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Em depoimento à CPI, ex-presidente da Funai nega fraudes em demarcação de terras indígenas
Em depoimento à Comissão Parlamentar de Inquérito instalada com o objetivo de investigar a atuação da Funai e do Incra nos processos de regularização fundiária de territórios indígenas e quilombolas, o ex-presidente da Funai, Mércio Pereira Gomes, negou a existência de fraudes nos processos administrativos que fundamentam o reconhecimento de terras indígenas.
Gomes, que foi presidente da Funai entre 2003 e 2007, período em que 67 terras indígenas foram demarcadas e homologadas, esclareceu que todo o trabalho da instituição indigenista encontra respaldo na previsão constitucional, no Decreto 1776/95, que regulamenta o procedimento de identificação e delimitação de Terras Indígenas, e em critérios técnicos e científicos que regulamentam o exercício das distintas áreas que compõem os estudos multidisciplinares necessários à conclusão do procedimento administrativo, dentre elas a Antropologia.
"Os processos são regidos por regras que compõem o que é o reconhecimento de uma terra indígena, e a maioria dos relatórios fala de uma história e da possibilidade de demarcação. A terra indígena é aquela que foi culturalizada pelo índio, que o índio reconheceu e sabe onde estão os seus limites pela memória e pela passagem dessa memória para os seus filhos. Para reconhecer como isso se dá, é necessário o conhecimento de questões que são parcialmente antropológicas e parcialmente indigenistas. Há uma busca de objetividade e de moralidade nos antropólogos", declarou.
O ex-presidente destacou, também, que o reconhecimento dos povos indígenas como os primeiros habitantes do Brasil e, consequentemente, a noção de que suas terras devam ser reconhecidas e protegidas, faz parte da nossa própria definição de nacionalidade. Nesse sentido, Gomes lembrou que essa concepção não foi "inventada pela antropologia", mas que está presente desde a formação histórica brasileira: "é o reconhecimento dessa nossa formação que fez com que juristas ao longo do tempo, jesuítas, desde Antônio Vieira, desde o nosso romantismo indígena com Gonçalves Dias, com José de Alencar, com Gonçalves de Magalhães, sempre tivessem esse reconhecimento dos indígenas como especiais, como parte de nossa raiz. E quando se chega na formação do positivismo brasileiro no fim do século, chega-se na noção de que os índios são nações que devem ser respeitadas pela nação brasileira, e de que suas terras devem ser reconhecidas e protegidas; de que não se pode entrar nelas sem pedir licença".
Em um segundo momento, Gomes apresentou o mapa geral de terras indígenas elaborado pela Funai no ano de 2012, a fim de apontar onde se concentram, atualmente, as principais terras indígenas do país e os principais vazios. Nesse contexto, demonstrou a predominância de territórios regularizados na região norte, na Amazônia Legal, e a situação de confinamento territorial vivenciada por diversas populações indígenas localizadas na caatinga nordestina, em áreas de cerrado do Centro-Oeste e na região Sul do país, onde se concentram os maiores conflitos.
Questionado a respeito da atuação das organizações não governamentais que atuam com povos e populações indígenas, o ex-presidente destacou a origem nobre e o papel complementar à atuação do Estado que essas instituições vêm exercendo ao longo de décadas de trabalho. Para Gomes, entretanto, o fortalecimento da atuação indigenista do Estado brasileiro, por meio da Funai, é insubstituível. "É importante a manutenção da Funai com força. As ONGs podem ajudar subsidiariamente e complementarmente", declarou.
No mesmo sentido, Gomes destacou a difícil situação vivenciada pela instituição indigenista, muito abaixo de sua necessidade operacional diante da imensa responsabilidade de gerir 13% do território brasileiro. Para ele, é fundamental que os parlamentares passem a atuar, principalmente, no fortalecimento da Funai e no incremento de seu orçamento, para que a autarquia cumpra com sua missão institucional junto aos povos indígenas.
Mitos e conspirações
O ex-presidente da Funai também esclareceu alguns pontos levantados pelos parlamentares acerca da existência de supostos interesses ocultos relacionados à demarcação de terras indígenas. Ao ser questionado sobre uma possível ameaça à soberania nacional decorrente da existência de grupos indígenas transfronteiriços que habitam, além do território brasileiro, o território de países vizinhos, como é o caso do povo Guarani, Gomes declarou que, ainda que o povo indígena constitua uma nação, um povo com território, cultura e modo de pensar diferenciado, é importante que se diga e que se respeite a sua condição de cidadãos brasileiros.
"Quem vive na fronteira tem uma intercomunicação. Agora dez índios entram no Brasil e isso vira um alarme? Por que que a gente vai olhar com olhos tortos para os índios ou para os negros que vem pra cá, se a gente olha todo feliz para os portugueses? Isso conta como uma gotinha d'água para o Brasil. Então eu não entendo de onde vem esse temor de que o Brasil seja invadido por índios paraguaios", declarou.
Indo além, a deputada Érika Kokay demonstrou ainda que, por trás de teorias conspiratórias, encontra-se o fundamento político dos grupos econômicos que compõem a CPI. Para ela, o argumento de que a demarcação de terras indígenas diz respeito a uma competição internacional com o agronegócio brasileiro corresponde a um mito uivado de preconceito. "Todas as vezes que se fala de ações dos povos indígenas, aqui se diz que eles foram manipulados, aqui se diz como se eles fossem seres sem nenhum tipo de conteúdo, sem nenhum tipo de querer, sem nenhum tipo de identidade, e que pudessem ser carregados de acordo com os interesses do capitalismo internacional", declarou, explicando em seguida que os argumentos reiterados nas falas dos parlamentares tratam de "processo absolutamente mítico e surreal na construção dos interesses da CPI, que são interesses do latifúndio, dos ruralistas, numa lógica fundamentalista patrimonialista".
Para a deputada, não restam dúvidas de que "há um fundamentalismo patrimonialista que quer ampliar as cercas", utilizando-se dos mais diversos argumentos para impor a sua agenda econômica. "É isso que está em jogo aqui. Aí se utilizam de qualquer tipo de argumento, que são argumentos rotos, argumentos que não vestem a essência dos interesses que estão dados nessa Comissão".
Kokay mencionou ainda os diversos preconceitos utilizados. "Há muitos preconceitos em curso, de que os indígenas são sempre manipulados, um desrespeito com o CIMI, um desrespeito com os antropólogos, chegou-se a acusar uma antropóloga de ter emitido um laudo em razão de um relacionamento que ela teria tido com um indígena, numa verdadeira expressão sexista, machista e, para além de tudo, desrespeitosa para o conjunto dos antropólogos", destacou.
No mesmo sentido, o ex-presidente da Funai manifestou, ao final de sua fala, posição contrária à Proposta de Emenda à Constituição 215/00, que visa, entre outras coisas, alterar o procedimento administrativo de demarcação de terras indígenas, transferindo sua competência ao Legislativo. Na avaliação de Gomes, a Proposta ataca a grandeza da Constituição Federal, e não ajuda a encontrar um caminho para a solução dos conflitos vivenciados hoje.
Para Gomes, "para quem pensa na formação brasileira como algo extraordinário, para quem pensa como Rondon e como Darcy Ribeiro, que acreditavam no povo brasileiro na sua formação e em suas potencialidades, redimir o índio, encontrar o espaço adequado do índio na nação brasileira é essencial para transformá-la em uma nação potente culturalmente que influencie o mundo".
Texto: Mônica Carneiro/ASCOM Funai