Juracy Montenegro Magalhães - Discurso de posse
JURACY MAGALHÃES
DISCURSO DE POSSE
MINISTRO DAS RELAÇÕES EXTERIORES JURACY MAGALHÃES
17 DE JANEIRO DE 1966
Sempre achei que não cabe aos homens públicos verdadeiramente cônscios de suas responsabilidades decidir quando estão quites com a nação; isto é, quando podem, à luz de suas próprias conveniências, ignorar o chamamento e rejeitar o desafio de novas missões. Esse profundo senso de responsabilidade, somado à honra singular de integrar o governo esclarecido e patriótico do Presidente Castello Branco, explica esteja eu hoje, Senhor Ministro, recebendo das mãos ilustres de Vossa Excelência a chefia desta Casa. Com efeito, depois do esforço desgastante para criar condições de estabilidade à situação política brasileira, depois de ter vivido os dias difíceis e trepidantes dos quais resultou o corajoso Ato Institucional n. 2 – do qual decorreram tantas consequências para a vida política do país, principalmente a extinção dos seus velhos partidos e o início de uma reorganização partidária que tende ao bipartidarismo – depois de vencida aquela etapa de minha vida pública, teria sido do meu interesse e da minha aspiração poupar-me ao peso de novas responsabilidades. Nada obstante, aqui estou, para assumir uma nova tarefa do governo da revolução, como porta-voz de sua política junto aos demais países do mundo.
Sei muito bem que encontro aberto, para a realização do meu trabalho, o caminho mais largo e promissor. Minha vivência política inclui dois contactos com o Itamaraty, ambos particularmente frutuosos para mim: o primeiro, em 1953-54, quando exerci as funções de adido militar junto à embaixada em Washington; o outro, mais recente, quando tive a honra de chefiar aquela missão diplomática, em momento de importância histórica para as relações entre os dois países. Em todas as ocasiões e sob todos os aspectos, vi confirmadas as tradições de excelência no trabalho e de inteira dedicação à coisa pública, que apontam esta casa ao respeito dos brasileiros e à admiração das chancelarias no mundo inteiro. Mais ainda, vejo o meu trabalho facilitado pelo que aqui realizou, desde abril de 1964, o eminente Embaixador Vasco Leitão da Cunha, exemplo melhor dessas tradições, a quem fica o Brasil devendo, além dos tantos outros que já prestara, o alto serviço de ter executado, com fidelidade, brilho e patriotismo inexcedíveis, na fase decisiva da sua implantação, a política externa da revolução. As coordenadas estão, pois, traçadas pelo grande chanceler, na linha tradicional de prudência e de sabedoria de que se pode, com toda justiça, orgulhar o Itamaraty. Ninguém estranhe, contudo, as modificações de métodos de ação. Cada administrador imprime ao setor por que é responsável a marca de sua personalidade. Fiel a mim mesmo, não posso modificar os métodos de trabalho que aprendi ao longo da vida, quando já estou numa idade em que alterá-los seria, talvez, mais do que simples transição, uma fraqueza de caráter. O que farei, o que tenho sempre feito, é adaptar os métodos às conveniências e às necessidades da missão a cumprir. Meditando, em Washington, sobre os problemas de política exterior do Brasil, tive oportunidade de defender algumas idéias, que procurarei aplicar no exercício do honroso cargo que ora assumo.
Por mais formidável que seja a importância do esforço que hoje realiza o Brasil, em direção à sua recuperação econômica financeira e à institucionalização da sua realidade política, é evidente que essa batalha, travada aqui, no recesso do nosso território, não esgota nem expressa todo o vigor do nosso espírito nacional. Nossa política externa é que espelha, aos olhos do mundo e aos nossos próprios, a plenitude da nossa imagem como povo e o sentido mais profundo do processo histórico que hoje vivemos. Essa política, tal como a definiu o Presidente Castello Branco, no magistral discurso do Instituto Rio Branco, em julho de 1964, não pode perder de vista o fato primordial de que é um instrumento a serviço dos interesses nacionais brasileiros. E, para bem defendê-los, com legitimidade de propósitos e conveniência de resultados, tal política não pode ignorar as determinantes de nossa realidade histórica, geográfica e cultural, que fazem do Brasil um membro nato do mundo livre, parte integrante da comunidade ocidental, à qual nos ligam à herança comum do passado e a identidade de anseios para o futuro. Trata-se de uma opção fundamental, que fazemos justamente no exercício da soberania inerente às nações seguras dos seus objetivos e capazes de construir o seu destino.
Ato voluntário e consciente, essa filiação cultural ao ocidente, essa solidariedade política ao mundo livre – fundamento de nossa política externa – não lhe esgota o conteúdo nem constitui hipoteca de qualquer espécie, capaz de lhe tolher o passo, na consecução do objetivo maior, que é aquela defesa intransigente dos interesses nacionais. Por ser legítima e voluntária, essa opção fundamental tem a vantagem decisiva de escoimar, desde logo, nossa política externa de qualquer veleidade autárquica ou tendência neutralizante, assegurando, assim, autoridade e respeitabilidade à voz com que expressamos o nosso pensamento. Nossa fidelidade ao Ocidente, por exemplo, não conflita, antes justifica e enobrece nossa solidariedade instintiva com os povos subdesenvolvidos, aos quais nos une a determinação comum de vencer as barreiras da pobreza e de compartilhar as conquistas e os frutos da civilização. Essa mesma clareza da nossa posição política empresta particular valor à ação da nossa diplomacia, quando insistimos pelo reconhecimento da estreita correlação entre comércio mundial e desenvolvimento econômico, quando pleiteamos, nos organismos internacionais competentes, medidas que remedeiem os efeitos da deterioração dos termos de troca, altamente prejudiciais aos países subdesenvolvidos e quando defendemos o ponto de vista de que a responsabilidade dos desenvolvidos, beneficiários da atual equação internacional de comércio, não pode ser contornada através de contribuições tópicas e paliativas, que não atingem o âmago do problema. Bem fixadas as premissas da nossa política externa, consoante às nossas raízes históricas, políticas e culturais, podemos fazer ouvida a nossa voz de país jovem, imune a qualquer legado colonial traumático, livre de preconceitos de raça, de um país com passado isento de qualquer conotação imperialista ou colonialista e com avenidas amplas e naturais de comunicação com todos os povos e continentes. Enquanto preservarmos nossa própria fisionomia e reconhecermos os valores maiores das nossas origens e da nossa circunstância histórica – e só na medida em que o fizermos – poderemos dar, para o encaminhamento e a solução dos problemas mundiais, aquela contribuição, autenticamente nossa, mas sintonizada com a comunidade a que pertencemos, que o Brasil está em condições únicas para oferecer.
Em suas relações com as diversas áreas do mundo, basta ao Brasil confirmar sua tradição diplomática de trabalho fecundo e constante em favor da paz e do entendimento, da aproximação e da cooperação internacionais. Com a Europa Ocidental, queremos enriquecer a tradição cultural comum, através da renovação espiritual e da intensificação do tráfego mútuo de idéias e de influências e do aproveitamento de todas as possibilidades para uma colaboração fecunda em todos os campos. Com países do leste europeu, desejamos uma convivência amistosa e o alargamento crescente das linhas de comércio em bases reciprocamente vantajosas.
Aos países afro-asiáticos, estendemos aos nossos melhores propósitos de entendimento fraternal e ampla cooperação. Quanto à América Latina, é o nosso âmbito natural. Aqui se desenvolve a nossa história e se gera o nosso futuro. Integrar-nos no mundo através e com a América Latina é um dos objetivos centrais da nossa política externa.
O Brasil empresta especial importância às suas relações com os Estados Unidos da América, em quem reconhece o líder do mundo livre e o principal guardião dos valores fundamentais da nossa civilização. Entendo que essas relações, que tive o prazer de ver fortalecidas a partir de abril de 1964, devem ampliar-se e aprofundar-se permanentemente, num alto nível de confiança, amizade e respeito recíprocos. Para que assim ocorra, será fator de decisiva importância a presença em Washington do eminente embaixador Vasco Leitão da Cunha, que leva para a chefia daquela missão o prestígio do seu nome e as qualidades de um dos mais eminentes profissionais da nossa diplomacia.
Esses, numa esquematização mais do que sumária, os fundamentos e objetivos da nossa política exterior. A serviço deles e na perseguição dos mais elevados interesses nacionais, esteve sempre, na primeira linha de ação, a diplomacia brasileira, neste momento tão dignamente representada por Vossa Excelência, Senhor Ministro, cujas altas qualidades pessoais e profissionais são bem uma síntese das razões que fazem do Itamaraty uma das reservas inestimáveis com que conta o Brasil para a conquista do seu futuro. Para a continuidade dessa obra de altíssimos méritos, ao responder à convocação do Senhor Presidente da República, por minha vez conclamo todos os funcionários desta Casa, certo de que, juntos e unidos, realizaremos a grande tarefa que nos espera.