João Neves Da Fontura - Discurso de posse
JOÃO NEVES DA FONTOURA
MINISTRO DAS RELAÇÕES EXTERIORES
3 DE FEVEREIRO DE 1946
Recebendo o cargo das mãos do embaixador Leão Velloso, o sr. João Neves da Fontoura pronunciou um longo discurso sobre a política externa do Brasil, de que damos a seguir os tópicos principais.
Começou dizendo que vão longe os tempos em que postos como o que assumia constituíam motivo de orgulho pessoal ou excitavam a vaidade, pois agora, nesta quadra de nivelamento democrático das responsabilidades, o exercício do poder tem de ser arrolado entre as obras de penitência de renúncia. Na diplomacia, os processos e métodos variaram, tornando-se quase sempre diretos. Reduzido como se acha o mundo, pelos progressos da ciência, criou-se uma indiscutível unidade, ao mesmo tempo agradável e perigosa. Continuamos, disse:
“Quando a noção das fronteiras geográficas de cada país assim se modifica pela invenção de novos engenhos bélicos e pelo aperfeiçoamento dos transportes aéreos, situando-se por vezes fora dos seus limites territoriais, é evidente que as garantias da segurança militar e as medidas de preservação da paz já se não podem deter diante de algumas categorias peremptas do direito das gentes, urgindo prevenir a agressão antes que ela realize a sua obra destruidora, quando não irreparável.
No plano internacional, este século amanheceu para nós sob o signo de uma nova estrela – a amizade mais estreita com os Estados Unidos e com todas as republicas do Hemisfério, num conceito de cooperação indispensável à vida comum e sem quebra da igualdade jurídica dos Estados, que a eloquência privilegiada de Rui Barbosa, sustentada de dentro deste mesmo gabinete pela lúcida decisão de Rio Branco, haveria de assinalar, na Conferência de Haia, como um dos postulados fundamentais da nossa política exterior.
Graças, de nossa parte, a essas diretrizes e à correspondência de sentimentos por parte da nação norte-americana, já a guerra mundial anterior nos encontrou na fileira das potências aliadas e associadas contra a primeira agressão germânica. Desta segunda, participamos desde logo pela formação natural e progressiva de uma opinião publica vigilante contra todas as manifestações do fascismo poderoso e ameaçador, e também contra todas as explosões do quinta-colunismo, sob disfarces nacionalistas.
A Carta das Nações Unidas, para cuja feitura a representação brasileira, sob a liderança de Vossa Excelência, senhor embaixador, colaborou eficazmente em São Francisco, andou com sabedoria ao aceitar a coexistência do sistema regional, com o sistema mundial. Os que combateram o nosso ponto de vista, afinal vencedor, incorreram na superficialidade de um simples preconceitos, porque o universal é a soma; a síntese ou a essência de todos os particularismos.
Armados com esses dois escudos de defesa contra a violência, confiamos em que será possível preservar a paz e assegurar aos indivíduos uma vida livre, mais feliz, mais humana, tendo como base a distribuição mais equitativa da riqueza entre todos.
Terei o cuidado especial ditado pela compreensão dos meus deveres neste cargo, aliás, continuando na direção desta Casa a atuação a que me devotei, com espirito com coração, no duro período em que coube chefiar a Embaixada do Brasil em Portugal, em levar a nossa colaboração com os Estados Unidos e os países do nosso continente a um grau e intimidade cada vez maior, de modo a poder contribuir para que o sistema recém-instituído em Chapultepec alcance a consagração final do Tratado de Paz e Segurança da América, associando todas as Repúblicas do Novo Mundo num trabalho harmonioso de cooperação e confiança reciprocas, constituição perfeitamente compatível com a Organização Mundial e na qual o Conselho de Segurança terá papel proeminente.
Essa obra virá coroar os esforços dos que no passado e no presente, sonharam com o tipo, ainda não conhecido na história, de uma comunidade de nações, que, embora não falem todas a mesma língua, não procedem das mesmas raízes étnicas, nem disponham da mesma riqueza, do mesmo poder econômico, das mesmas possibilidades militares, conseguem, em obediências às leis de geografia física e às necessidades do auxilio mutuo, associar-se por ato internacional, a fim de assegurarem a paz e a prosperidade de seus povos.”
Finalizando, declarou o novo ministro das Relações Exteriores:
“Não esmorecerá o Brasil em contribuir para a conquista de uma paz humanizada, ao abrigo de novas agressões e lutando para que as liberdades fundamentais à dignidade da criatura humana imperem afinal num ambiente de confiança e de concórdia. A guerra foi uma terrível e longa provocação. A paz será ainda uma longa e terrível guerra sem armas, até que cheguemos às bases de um estatuto capaz de garantir as ideias por que lutamos, e as únicas que justificariam os sacrifícios duramente suportados pelos próprios vencedores. Não alcançaremos com a rapidez desejada, mas talvez a obra conseguida, com paciência, conquistada com suor, produza frutos mais sadios, abundantes e duradouros, tornando mais forte a consciência dos deveres entre as nações e mais acentuada a era da fraternidade entre os homens. De nossa parte, faremos pelo advento de uma paz justa tanto quanto pudermos fazer pela vitória militar, jamais perdendo de vista as palavras de Rui Barbosa, quando preconizava como única solução para as divergências entre os povos “a constituição de um novo sistema de vida internacional, pela associação ou aproximação das nações, mediante um regime que substitua a lei da guerra pela justiça. Não se evita a guerra preparando a guerra. Não se obtém a paz senão aparelhando a paz.”
Logo após o ato da transmissão do cargo, o sr. João Neves da Fontoura dirigiu-se ao seu gabinete a fim de dar posse ao embaixador Samuel de Sousa Leão Gracie nas funções de secretário-geral do Itamaraty.
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* Nota: a tradição de o ministro das Relações Exteriores proferir discursos de posse iniciou-se no período republicano. Muitas vezes, no entanto, eram realizados de improviso, não deixando registros oficiais. Os jornais da época, nesses casos, apresentam transcrições de trechos ou paráfrases do conteúdo. Comparando-se as diversas versões, optou-se, no caso da posse de João Neves da Fontoura em 1946, pela que foi publicada no jornal Correio da Manhã em 3 de fevereiro de 1946, sob o título “A paz será ainda uma longa e terrível guerra sem armas”.