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O último dos antigos pajés do povo Yawanawa alça seu voo para a eternidade
O povo Yawanawa está em luto. Moradores das aldeias às margens do rio Gregório, no Acre, perderam um dos seus últimos anciões e o expoente de uma geração de antigos pajés. Com 106 anos, Yawarani cantava e contava histórias pela manhã da última quarta-feira (28 de março), deitado em uma rede na sua aldeia, quando seu coração parou de bater.
Conheci Yawa, como era carinhosamente chamado, enquanto eu visitava aquela Terra Indígena pela terceira vez, em fevereiro de 2017. Estava na aldeia escondido quando avistei aquele velhinho de porte robusto e saudável subindo o barranco apoiado em seu cajado e vestido de short estampado em tons azuis, uma camisa de cor clara com os primeiros botões desabotoados, sandálias e um chapéu de cor preta com miçangas que adornavam o adereço. Ele olhou para mim e com um sorriso doce disse: "Estou sabendo que tem uma branca importante por aqui e que era para eu vir participar do ritual que estão preparando para ela."
Já emocionada por ter o privilégio em conhecer o grande guardião das histórias do povo da queixada, apenas respondi que não deveria ser eu não aquela branca, mas que eu agradecia muito a presença dele ali. Passei uma parte daquela tarde na companhia de Yawa, que se revezava entre a rede e um banquinho de madeira na floresta a contar os causos que guardava em sua memória que tinia apesar do tempo e das batalhas desempenhadas ao longo de uma vida.
Contou-me sobre o contato com os não-indígenas e com os patrões da borracha, sobre as missões religiosas que se apossaram do local durante um tempo, de como todos foram expulsos do local, de como acontece a formação de um pajé e da sua preocupação em repassar os conhecimentos para os mais jovens, para que a história não se perdesse quando chegasse a hora de ele voltar para sua verdadeira casa, a sua morada espiritual.
A noite chegou e o ritual começou. Os jovens começaram a cantoria e não tardou para que o velho pajé se aproximasse para corrigi-los e ensiná-los. "Estão cantando errado, assim vocês não vão aprender. É assim que canta..." E soltava a voz e os passos sendo seguido pelos mais novos com o devido respeito que as crianças e os adolescentes dispensam aos idosos entre todos os povos indígenas que tive a oportunidade de conhecer nesses dois anos de Amazônia.
Yawa voltou para a sua cadeira e deixou que seus aprendizes continuassem a comandar o ritual. Chamou-me para perto dele e começou a cantarolar uma canção. A canção da onça. Eu ouvia respirando profundamente aquele momento para que ele não se perdesse jamais na minha memória que, diferente da dele, oscila entre a confusão e o esquecimento.
Não vai me gravar cantando?, perguntou Yawa. Sacar o gravador e a câmera fotográfica é sempre um momento de questionamento para mim quando estou em um ritual, mas com aquela autorização para registrar o momento, corri para buscar o meu apetrecho para congelar aquela voz que todos sabiam que não tardaria demais para se calar. Pronto, Yawa, está gravando. "Tem que gravar para guardar a história", disse o avozinho de voz suave e humor aflorado que não arredou pé do local até que o ritual chegasse ao fim. E foram horas que atravessaram a madrugada.
No dia seguinte, mais histórias e cantorias enquanto ele se embalava na própria rede e explicava que pajé mesmo tinha sido o irmão mais velho dele, o Tatá, mas que ele até que sabia alguma coisa. "Tatá sim sabia tudo." E sorriu. E depois riu. Tatá também ultrapassou os cem anos e morreu em dezembro de 2016, na aldeia.
Os irmãos voltaram para casa e junto com o legado de resistência deixaram também a preocupação de um povo que perde seus velhos, mas que luta bravamente para não perder jamais a sua história. E a nova geração do povo da queixada está aí para demonstrar que o caminho já está sendo trilhado, com suas festas, com o preparo dos jovens e com a revolução da força feminina com mulheres que são caciques, lideranças, pajés e que soltam suas vozes fortes quando chega a hora de entoar os cânticos ancestrais.
Fonte: Eu na Floresta/Estadão