. Essa sinergia entre diferentes atores e instituições corrobora ao sucesso da estratégia de levar os serviços públicos essenciais aos povos indígenas, proporcionando um atendimento diferenciado, mudando o paradigma de deslocamento dos indígenas aos centros urbanos para atendimento comum. Essa estratégia mitiga as vulnerabilidades sociais a que os indígenas ficam expostos nos centros urbanos. Isto é o reflexo da missão institucional da Funai de proteger e promover os direitos dos povos indígenas”.
A ação será acompanhada por uma fase seguinte de monitoramento ativo da CFPE-VJ e por oficinas de esclarecimento junto aos indígenas, para que conheçam o funcionamento dos sistemas e códigos urbanos, por exemplo os estataIs e de mercado. Também prevê-se dialogar junto aos indígenas sobre barreiras de acesso a direitos sociais que provoquem vulnerabilidades, em especial nas cidades.
Essa ação inédita no Vale do Javari buscou atender à demanda específica do povo Korubo, e representa um avanço significativo na execução planejada e diferenciada de promoção do acesso à documentação civil para indígenas de recente contato, oficializando o reconhecimento como cidadãos brasileiros e a garantia de seus direitos. O mutirão demonstra a importância da interinstitucionalidade e do diálogo entre as comunidades indígenas e os órgãos responsáveis, visando à construção de uma sociedade mais inclusiva e igualitária.
Assessoria de Comunicação/Funai