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Justiça por Bruno, Dom e Maxciel
“Marinawa kinadih” – Um ano sem o Indigenista Bruno Pereira e o Jornalista Dom Phillips
A canção que Bruno Pereira entoava no vídeo gravado em 2019, e que repercutiu mundialmente após seu assassinato, se tornou um hino por justiça e um pedido de socorro dos povos indígenas, indigenistas e todos que se dedicam a lutar incansavelmente pela causa ambiental brasileira. O canto relata a história de uma arara cuidando de seus filhotes, e pertence ao povo Kanamari, que considerava Bruno um membro honorário do grupo.
No dia de hoje, cinco de junho, celebra-se o Dia Mundial do Meio Ambiente, e não há figura mais emblemática para representar esse dia que Bruno Pereira, cujo assassinato completa um ano nessa mesma data. Passados 365 dias após a tragédia, outras tragédias que ameaçam os direitos dos povos indígenas seguem sendo anunciadas como a aprovação do Marco Temporal, representada pelo PL 490/07, que restringe a demarcação de terras àquelas já ocupadas em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal.
Na data de hoje, um evento aberto ao público relembrando o assassinato de Bruno Pereira e Dom Phillips, e também pedindo justiça pela morte de outros indigenistas como Maxciel Pereira, morto a tiros em 2019 no Vale do Javari, será realizado na Maloca da Universidade de Brasília (UNB), às 16 horas. O evento terá a presença de Joenia Wapichana, presidente da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), servidores da Funai da sede e de unidades descentralizadas; e representantes da Confederação dos Trabalhadores no Serviço Público Federal (Condsef), Sindicato dos Servidores Públicos Federais no Distrito Federal (Sindsep-DF), Indigenistas Associados (INA), Associação Nacional dos Servidores da Funai (Ansef), União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja), Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato (OPI). Lideranças indígenas do Vale do Javari (AM) como Beto Marubo e Eliésio Marubo, além de artistas como Chico César, também farão parte da homenagem. Outras homenagens ocorrerão, no mesmo dia, em outros estados brasileiros, e também em outros países.
Na sequência ao assassinato do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Philips, foi instaurado um movimento grevista por segurança e condições de trabalho na Funai. Desde então, os servidores do órgão encontram-se mobilizados. Na ocasião, foi realizada a audiência de mediação entre a Funai e entidades representantes dos servidores, a convite da Procuradoria-Geral do Trabalho do Ministério Público do Trabalho. O evento resultou no estabelecimento da mesa de diálogo e na anuência de que a Funai atualizasse a proposta do Plano de Carreira para sua inclusão no Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias para 2023.
A aprovação do Plano de Carreira do órgão, segundo Joenia Wapichana, é essencial para o fortalecimento dos servidores que seguem na mesma luta que Bruno Pereira. “A busca pela justiça ganha força ao lado do fortalecimento da carreira de indigenista. Representando uma bandeira de luta, Bruno, incansável defensor dessas causas, destaca a importância desse movimento. Existe uma batalha contínua pelo reconhecimento nacional dos indigenistas, tornando crucial sensibilizar a sociedade brasileira sobre a relevância dessas questões”, apontou.
Para o coordenador da Política de Proteção e Localização de Indígenas Isolados da Funai (Coplii/Cgiirc) e amigo de Bruno, Guilherme Martins, falar do indigenista, mesmo um ano após seu assassinato, ainda é algo muito difícil. “O Bruno sempre foi, para mim, uma grande referência. Como um desses gigantes do indigenismo, ele sempre se destacou como um expoente da causa, junto com outros grandes nomes. Bruno sempre teve uma alma gigantesca e única, tendo um grande espírito de liderança que sempre me fascinou. Bruno foi fundamental dentro da política de isolados e de recente contato, que ele mesmo organizava, simbolizando uma referência para sua geração. A morte de Bruno é uma tragédia que envergonha o Estado brasileiro. A gente se tornou muito amigo durante a passagem dele aqui na sede, e continuamos amigos enquanto ele passava por um processo de perseguição política”.
Guilherme enfatizou, ainda, a importância da Funai dar continuidade ao legado do indigenista. “Bruno tinha uma paixão enorme pelo que fazia e acreditava muito no potencial das pessoas e na importância do que fazia. Acho que é isso que define os grandes indigenistas que resistem, apesar da falta de estrutura. A nova gestão da Funai tem uma grande responsabilidade e compromisso de continuar o legado do Bruno dentro do órgão, executando os projetos que ele idealizou antes de toda a tragédia acontecer”, declarou.
Não só o fortalecimento da carreira como o da Funai como um todo, por meio de investimentos na Política Indigenista, são necessários para que o que ocorreu com Bruno e Dom não se repita. De acordo com Joenia, “cumprir o trabalho de Bruno não é tarefa fácil. Para atingir esse objetivo, é necessário disponibilizar recursos e estabelecer prioridades. Os órgãos responsáveis são demandados a tomar medidas efetivas e superar o cansaço, reflexo da fragilidade de uma instituição cujo dever é proteger vidas e garantir segurança. Investimento e priorização são essenciais para o cumprimento da missão institucional”, explicou a presidenta, que afirma a importância da colaboração de outros órgãos nesse processo. “Para compartilhar essa responsabilidade e implementar uma política de proteção constante, é imprescindível a participação dos outros órgãos e ministérios. O reconhecimento dos direitos já consagrados deve ser assegurado, evitando favorecer unilateralmente um tipo de desenvolvimento em detrimento de outro. Acredita-se na capacidade dos atores envolvidos em promover mudanças e, assim como Bruno, todos estão engajados nessa luta”.
Daniele Brasileiro, amiga de Bruno Pereira e que trabalhou com ele por seis anos na região do Vale do Javari afirma que Bruno tinha como missão tornar o Estado brasileiro indigenista. “Eu fui me tornando indigenista mas o Bruno parecia que tinha nascido indigenista, sempre ouvindo os povos indígenas e encontrando soluções por meio do olhar deles. Ele sempre foi um gigante ao pensar em políticas que atendessem, de fato, a realidade deles”. No Vale do Javari, Daniele relembrou um fato ocorrido nas eleições de 2012, quando houve a morte de crianças indígenas que estavam indo com suas famílias votar. “Devido a essas mortes, a gente instruiu processos e passou a brigar para ter sessões eleitorais nas aldeias. Bruno tomou a frente disso e foi várias vezes a Manaus até conseguir o que queria. Já em 2014, não houve nenhum caso como esse devido às sessões já estarem nas aldeias. Isso é prova de que as políticas públicas devem estar onde os indígenas estão. Hoje, o cartório de Atalaia do Norte leva o nome do Bruno em homenagem a esse esforço que ele fez”, completou a indigenista.
Clarisse Jabur, que trabalhou durante mais de 10 anos na Coordenação-Geral de Índios Isolados e de Recente Contato da Funai (CGIIRC) e amiga de Bruno, relembrou o baque causado pela tragédia da morte do indigenista em sua vida. “Parece que eu nunca me recuperei. Quanta coisa aconteceu! O Ministério dos Povos Indígenas foi criado. A Funai tem a primeira presidente mulher e indígena da história. O Bruno iria gostar muito disso. Contudo, a Terra Indígena Vale do Javari ainda não está segura, indígenas ainda são assassinados brutalmente cotidianamente em todo o Brasil, bem como seus amigos defensores da causa. Até hoje, todos os dias, Bruno me dá conselhos, broncas e me incentiva a continuar lutando. Infelizmente, tristeza e revolta se tornaram combustíveis, assim como a força dos povos indígenas. Que Bruno continue voando na terra dos xamãs, emanando força para quem ficou nesse plano terreno. Continuaremos lutando pelo certo, pelos direitos legítimos, pelo cumprimento das leis”.
A liderança indígena e membro da Univaja, Beto Marubo, relembrou sua relação com Bruno Pereira e afirmou que seus ancestrais, há muito tempo, já falavam sobre garimpeiros ilegais e gangues de pescadores financiadas por redes de tráfico de drogas na região. “Essa situação tornou a Terra Indígena do Vale do Javari um local perigoso para lideranças indígenas e jornalistas. Foi aqui, em 5 de junho de 2022, que um desses invasores assassinou o Bruno e Dom. Na época de sua morte, Bruno trabalhava comigo na Univaja. Conheci o Bruno em 2010. Ele era um ‘nawa’ diferente, e se tornou meu irmão da floresta na luta para dar a esses povos isolados o direito de viver em paz em seus territórios”.
A importância da luta coletiva por um país mais justo e igualitário para que o exemplo de Bruno seja eternizado e sirva de motivação para o alcance de melhores condições de trabalho não deve ser esquecida. Para Joenia, “o objetivo é buscar um Brasil melhor, onde a justiça prevaleça e onde aqueles que trabalham incansavelmente para garantir segurança e proteção sejam valorizados. O serviço público desempenha um papel essencial para aqueles que dependem dessa segurança. Portanto, urge a necessidade de estabelecer um plano de carreira sólido, reconhecendo a importância desse setor na vida das pessoas. Ao destacar a luta pelos indigenistas, essa batalha coletiva busca construir uma sociedade mais justa e consciente, onde os direitos humanos sejam preservados e assegurados a todos os cidadãos”.
Joenia Wapichana, à época do assassinato, apresentou à Câmara dos Deputados o requerimento que criou a comissão externa sobre o desaparecimento de Dom e Bruno, que investigou o fato e fez recomendações a serem cumpridas pelo Estado brasileiro. A presidenta da Funai fez uma reflexão sobre a fragilidade e falta de repercussão das questões indígenas no país. “Se não tivesse um jornalista britânico envolvido, será que esse crime teria a repercussão que teve? Vemos tantas coisas que acontecem com os indigenistas e os povos indígenas e é tão pouca a visibilidade. Isso precisa mudar”, destacou.
Entenda o caso
Bruno Pereira, indigenista da Funai, e Dom Phillips, jornalista britânico do veículo The Guardian, desapareceram em cinco de junho de 2022, quando navegavam em uma região próxima ao Vale do Javari. Os restos mortais dos dois foram encontrados 10 dias depois, na Floresta Amazônica, e os assassinos confessos foram identificados e outros suspeitos seguem sendo investigados.
O município de Atalaia do Norte, que seria o destino de Bruno e Dom, está localizado em uma região de tríplice fronteira, que liga o Brasil aos países vizinhos Peru e Colômbia. O Vale do Javari, onde fica a cidade, também é o local com maior concentração de povos indígenas isolados do mundo. Por se tratar de uma localidade de difícil acesso, acaba sendo alvo de vários crimes ligados ao meio ambiente e aos povos indígenas, como o narcotráfico.
A região é rota de entrada de tráfico de drogas, sofre com pesca e caça ilegais, além do garimpo proibido em terras indígenas e a ação ilegal de missionários internacionais que invadem comunidades locais com o objetivo de catequizá-los. Em um vídeo gravado em 2020 e divulgado após seu desaparecimento, Bruno Pereira denunciou a presença de invasores na região e os riscos à segurança dos povos indígenas do Vale do Javari que isso representava.
Bruno pediu licença da Funai, em janeiro do mesmo ano, logo após ter sido exonerado do cargo de coordenador-geral de Índios Isolados e de Recente Contato, em 2019, durante a gestão do ex-presidente do órgão, Marcelo Xavier, recentemente indiciado pela Polícia Federal por omissão no caso junto ao ex-coordenador de Monitoramento Territorial do órgão, Alcir Amaral Teixeira.
Ana Carolina Aleixo Lima
Assessoria de Comunicação/Funai