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Em videoconferência com oficiais da Academia da Força Aérea Americana, Funai destaca papel dos indígenas na construção do Brasil
Na manhã desta segunda-feira (17), na sede da Funai, em Brasília, os servidores Gustavo Menezes, doutor em Antropologia, e Nelmo Roque Scher, mestre em Linguística, participaram de uma videoconferência sobre cultura e política brasileira, com jovens oficiais da Academia da Força Aérea Americana, do estado do Colorado, interessados em conhecer a história, cultura e costumes dos povos indígenas do Brasil.
A entrevista iniciou com um dos assuntos de maior interesse internacional: índios isolados. Um dos participantes questionou aos entrevistados se ainda existem povos que não fizeram contato, se ele deve mesmo ocorrer, por quanto tempo permanecerão nessa situação e, ainda, quais os problemas enfrentados em relação a isso.
Gustavo explicou que o tempo que os indígenas ficarão isolados vai depender do interesse deles e cabe à Funai respeitar essa vontade, não impondo nenhuma velocidade. A política atual é de haver uma vigilância em torno dos territórios que habitam para que possam se reproduzir física e culturalmente conforme escolherem. Muitos povos se encontram nessa situação porque, no passado, fizeram contatos traumáticos, muitas vezes envolvendo massacres. O antropólogo citou, ainda, a importância das Frentes de Proteção Etnoambiental nesse cenário. Nelmo complementou explicando que, como principais problemas enfrentados no contato, estão as epidemias, "um simples vírus de gripe pode ser mortal para comunidades inteiras".
O baixo número de terras indígenas litorâneas no Brasil também foi alvo de questionamentos. "Onde estariam essas populações?", indagou um dos cadetes. Gustavo esclareceu que há sim uma miscigenação e que alguns desses povos estão retornando à sua noção de pertencimento, reivindicando direitos, como povos da Bahia, por exemplo, mas confirmou que, realmente, a maioria das terras indígenas estão localizadas na Amazônia Legal (área que corresponde a 61% do território brasileiro e engloba os estados do Acre, Amapá, Amazonas, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Roraima, Tocantins e parte do estado do Maranhão). Como uma das causas para isso, Nelmo explicou que, à época da chegada dos portugueses ao Brasil, em 1500, a colonização ocorreu de leste em direção a oeste, começando por regiões litorâneas como sudeste e nordeste, "eram em torno de 6 milhões de indígenas falando mais de mil línguas. Isso é um dado importante quando se verifica que hoje, em 2015, segundo últimos dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE, existem 305 etnias e 274 línguas."
Teve destaque também um dos assuntos mais alarmantes e de maior enfoque em 2015, a preservação ambiental. Os participantes questionaram como o desmatamento da Amazônia afeta as populações indígenas. Gustavo afirmou que não apenas as populações tradicionais sentem os impactos causados pela devastação (já que é da natureza que tiram sustento por meio de caça, pesca, coleta e agricultura), como são as principais responsáveis pela proteção do meio ambiente. O servidor citou mecanismos de proteção, como a Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas - PNGATI e, ainda, as próprias ações de vigilância praticadas pelas comunidades, com o objetivo de defenderem suas terras.
Os servidores entrevistados também traçaram um paralelo entre as políticas de proteção aos índios adotadas à época do "descobrimento" e as políticas atuais, pós Constituição de 1988. "Existia o paradigma integracionista, que buscava unificar os índios à comunhão nacional. Havia internatos e outras instituições, geralmente vinculadas à Igreja Católica, assim como políticas de conversão dos povos indígenas em cristãos, e o esforço para que falassem a língua portuguesa. Ao longo do tempo, essas políticas foram sendo alteradas. Mesmo assim, o Estatuto do Índio, de 1973, ainda continuou com essa política. Marechal Rondon, um dos grandes nomes do indigenismo brasileiro, tinha o seguinte lema 'morrer se for preciso, matar nunca'. A política dele possuía uma ideia humanista de preservação, mas ainda era uma proposta que pensava numa sociedade única, em que todos tinham que ter o mesmo tipo de cultura".
O antropólogo avançou na trajetória histórica e continuou: "uma mudança nesse paradigma ocorreu em 1988, com a Constituição Federal. Já não há mais uma política integracionista, que é a ideia de que o índio, ao longo do contato, deixa de ser índio. Essa é uma visão equivocada. Índio não é uma condição de aparência, é, acima de tudo, uma comunidade de memória, uma entidade própria. Não enxergamos mais o índio como aquele que não tem roupa, que não tem escrita ou governo centralizado. A ideia da constituição é entender que eles, mesmo falando o português e passando a utilizar tecnologias, continuam sendo indígenas por pertencerem a um segmento muito próprio da sociedade com uma ancestralidade marcada".
Respondendo a outros questionamentos, os servidores da Funai esclareceram o papel do Governo em relação à causa indígena, afirmaram que há um consenso de que deve haver incentivos à reprodução física e cultural das comunidades, assim como a garantia de direitos sociais; citaram instituições que possuem programas importantes de preservação cultural dos povos indígenas, como o Museu do Índio, órgão descentralizado na Funai que se localiza na cidade do Rio de Janeiro; e citaram trabalhos desenvolvidos pela Fundação em parceria com outras organizações, como a GIZ, Cooperação entre Brasil e Alemanha.
No que tange à educação, os servidores salientaram a importância de se distinguir o ensino formal (recebido pelos indígenas em escolas), da educação adquirida por transmissão de saberes. Nelmo esclareceu que "não podemos pensar que não há educação numa aldeia porque não há escola formal, pois eles têm a transmissão de saber dos mais antigos para os mais novos. Já a educação formal também precisa ser específica, diferenciada, em que a alfabetização seja feita na língua materna deles, o que significa um gigantesco trabalho de documentação das línguas indígenas, para que possam ser produzidos materiais didáticos nas línguas maternas", afirmou o Linguista.
Encerrando a videoconferência, os oficiais do Exército se mostraram curiosos em como seria o dia a dia da Funai e qual a parte mais desafiadora de se trabalhar na Fundação. Gustavo afirmou que o dia a dia é realmente muito intenso, e que o desafio da Instituição é promover a conscientização da sociedade para a importância do passado indígena na formação do Brasil, levando à população mais conhecimento sobre esse tema. "O entendimento médio do brasileiro sobre indígenas ainda é pouco orientado e cheio de estereótipos e preconceitos. Um de nossos desafios é tentar transformar a noção da sociedade e reescrever a história brasileira, traçando um capítulo novo aos livros de história e dando mais valorização à questão indígena na formação do Brasil", conclui o Doutor em Antropologia.