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Novo pacto entre Estado, povos indígenas e sociedade nacional é tema de debate no segundo dia de Conferência
Um dos grandes desafios para a consolidação da política indigenista brasileira é a implementação, na prática, dos direitos indígenas, reconhecidos após longo processo histórico de resistência, luta, construção e reformulação. A 1ª Conferência Nacional de Política Indigenista trouxe esse debate ao abordar, em seus eixos norteadores, dimensões essenciais ao projeto de vida das populações indígenas que, embora afirmadas em distintos marcos regulatórios, jamais se consolidaram na prática.
A Constituição Federal é considerada um divisor de águas pelos povos indígenas brasileiros, ao reconhecer, em seu artigo 231, seu direito a viver conforme seus usos, costumes e tradições, de forma a rejeitar e a superar as concepções tutelares e evolucionistas e os objetivos integracionistas até então adotados pelo Estado. Segundo essa visão, os mais de 300 distintos povos, suas tradições, seus conhecimentos e a diversidade de seus modos de vida representariam uma memória do passado. Suas populações seriam transitórias e estariam fadadas ao desaparecimento.
O protagonismo do movimento indígena e a rede de apoio da sociedade civil levaram a uma intensa mobilização para influenciar o processo constituinte em sentido inverso. O capítulo dedicado aos povos indígenas trouxe, portanto, inovações que refletem que o projeto de vida da sociedade brasileira reconhece a diversidade como um valor a ser preservado. Apesar disso, passados 27 anos de sua promulgação, a Constituição Federal apresenta resultados bastante modestos no que se refere à consolidação desses direitos na prática.
A metodologia da 1ª Conferência Nacional de Política Indigenista buscou abordar e promover uma ampla reflexão em torno de temas que reúnem e contextualizam os diversos princípios presentes nas normas nacionais e internacionais que reconhecem os direitos territoriais, sociais, econômicos, civis e políticos dos povos indígenas. Nesse sentido, foram debatidos, durante as 142 Conferências Locais e as 26 Conferências Regionais, eixos temáticos que abrangem: i) a dimensão do território, fundamento dos mundos indígenas; ii) a participação social e o direito à consulta, que garantem a autodeterminação, mantendo aberta a possibilidade de fazer escolhas; iii) as contribuições para o desenvolvimento sustentável, que pavimentam o caminho para o futuro; iv) os direitos individuais e coletivos, que articulam as abordagens universal e particular na garantia dos direitos humanos; v) a afirmação da diversidade cultural e da pluralidade étnica do Brasil como horizonte civilizatório para o país; e vi) a memória e a verdade que definem o comprometimento do Estado Democrático de direito com a efetividade dos direitos dos povos indígenas.
Wagner Krahô-Kanela é liderança indígena do Tocantins. Expulsos de seus territórios após intensos conflitos com as frentes de expansão do estado colonial, no início do século passado, seu avô, Krahô, e sua avó, Kanela Apanjekrá, passaram a viver em diferentes partes do então estado de Goiás. Durante muito tempo, a negação da própria identidade foi estratégia de sobrevivência. Wagner relata o esbulho e a discriminação como formadores da relação entre o seu povo, a sociedade e o Estado brasileiro: "Existe um cenário para nós, povos indígenas, que é de discriminação. Hoje se usa falar no termo emergente. Eu não usaria esse nome, nem ressurgido, porque quem morre nunca mais volta a viver. Eu posso dizer que meu povo é resistente; povo lutador. Muitos povos tiveram que se esconder e até em algum momento não falar que eram indígenas para hoje estar vivos, e hoje estar lutando em prol da reconstrução do seu povo".
Delegado do povo Krahô-Kanela na Conferência, Wagner trouxe a expectativa de ver seu território finalmente regularizado: "Em relação à questão territorial, que é um dos pontos aqui da 1ª Conferência Nacional de Política Indigenista, o meu ponto de vista é que tem que haver uma solução, primeiro, para esses trabalhos que já foram realizados, que já têm o estudo e que estão parados na mesa do Ministro da Justiça, na mesa da presidência da República. E uma outra questão é que as demandas que foram apresentadas para a Funai e estão aguardando equipes de estudo, que elas também venham a acontecer para que as Terras Indígenas que estão aí há muitos anos na espera possam ser regularizadas. A minha expectativa é a de que esses processos possam andar".
Weibe Tapeba, representante da Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do NE, MG e ES (APOINME), rejeita o argumento, presente em alguns discursos institucionais, de que os esforços do Estado devem ser concentrados na gestão dos territórios já demarcados, minimizando a dimensão de regularização das Terras Indígenas. Tal posicionamento, que reflete uma prática de negociação de direitos já conquistados, é responsável pela intensificação de conflitos fundiários em diversas regiões do país. Nesse sentido, o indígena aponta que "essa fala que tem sido colocada em espaços institucionais é uma fala contraditória e que não condiz com a verdade. (...) Nós temos uma pauta do movimento indígena significativa e que, de fato, requer uma atenção especial do estado brasileiro e uma demanda reprimida ainda muito grande". Como estratégia junto a essa questão, Weibe propõe a criação de uma política de demarcação e de regularização de Terras Indígenas no Brasil.
Outra grande preocupação demonstrada pela liderança se refere, ainda, às interferências em curso nos processos de regularização fundiária de Terras Indígenas, destacando as intenções de se dar um caráter político ao que a Constituição definiu como técnico-administrativo. "A gente pode ter certeza que os grupos de trabalho de identificação e delimitação de Terras Indígenas têm perdido sua autonomia. Nós temos que, de fato, demarcar espaço para que esse tipo de intervenção política na demarcação de nossos territórios não tenha vez", destacou. Para tanto, reforçou a exigência não só de que se mantenham os atuais procedimentos de reconhecimento dos territórios indígenas no executivo, como também de que a Funai saia fortalecida nesse processo de diálogo: "É um desfio muito grande dessa Conferência e isso está posto nas nossas propostas, a necessidade muito efetiva e urgente da gente garantir a autonomia e o fortalecimento da Funai na condução desse processo de demarcação".
Uma série de iniciativas legislativas também propõem a circunscrição dos direitos territoriais dos povos indígenas. O movimento indígena contabiliza, nesse sentido, 182 iniciativas parlamentares que afrontam diretamente seus direitos. Não obstante, o poder judiciário vem se utilizando dos pressupostos da decisão da demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol para fixar entendimentos doutrinários que também circunscrevem os direitos territoriais dos povos indígenas. São exemplos desses entendimentos a fixação, para o reconhecimento da tradicionalidade da ocupação indígena, do marco temporal em 05 de outubro de 1988, os empecilhos aos procedimentos de reestudo ou revisão de limites de Terras Indígenas, então condicionados à existência de vício insanável nas demarcações anteriores, e as circunstâncias que afetam, hoje, o usufruto exclusivo desses territórios.
Projetos de futuro
São desafios adicionais à plena ocupação, usufruto e gestão dos territórios indígenas o respeito aos seus protocolos próprios de consulta e tomadas de decisão em face de leis, práticas administrativas e empreendimentos que lhes afetem, e também às suas próprias concepções de desenvolvimento. Por essa razão, o Estado tem a obrigação de realizar consultas livres, prévias e informadas sempre que suas decisões e iniciativas possam impactar as terras e as comunidades indígenas.
Nesse sentido, Fernando Terena lembrou que, embora o direito à consulta esteja recepcionado no ordenamento jurídico brasileiro há 12 anos, assim como os demais direitos individuais e coletivos dos povos indígenas, ele não é respeitado na prática. "Eu ouvi isso de várias lideranças tradicionais ontem. Como fazer sair do papel, da letra fria e morta, para ações práticas e legítimas, e de forma correta e de boa fé, tudo aquilo que está previsto tanto na Constituição Federal quanto nas outras legislações, portarias, decretos e convenções?", questionou.
Diversos são os exemplos de empreendimentos realizados sem a devida consulta e discussão qualificada dos impactos e medidas de mitigação junto aos povos indígenas por eles afetados. Nesse contexto, Marcelo Kamaiurá destacou que as consultas precisam respeitar, de fato, a pluralidade existente nos processos de tomada de decisão de cada povo indígena, devendo se realizar junto às bases para ter legitimidade. "Para mim, consulta é um processo; um processo longo. É assim que queremos ser consultados, com mais tempo para conversar sem atropelo dos nossos direitos", concluiu.
Ao reconhecer que os povos indígenas têm autonomia em suas prioridades de desenvolvimento, o Estado brasileiro automaticamente assume o compromisso de estabelecer mecanismos específicos de participação social para adotar, em suas políticas, as diferentes concepções de bem-estar e felicidade que compõem os modos de vida dos quase 300 povos indígenas do Brasil.
Flávia Guarani Kaiowá acredita que o conceito de desenvolvimento sustentável precisa de melhorias. "Por parte do meio ambiente, sobre a plantação de desenvolvimento da terra é que nós indígenas conseguimos produzir várias coisas sem passar veneno. Nós indígenas não temos o costume de passar veneno porque não é bom pra gente. Então, nós, Guarani Kaiowá, produzimos arroz, feijão, mandioca, tudo naturalmente. E a gente sustenta as crianças, os jovens, adolescentes, todos se envolvem na roça. As crianças plantam, os jovens, os adultos, os rezadores. Na casa de reza tem várias plantações, tem milho e, inclusive, a gente planta amendoim com as crianças. Então a gente consegue produzir todos os alimentos sem passar veneno. Os venenos prejudicam as pessoas, os seres humanos. Dão doença. A gente tem uma produção sem veneno pra dar saúde para as crianças e para os idosos", afirmou.
A complexidade da questão indígena requer que todas essas dimensões sejam tratadas de forma complementar e articulada, tendo como ponto de partida o reconhecimento dos direitos territoriais como fundamento para o exercício dos demais direitos fundamentais. Por essa razão, as discussões em torno dos seis eixos temáticos propostos no processo de construção da Conferência foram amplas e continuam até a plenária final, que será realizada na quinta-feira (17), quando serão extraídas as diretrizes que nortearão a política indigenista brasileira nos próximos anos.
Texto: Mônica Carneiro/ASCOM
Colaboração: Matheus Alencastro/ASCOM