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ENTREVISTA
Entrevista: Álvaro Simeão fala sobre o trabalho da Procuradoria Federal Especializada (PFE) junto à Funai
O procurador-chefe da PFE/Funai, Álvaro Simeão. Foto: Mário Vilela/Funai
Álvaro Osório do Valle Simeão é o procurador-chefe da Procuradoria Federal Especializada (PFE) junto à Fundação Nacional do Índio (Funai). Nesta entrevista, ele fala sobre o trabalho da PFE no âmbito da Funai, destacando novos entendimentos jurídicos e avanços nos dois anos de gestão do presidente Marcelo Xavier, como a publicação da Instrução Normativa nº 09/2020, que tem recebido diversas decisões favoráveis da Justiça e recentemente foi validada em toda a jurisdição do Tribunal Regional Federal da 3ª Região.
Formado em Direito pela Universidade Federal do Piauí (UFPI), Simeão é membro da Associação Brasileira de Juristas Conservadores (Abrajuc) e especialista em Processo Civil pela Universidade Cândido Mendes, do Rio de Janeiro, mestre em Direito das Relações Internacionais pelo Centro Universitário de Brasília e doutor em Direito pela mesma instituição, cuja tese foi defendida em 5 de agosto deste ano. Confira a entrevista:
1) Como a Procuradoria Federal Especializada presta suporte aos trabalhos da Funai?
A Procuradoria Federal Especializada junto à Funai, como braço da Procuradoria-Geral Federal da Advocacia-Geral da União (AGU), atua na assessoria jurídica extrajudicial e representação judicial da entidade indigenista brasileira tanto em temas indígenas como não indígenas. A missão é dar segurança jurídica aos gestores da política pública indígena a partir do equilíbrio entre os fins do Estado e os interesses políticos de governo na álea de liberdade ou não liberdade ofertada pela Constituição e leis da República. Atua também na defesa de interesses coletivos e difusos de comunidades indígenas em juízo, nos termos dos normativos próprios da AGU.
2) A PFE junto à Funai vem contribuindo para a consolidação de novos entendimentos jurídicos no âmbito da fundação. Qual deles o senhor destacaria?
Em primeiro lugar, é preciso destacar que a Procuradoria da Funai não se confunde com o procurador-chefe. São mais de 35 advogados com diferentes visões e interpretações acerca da política de apoio estatal ao índio e que contribuem para o sucesso da PFE/Funai.
A grande missão é coordenar e congregar esses diferentes pontos de vista diante de um momento claramente transicional pelo qual o Brasil passa em relação a muitos pilares do Direito Indígena. Não custa lembrar que as grandes salvaguardas constitucionais desse ramo do direito estão em revisão exatamente nesse momento no tema de repercussão geral 1031, em curso no Supremo Tribunal Federal (STF), sob a relatoria do Ministro Edson Fachin, e também no Parlamento, por via do Projeto de Lei (PL) nº 490 (axiologia judicial e parlamentar do marco temporal).
O que a Procuradoria tem principalmente feito é a construção de um olhar pragmático e objetivo, sobretudo em relação às questões fundiárias, dado o sinalagma histórico que perpassa direitos fundamentais indígenas, catalogados nos artigos 231 e 232 da Constituição Federal, e o direito de posse e propriedade privada, principalmente no meio rural, como definido no artigo 5º, inciso XXII, da Constituição de 1988. Esse olhar parte de análises principalmente econômicas e de desenvolvimento social para as comunidades. Apesar de entender que se trata de uma falsa colisão de interesses, a maioria das reformulações de entendimento operou-se nesse campo. São muitos os exemplos, mas eu focaria em três:
a) a revisão do entendimento jurídico acerca das possibilidades que se apresentam ao Estado para operar restrição cadastral sobre propriedades privadas em face de processos demarcatórios indígenas, que deu origem à Instrução Normativa (IN) nº 09/2020 da Funai. Em síntese, antes do novo entendimento, a Funai e o Incra já faziam inviabilização da posse privada, por restrição cadastral no Sistema de Gestão Fundiária (Sigef), que é o sistema de gerenciamento fundiário da União, desde a mínima reivindicatória fundiária indígena ou Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação (RCID) não ratificado pelo Ministro da Justiça. Agora essa restrição só se opera após fase mais adiantada do processo demarcatório, que é a homologação presidencial da área. Com isso, arrefeceram-se conflitos em mais de 6 milhões de hectares de terras no Brasil e finalizaram-se de 500 a 700 processos em que proprietários privados pediam indenização à União e à Funai por terem sido alijados da sua posse fundiária antes da fixação de um perímetro sobre o qual seria a área indígena ou em razão de apoio da Funai ao adentramento de índios em áreas privadas ainda não demarcadas (ainda que em processo de demarcação). Estima-se economia potencial aos cofres públicos da ordem de mais de R$ 100 milhões, quando se faz uma conta simples: a multiplicação do valor das pretensões postas em juízo vezes a quantidades de processos.
b) a fixação da diferença entre arrendamento rural de áreas indígenas (proibidas constitucionalmente) e acordos de cooperação para exploração de áreas indígenas (sem vedação constitucional ou legal). Antes tudo era colocado no conceito de arrendamento, o que dificultava o etnodesenvolvimento dos indígenas a partir do usufruto que possuem sobre as terras e reservas. Hoje é possível ao indígena colher know-how e apoio financeiro de grupos não indígenas para seu desenvolvimento, desde que observada a assunção de riscos proporcionais e mantido o princípio da majoritariedade dos lucros nas mãos dos indígenas, que continuam, assim, a ser os únicos usufrutuários da área. Fora de possibilidades como essa é trabalhar em cima de utopias ideológicas.
c) a fixação de um marco jurídico que possibilita ao indígena fazer planos de manejo para atividades extrativistas em áreas sob sua posse, inclusive no campo madeireiro. Entende-se que, observadas as normas gerais de extração de insumos da floresta, o indígena pode incrementar suas atividades extrativistas, inclusive visando alta escala e importação de commodities. O que não se pode é permitir que haja restrições a indígenas maiores do que as que existem para o agronegócio não indígena. Acreditamos em isonomia. Não faz sentido, por exemplo, o indígena estar proibido de plantar organismos geneticamente modificados (OGM) se o seu vizinho pode fazer isso. É algo contrário à livre concorrência.
Já no campo não fundiário, eu destacaria a defesa jurídica da heteroidentificação indígena, mas unicamente para a percepção de benesse estatal economicamente avaliável (para fins de simples convicção íntima vale a autodeclaração). Basta ver que, se somente a autodeclaração indígena for usada para a percepção desse tipo de benefício (cotas universitárias, por exemplo), a própria identidade indígena restará pulverizada. A nossa defesa vai no sentido de que é preciso que o indígena seja reconhecido por uma etnia/comunidade não extinta, conforme estudos antropológicos. Faço ressalva de que, apesar de a PFE ter esse entendimento, ele não foi endossado pelo Ministro Barroso na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 709. Tal decisão, apesar de calcada em brevíssima ou quase inexistente fundamentação, tem sido cumprida.
3) A Instrução Normativa (IN) nº 09/2020, que disciplina o requerimento, análise e emissão da Declaração de Reconhecimento de Limites (DRL) em relação a imóveis privados, foi elaborada a partir de estudos efetuados pela PFE/Funai em matéria indígena. De que forma a IN 09/2020 trouxe maior segurança jurídica à atuação da fundação?
Primeiramente, os conflitos fundiários foram reduzidos, e por uma razão muito simples: o combustível desses conflitos era a inviabilização da posse rural privada desde o início da demarcação. Essa inviabilização se dava pelo fato de que proprietários inscritos no Sigef não conseguem qualquer apoio estatal ou financeiro para produzir.
As terras, normalmente aceitas como garantia de financiamento, passavam faticamente a não mais servir a esse fim. Ora, como a maioria dos processos demarcatórios são complexos e judicializados (não conheço nenhum processo administrativo demarcatório no Brasil que não tenha sido levado ao Judiciário), isso significava uma turbação precária da posse por 10, 20 anos em média.
No nosso atual entendimento não há acirramento, pois, quando o Presidente da República homologa uma demarcação, esse ato opera efeitos nulificadores sobre escrituras privadas, sendo que a posse normalmente é a exteriorização desses títulos de propriedade. O fazendeiro não se insurge quanto a essa decisão com definitividade, mas se insurge ao ver seu patrimônio interditado por prazo indefinido e sem um ato que exterioriza juízo definitivo sobre a área.
Muito raramente se vê sucesso em uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF) cujo pleito seja a nulificação de um decreto homologatório de área indígena do Presidente da República, mas é muito corriqueiro a declaração de nulidade de relatórios antropológicos da Funai e portarias declaratórias do Ministério da Justiça de Segurança Pública.
Em segundo lugar, cessou-se um tipo de judicialização muito cara ao erário: aquelas baseadas em indenização pela projeção do tempo na demarcação sobre a posse privada. Quem tinha suas fazendas inviabilizadas por prazo indefinido, com a inscrição no Sigef, passava a cobrar a União por esses lucros cessantes e isso estava se avolumando muito, a pontos superiores ao próprio orçamento anual da Funai.
4) Recentemente o Senhor defendeu sua tese de doutorado “Mutação constitucional, hermenêutica jurídica e modificação de jurisprudência: um estudo sobre limites dialéticos e de método na jurisdição constitucional brasileira”. Quais aspectos do trabalho o Senhor ressaltaria?
A pesquisa se relacionou, durante quatro anos, com a catalogação de limites à interpretação constitucional levada a efeito pelo STF, sobretudo nessa quadra em que o ativismo judicial se projeta não somente sobre a autoridade da legislação como sobre a liberdade do Executivo em dar concretização às políticas públicas que lhe são próprias. Entendemos que essas funções devem ser soberanamente mantidas nas mãos do poder eleito, e não do poder nomeado.
O Supremo passou a construir interpretações que desafiam até mesmo o poder constituinte originário. A mutação constitucional consiste nos processos informais de alteração da Constituição, ou seja, sem que venha acompanhada de mudanças no texto estabelecido pelo Constituinte. Ocorre sobretudo pela via da interpretação judicial. Apesar de posições doutrinárias que entendem inexistir limites oponíveis a essas mutações, entendemos que, previamente a essa posição, é preciso separar três modelos de formação política dos Estados – declaratório, consensual e codificado – para concluir que somente nos modelos declaratórios, em que ocorre parametrização histórica e paulatina entre fatos sociais e normas jurídicas, livres de filtros pessoais, é que essa conclusão se mostra verdadeira.
No Brasil, nação de constitucionalismo codificado, é possível separar, em termos de tempo e eficácia, mutação constitucional (nas ruas) e declaração institucional de mutação constitucional (no STF). No modelo brasileiro, a alteração informal de sentido depende de construtos interpretativos pessoais a ligar o sistema social e o sistema jurídico, de modo que é possível, desejável e viável a catalogação objetiva de limites para a homologação institucional de novas realidades constitucionais.
Considerada essa premissa, identificamos limites à declaração estatal de mutação constitucional, sejam eles universais, baseados em método e diálogo, sejam próprios a uma definição de mutação constitucional ínsita ao Brasil (colegialidade plenária do pronunciamento interpretativo, reações dialéticas prévias entre estruturas estatais de poder, a estabilidade dos novos fatos presentes na sociedade que viabilizem uma ratificação institucional promotora de segurança jurídica).
Podemos exemplificar com o próprio julgamento do marco temporal. Ora, em se tratando de uma política pública e considerando que a data fundacional do Estado foi 5 de outubro de 1988, nada mais pertinente que a interpretação sobre esse desacordo jurídico e moral profundo fique nas mãos do poder eleito – o Parlamento – ou seja, compartilhado horizontalmente entre o STF, o Executivo e o Parlamento. É como pensamos, por acreditar sobretudo em uma jurisdição constitucional popular, não restrita às togas.
Assessoria de Comunicação/Funai