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Escolas Munduruku reativam práticas culturais antigas e geram renda na I Feira Cultural do rio Kabitutu, com apoio da Funai
A I Feira Cultural do rio Kabitutu (I Wuybabi Mubapukap Waodadi) ocorreu entre os dias 26 e 28 de maio, na aldeia Katõ, na Terra Indígena (TI) Munduruku, município de Jacareacanga, Pará. Segundo o professor de cultura e identidade, Lucimar Korap, “pensamos nessa feira para resgatar o que a gente perdeu”. Com esse objetivo, o evento contou com apresentação e comercialização de remédios, produtos do roçado e artesanatos, além de contar com exposições artísticas, apresentação de cânticos e instrumentos tradicionais, realização de rituais, entre outras atividades.
O evento foi idealizado pelos professores da região do rio Kabitutu, ligados à escola Karo Bempô, em parceria com a associação Wuyxaximã, representante das aldeias desta mesma calha de rio, e contou com a presença de oito escolas indígenas, sete delas vinculadas ao Polo Karo Bempô (Katõ), e a escola Parawa Iwun, da aldeia Karo Bixik, convidada especial vinculada ao Polo Base Sai Cinza. No total, participaram 16 aldeias (Karo Bixik, Maloquinha, Kintiliano, Estirão das Cobras, Cachoeirinha, Fazendinha, Katõ, Pedrão, Karo Cugwatpu, Taperebá, Nova Kabitutu, Barro Vermelho, Biribá, Porto, Kabitutu e Kaboro’a) e mais de 320 indígenas Munduruku.
Participaram também o Coordenador Regional da unidade da Funai de Tapajós, Hans Kaba Munduruku, sua equipe de servidores e a Secretaria de Educação do Município de Jacareacanga. A I Feira teve apoio da Funai, por meio da Coordenação de Processos Educativos (COPE/CGPC) e da CR Tapajós. Além disso, também contou com o apoio da Associação Wuyxaximã e do Presidente da Câmara dos Vereadores, senhor Giovani Kaba.
A estrutura da feira
As barracas foram construídas com materiais da floresta, ao longo de duas semanas de preparação, pelos próprios alunos e professores da Escola Karo Bempô. No dia 26 à noite, durante a abertura, os alunos e professores de cada escola inauguraram o evento com a apresentação de cânticos e danças tradicionais.
A partir do dia 27, as aldeias trocaram e comercializaram medicamentos feitos de raízes, folha, óleos e banhas de animais, coletados nas regiões dos campos de savana e nas matas do entorno. Trouxeram, também, produtos de seus roçados, como banana, abacate, buriti, açaí; priorizaram a culinária tradicional Munduruku, com beiju de farinha de mandioca (xin), vinho de açaí e buriti, formigas saúvas e o caramujo waretada, além de apresentarem uma enorme variedade de artefatos. Foram expostos e vendidos colares, pulseiras, cocares e outros adornos feitos de sementes, miçangas e penas de animais, cestarias e bolsas/jamanxim, feitos com palha de tucumã e de babaçu, bordunas, lanças e pilões feitos de pau-Brasil, arcos feitos de pau d’arco e uma tinta já pouco utilizada, chamada sura na língua munduruku.
Além de reativar e fortalecer práticas e conhecimentos que vinham deixando de ser utilizados e repassados entre as gerações, o evento também demonstrou seu potencial de gerar renda para as comunidades, a partir de suas produções tradicionais e sustentáveis, tendo movimentado mais de 20 mil reais. Para Faustino Kaba, ancião da aldeia Katõ, “os valores dos antigos falaram mais alto do que o daquelas pessoas que só querem acabar com as coisas por dinheiro. A venda dos produtos é necessária para gerar renda para as famílias e aldeias comprarem algumas coisas que precisam. Os remédios e raízes ficam muito distantes, por isso, é preciso valorizar o trabalho de quem foi coletar”.
A Feira reservou um importante espaço para a arte indígena contemporânea, com a exposição de desenhos e pinturas feitos por jovens Munduruku. Alunos do ensino médio do Sistema de Organização Modular de Ensino Indígena (SOMEI) reproduziram em tecidos os grafismos Munduruku utilizados na pintura corporal e explicaram seus significados. Os desenhos de Fladenilson Waro também ganharam os holofotes e foram motivo de debate e propostas de compra. Sua arte retrata histórias e conhecimentos do povo Munduruku. Parte das pinturas expostas serão utilizadas em uma cartilha que está sendo elaborada pela escola Karo Bempô e Associação Wuyxaximã, com apoio do Museu do Índio e da COPE da Funai para uso nas escolas.
Fladenilson também foi o responsável pela comunicação visual da I Feira, cuja arte da logo homenageia Muraycoko. Na cosmologia do povo, de acordo com o professor Misael Kaba, o personagem mítico considerado como “pai das artes” foi o primeiro Munduruku a desenhar figuras zoomorfas nas pedras, hoje conhecidas como hieroglifos e petróglifos.
“A cultura do antepassado já ficou lá longe, agora as pessoas que estudaram estão fazendo esse trabalho [de retomada]. A gente não está deixando de lado nossa cultura. Um jovem mostrou seu trabalho de desenho, outro levantou o drone. Foi muito incrível. É assim que estamos aprendendo. Precisamos valorizar nossa cultura e a escola para continuar esse trabalho”, disse Faustino Kaba, ancião da aldeia Katõ.
Professores e alunos das oito escolas organizaram, ainda, apresentações de cânticos tradicionais coreografados, homenagens aos anciãos e lideranças da região do rio Kabitutu, bem como peças de teatro sobre partes da mitologia Munduruku, compreendendo histórias de guerra e da origem do mundo. Houve espaços para anciãos e anciãs apresentarem cânticos Munduruku ao longo de toda a Feira. Chamava atenção a quantidade de celulares e gravadores acionados por jovens professores e alunos nesses momentos.
Ao final do evento, as escolas apresentaram o que constava na programação como “surpresas”, associadas aos conhecimentos e histórias de suas comunidades. Entre os destaques, estava o chamado “tabaco natural”, plantado por um morador da aldeia Kaboroa. O fumo foi preparado e enrolado em folha de envira pelo professor Paulo Kaba, responsável pela escola Kaba Ojeybu. Atualmente pouco utilizado, o “cigarro tradicional”, como chamaram, que era indispensável aos rituais de pajelança antigamente, despertou interesse de muitos jovens participantes da feira. Sem misturas de outras substâncias, sua casca foi banhada em caldo de cana para evitar o cheiro forte da fumaça e prevenir doenças associadas ao tabaco.
A aldeia Kaboroa também apresentou um artesão de apenas nove anos tecendo um adorno a partir de técnicas ensinadas por seus pais e avós e, na mesma esteira, dois jovens artesãos da aldeia Karo Bixik fizeram uma rápida demonstração da tecelagem dos cestos, carro chefe da barraca que bateu recorde de venda na I Feira.
A aldeia Porto homenageou o primeiro cacique-geral do povo Munduruku, Biboy Kaba, reconhecido por dominar os saberes Munduruku relacionados à música cantada e instrumental, à história e à medicina do seu povo. Outro ancião homenageado foi João Tomé Akay, falecido em 2020, cujas brincadeiras e discursos repletos de humor foram reproduzidos por um professor da aldeia Estirão das Cobras.
Outro ponto alto do evento, foi a apresentação, pela aldeia Katõ, de tipos de taboca que não são mais confeccionadas entre o povo Munduruku e do ritual Parasuy. Segundo o professor de cultura e identidade, Lucimar Korap, que coordenou a confecção e apresentação dos artefatos, existem diversos tipos de taboca que fazem parte do sistema de comunicação do povo Munduruku. O objetivo da escola era reproduzir o máximo de instrumentos possível, mas encontraram uma grande dificuldade na obtenção dos materiais, já que poucos anciãos conhecem as áreas de coleta e os referenciais geográficos foram impactados e alterados pela exploração garimpeira ilegal, dificultando a localização dos mais velhos. Contando com a ajuda de um jovem caçador experiente e conhecedor da floresta, aluno do ensino médio da escola Karo Bempô, foi possível retirar dois tipos de bambus necessários. Assim, Faustino Kaba, sábio ancião da aldeia Katõ, filho de Biboy Kaba, ensinou professores e alunos a confeccionarem as flautas, chamadas na língua Munduruku de oho’a, hihi’uk e erebebe’uk.
Cada uma delas tem uma função específica no cotidiano do povo. O professor comenta, por exemplo, que todos os homens tinham uma oho’a, “assim como hoje temos os celulares”, para comunicar a localização ou algum fato durante uma expedição de caça, nos trabalhos da roça ou mesmo ao acordar, para que a esposa preparasse o mingau.
“Para nós, oho’a é um instrumento muito importante. Somente na aldeia Katõ é que se conhece, graças a Biboy, que guardou esse instrumento para nós. Pensamos nessa feira para resgatar o que a gente perdeu mesmo. Meu objetivo é valorizar e resgatar através da escola. Porque sem a escola, a gente não vai fazer nada. Nosso objetivo é mostrar o que a gente já esqueceu, principalmente essa parte dos cânticos e dos instrumentos”, conclui Lucimar Korap.
A surpresa da aldeia Katõ finalizou com os dois últimos anciãos tocadores de taboca do povo Munduruku e seus aprendizes conduzindo a festa das tabocas Parasuy. Durante sua execução, o som das flautas é acompanhado por danças e brincadeiras, com imitação de animais e outras provocações jocosas entre homens e mulheres. “Eu me emocionei com essa taboca, lembrei do meu avô [Kaba Biboy] tocando e me deu vontade de chorar”, disse o professor Alcindo Poxo, da escola Karo Bempô.
O encerramento ficou a cargo da aldeia Taperebá, que honrou os espíritos ancestrais servindo aos convidados da feira mingau de manicuera em uma cerâmica sagrada (itig’a), ritual proibido de ser fotografado. As mulheres dessa aldeia são reconhecidas como as principais artesãs, detentoras do conhecimento técnico para a confecção das panelas de barro entre os Munduruku do Tapajós.
Novas edições
Ao final das apresentações, a avaliação dos professores, lideranças e anciãos foi bastante positiva e decidiu-se realizar o evento novamente na aldeia Katõ, em 2024. “Existe muito material e medicamento no território Munduruku para mostrar para nossos alunos. Estamos mostrando a cada liderança o que é a educação indígena. O aluno também tem que aprender o conhecimento da experiência”, avaliou Adenilson Kirixi, professor da escola Kirixi Cak, da aldeia Maloquinha. Para Alderino Karo, professor da aldeia Karo Bixik, a cultura Munduruku foi mostrada pelos professores e a escola tem esse papel de valorizar a cultura e o conhecimento dos anciãos.
Atentos aos acontecimentos na capital federal, em 28 de maio, os Munduruku do Kabitutu manifestaram-se contra o Projeto de Lei 490 de 2003, a tese do marco temporal, e as emendas apresentadas à Medida Provisória 1154. Também se colocaram a favor da manutenção das competências relacionadas à demarcação de terras indígenas no Ministério dos Povos Indígenas. Ao som de cânticos de guerra entoados pelos antepassados e comumente utilizados em mobilizações e atos contemporâneos, levantaram cartazes e fizeram falas em defesa de seus direitos territoriais, estreitamente relacionados à manutenção de suas práticas culturais expostas na I Feira.
Filhos de Biboy, o cacique geral, Arnaldo Kaba, sua irmã, Jandira Kaba, e o capitão da aldeia Katõ Edmundo Akay, partilham da satisfação por terem visto a valorização da cultura Munduruku e dos conhecimentos dos antepassados pelas escolas e jovens. Arnaldo Kaba lamentou que ainda são raros os momentos em que brincadeiras dos antigos, como as Parasuy, são realizadas e Edmundo falou nostalgicamente da forma como eram conduzidas por Kaba Biboy. Jandira reforçou que as apresentações e os cânticos apresentados deixaram alegres os corações de todos e fizeram muita gente sorrir. A I Feira deixa a esperança de que “a cultura continue acontecendo” e contribua para reduzir os problemas entre os jovens de alcoolismo e violência, que aumentaram significativamente com o avanço do garimpo na região.
Os impactos da extração ilegal de ouro na região do rio Kabitutu são visíveis, seja em suas paisagens degradadas, compostas por barrancos de garimpos abandonados, trechos de mais de 5 km desmatados em suas margens, cheios de resíduos e lixos deixados pela atividade, igarapés assoreados e água barrenta e poluída, seja na saúde de sua população, com o aumento de doenças associadas ao desmatamento, como malária, e à contaminação por mercúrio.
Em contraste, a I Feira Cultural, mostrou a enorme variedade e riqueza de medicina, alimentos e insumos para confecção de arte ainda existente nas matas e campos de savana da região. Sabe-se que a proteção das Terras Indígenas contra atividades ilícitas de exploração de recursos naturais tem papel fundamental para a consolidação de políticas ambientais e para o enfrentamento da crise climática mundial. Nesse sentido, fortalecer práticas culturais e conhecimentos que dependem e contribuem para o manejo da floresta em pé a partir de iniciativas como a I Feira Cultural do rio Kabitutu tem impactos positivos não apenas para o povo Munduruku, mas para toda a sociedade.
Para o Coordenador Regional do Tapajós, Hans Kaba, originário da região do Kabitutu, a feira mostrou que é possível promover a educação indígena e o trabalho para gerar renda, a partir do conhecimento do seu povo. “Tudo que teve ali é nosso. Não tem nada que é do não indígena. Mas foi apresentada somente uma parte, tem muito mais coisa que precisa ser repassada aos alunos e professores. Precisamos trabalhar para que tenha continuidade e para fortalecer as nossas formas próprias de formação e educação”.
Autores:
Aldilo Amancio Caetano Kaba Munduruku (antropólogo e pesquisador, aldeia Katõ)
Amilton Tomé Akay Munduruku (Diretor da Escola Karo Bempô)
Fernanda Moreira (servidora licenciada da Funai e doutoranda em antropologia, pesquisa junto ao povo Munduruku da região do Kabitutu)
Colaboração e Revisão: Amilton Tomé Akay Munduruku (Diretor da Escola Karo Bempo) e Anderson Moreira (servidor)
*A produção deste texto e os pesquisadores indígenas e não indígenas contataram com o apoio do Programa Engaged Reserach Grant da Fundação Wenner-Gren