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CULTURA E HISTÓRIA
Em artigo, Denilson Baniwa fala sobre fotografia, cinema e arte indígena
Ficções colonias (ou finjam que não estou aqui)
por Denilson Baniwa
A primeira vez que me lembro de ser fotografado por alguém que não conhecia, foi para performatizar uma mentira: fingir que aquele senhor vestido como um cosplay de Indiana Jones não estava ali, com uma 50mm mirando nossos corpos como se fossemos capas da próxima Vogue, pedindo várias poses “naturais”. Ajam naturalmente.
Vários cliques, várias poses. Muito obrigado, vocês são lindos.
Nunca mais ouvi falar do Indiana Jones com sotaque alemão, nunca soube o que fora feito daqueles registros. Talvez numa página da National Geographic, com uma manchete: fotógrafo alemão se aventura pela Amazônia selvagem e registra tribos e animais maravilhosos. Alles klar!
Olha o passarinho.
Meu primeiro contato com fotografia foi com uma máquina Love, com filme acoplado e descartável. Foi amor à primeira vista, com quem pude assassinar toda a comunidade clique após clique até acabar a munição. Falling in love. Foi um amigo da família em viagem para Manaus que a levou para revelar e ampliar as fotografias, meses depois chegaram as tão esperadas fotos e todos os fotografados estavam com suas cabeças cortadas na fotografia. Erro de paralaxe. Engraçado e tétrico. Motivo de risos dos mais jovens e de ira dos mais velhos. Uma parte deles havia sido roubada, decapitação fotográfica. Registros descartáveis, como a Love.
- Ele está nos fotografando, está roubando nossa alma.
Esta frase, que conheci na cidade grande, em forma de anedota, também é um erro de paralaxe, desta vez colonial. Um erro de observação causado pelo desvio óptico a partir do ângulo de visão do observador estrangeiro. Do ponto de vista de quem está de fora, olhando por uma janela colonial não é possível compreender o todo, então no meio disso tudo alguma coisa se perde ou é amputada.
Anga ou Sangawa significa tanto medida de tempo, vestígio, índice, retrato, fotografia, quanto também o espírito ou alma. Imaginei que o roubo da alma, então, não se referia talvez ao espírito metafísico, mas à captura dos direitos à própria imagem e narrativa. Penso que ninguém assinou a autorização de uso de imagem, como eu não assinei quando fui fotografado. E apesar da fotografia ser apenas um fantasma do que já fomos no momento do clique, ela ainda possui nossos corpos, aprisionados por uma ficção. E após a morte, a fotografia é esse espectro que nos assombra na sala de estar, trazendo saudades ou alegrias.
Luz, câmera e ação!
O primeiro filme que me recordo foi Alien o 8º passageiro. Não deve ter sido o primeiro, mas foi o que me marcou. Tive pesadelos, um medo irracional de uma coisa que eu nunca havia visto antes, alienígena assassino de pessoas inocentes.
Eu não assisti no cinema, longe disto, o filme é de 1979 e só fui ter contato em 1989, dez anos depois. Naquela época eu mal havia sido apresentado a uma Philco, preto e branca de 12 polegadas, acho que eram essas as características deste aparelho alienígena que pousara na comunidade. A mesma que me apresentou Fernando Collor e Lula. Assisti Alien num desses horários dedicados a filmes, logo após um dos debates políticos pela presidência do país. Toda comunidade se reunia para ver o futuro do Brasil, em frente a uma televisão minúscula, em preto e branco com mais fantasmas e ruídos que o filme e o país. O futuro chegou e não é melhor que o passado.
Caixa mágica!
Não lembro quando descobri que cinema é fotografia, mas foi genial saber que cinema são fotos agrupadas em sequência e, que passadas uma por uma rapidamente, dão a ilusão de movimento. Nossos olhos nos enganam, e o cérebro ajuda. Isso me fascinou. Então é isso. É possível roubar a alma em várias fotos e depois juntar tudo e revivê-la, com movimentos e voz. Um poder de criação digna de um deus, poder criar do zero uma vida, uma história. E nela criar vilões, heróis, mocinhos e bandidos.
Vilãs, heroínas, mocinhas, bandidas e qualquer coisa que desejássemos. Ao mesmo tempo, apagar a vida de quem serviria como modelo para esta criação. Não importa se alguém é pescador ou professor, eu posso matá-lo com a câmera e depois dar vida novamente, onde ele pode ser um cirurgião plástico ou aviador, conforme o poder de quem editar as imagens. A fotografia é um homicídio doloso, quando há intenção de matar, e o álibi é a ressurreição a partir do ângulo de visão do observador por trás das lentes. Eu matei, mas ressuscitei.
A fotografia nos dá o direito de matar e com o morto-vivo construir uma narrativa que caiba nos nossos interesses. Um fantasma numa casca de sais de prata. Ghost in the Shell.
Cinema Paradiso!
Comecei a rever alguns filmes antigos. E tão animado quando Toto, de posse do projetor de películas, fui descobrindo a morte de alguns velhos conhecidos meus.
Agora já não acho que o xenomorfo Alien era o vilão, afinal ele estava lá na aldeia dele tranquilo, vivendo seu cotidiano, e chegaram naves que eram alienígenas para ele e começaram a perturbar o modo de vida dele e seus parentes.
Assim como a metáfora da chegada de alienígenas que destroem o modo de vida humano, ou de como o progresso avança pelo que é natural, e acaba revivendo um monstro que a humanidade não conhecia. É basicamente o processo de colonização que vivemos neste território. Nós, indígenas, somos aqueles que impedem a civilização de avançar para dentro dos lugares ainda não destruídos pela exploração.
Penso que o King Kong, retirado de suas terras para ser exibido como troféu e aberração, bem poderiam ser os Tupinambás enviados à Europa para exibição em praças públicas; O Godzilla, o Monstro do Lago, o Kraken bem podem ser representações do que acontece quando o progresso decide avançar para dentro das florestas, rios e ecossistemas. O mundo ocidental ficciona ataques alienígenas, que destroem pessoas e cidades porque foi isso que fizeram ao longo dos tempos, e teme um revide histórico. Pois, para os diversos povos originários deste planeta, um dia os alienígenas foram o mundo ocidental.
Invenção da tradição!
E ainda que a fotografia seja uma cópia da realidade, ainda assim é uma mentira. E é mentindo ou ocultando verdades que criamos tradições. São com erros de paralaxe e colagens de imagens que construímos a História, às vezes com boa vontade em ajudar e acidentalmente cortando vozes, e noutras propositalmente apontando a objetiva e enquadrando apenas o que nos atrai.
Neste lugar imagino a arte indígena como direito de resposta e direito de ficcionar também uma História do Brasil, e venho trazer pela colagem entre cinema, fotografia e reprodução em massa, metáforas rasuradas de ícones que acostumamos a ter em nossos lares, emolduradas por telas de televisão, salas de cinema e celular. Unir imageticamente realidades tão distantes da compreensão colonizadora é provocar um debate sobre apropriação, direitos de imagem e reprodução, onde o guaraná é original Sateré Mawê e a pipoca é Guarani.
Assessoria de Comunicação / Funai