Celso Luiz Nunes Amorim - Discurso de Posse
CELSO AMORIM
DISCURSO DE POSSE
MINISTRO DAS RELAÇÕES EXTERIORES CELSO AMORIM
02 DE JANEIRO DE 2003
Excelentíssimo Senhor Ministro Celso Lafer,
Excelentíssimo Senhores Ministros,
Senhoras e Senhores Membros do Corpo Diplomático,
Senhoras e Senhores,
Desejo agradecer ao Senhor Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, a confiança em mim depositada.
É com satisfação que recebo o cargo do Professor Celso Lafer.
Com a eleição do Presidente Lula, o povo brasileiro expressou de forma inequívoca o desejo de ver realizada uma profunda reforma política e social, dentro de um marco pacífico e democrático, com ampla participação popular na condução dos assuntos do Estado. Coerentemente com os anseios manifestados nas urnas, o Brasil terá uma política externa voltada para o desenvolvimento e para a paz, que buscará reduzir o hiato entre nações ricas e pobres, promover o respeito da igualdade entre os povos e a democratização efetiva do sistema internacional. Uma política externa que seja um elemento essencial do esforço de todos para melhorar as condições de vida do nosso povo, e que esteja embasada nos mesmos princípios éticos, humanistas e de justiça social que estarão presentes em todas as ações do Governo Lula.
Convoco todos os diplomatas e servidores do Ministério das Relações Exteriores a participar ativamente deste grande projeto.
A política externa não é só responsabilidade do Itamaraty, ou mesmo do Governo. Ela envolve a sociedade como um todo. Para definir o interesse nacional em cada situação concreta, reforçarei a coordenação com outros órgãos governamentais e com os diversos setores sociais – trabalhadores, empresários, intelectuais – e entidades da sociedade civil.
Senhoras e Senhores,
O povo brasileiro deu uma grande demonstração de auto-estima ao manifestar sua crença na capacidade de mudar criativamente a realidade. Temos que levar esta postura de ativismo responsável e confiante ao plano das relações externas. Não fugiremos de um protagonismo engajado, sempre que for necessário para a defesa do interesse nacional e dos valores que nos inspiram. Como disse o Presidente Lula, precisamos traduzir, de forma persistente, nossos interesses e valores em pontos da agenda internacional.
O cenário em que teremos de realizar essa tarefa é complexo e nem sempre amistoso. A economia mundial está estagnada. Os fluxos financeiros se comportam de forma errática e segundo uma lógica perversa que penaliza os países em desenvolvimento. A despeito das muitas promessas, os mercados dos países desenvolvidos continuam fechados a grande parte dos nossos produtos. Práticas comerciais predatórias dos países ricos nos privam dos benefícios de nossa competitividade. No plano político, conflitos – que se supunha estarem em vias de solução – recrudesceram, alimentados pela intolerância e o fanatismo. Atos terroristas de indescritível barbárie provocam reações e suscitam posturas que têm o potencial de afetar os princípios do multilateralismo. O risco de guerra volta a pairar sobre o mundo. Tudo isso se reflete em crises econômicas, financeiras e políticas, que tendem a ser mais graves nos países pobres. Nossa região – a América do Sul – também sofre os efeitos desses abalos.
Senhoras e Senhores,
O aumento das exportações, a busca de tecnologias e investimentos produtivos serão elementos importantes da estratégia nacional de crescimento e da redução da vulnerabilidade externa. Participaremos empenhadamente das diversas negociações comerciais movidos pela busca de vantagens concretas, sem constrangimento de nos apresentarmos como país em desenvolvimento e de reivindicarmos tratamento justo. Saberemos nos articular, sem preconceitos, com as nações que compartilham conosco interesses e preocupações. Atuaremos em cada momento norteados pela necessidade de assegurar a compatibilidade do que está sendo proposto com as políticas nacionais. Lutaremos para preservar o espaço de flexibilidade para que possamos decidir, soberanamente, qual o modelo de desenvolvimento que mais nos convém.
Combateremos práticas protecionistas que tanto prejudicam nossa agricultura e nossa indústria. Trataremos de ampliar os mercados consumidores de bens primários ou semi-elaborados, que continuam a ter um papel importante em nossa pauta. Mas daremos ênfase especial àqueles bens e serviços de maior valor agregado e conteúdo de conhecimento. Para fazermos isso de forma sustentável, teremos que nos empenhar profundamente na verdadeira batalha pela eliminação de barreiras e subsídios que hoje distorcem brutalmente o comércio e privam os países em desenvolvimento de suas vantagens comparativas (as naturais ou aquelas obtidas através do esforço e engenho criativo).
É neste contexto de busca de oportunidades que vemos as grandes negociações comerciais em curso. Não queremos um Brasil fechado em si mesmo, imune aos ventos do progresso e da competição. Na ALCA, nas negociações MERCOSUL-União Européia e na Organização Mundial do Comércio trataremos de ampliar mercados para os produtos e serviços em que somos competitivos, procurando corrigir distorções do passado e evitando restrições excessivas à nossa capacidade de fomentar políticas sociais, ambientais, industriais e tecnológicas.
Ainda que nada esteja acordado em definitivo, os pressupostos em que se baseiam estes processos de negociação vão muito além de meras rebaixas tarifárias. Envolvem aspectos normativos sobre praticamente todos os campos da atividade econômica. Por isso mesmo, devem ser analisados com cuidadosa atenção, sem prejulgamento. A despeito dos prazos desconfortavelmente estreitos de algumas dessas negociações, pretendemos discutir amplamente com empresários, trabalhadores e outros setores sociais e com o Congresso Nacional as posições que devemos tomar, tendo em vista a vasta gama de interesses envolvidos e as complexas articulações que se fazem necessárias, a começar no âmbito do MERCOSUL.
No Governo Lula, a América do Sul será nossa prioridade.
O relacionamento com a Argentina é o pilar da construção do MERCOSUL, cuja vitalidade e dinamismo cuidaremos de resgatar. Reforçaremos as dimensões política e social do MERCOSUL, sem perder de vista a necessidade de enfrentar as dificuldades da agenda econômico-comercial, de acordo com um cronograma preciso. Temos que enfrentar com determinação as questões da Tarifa Externa Comum e da União Aduaneira, sem as quais a pretensão de negociar em conjunto com outros países e blocos é mera ilusão. Fundamental para a recuperação do MERCOSUL é a revitalização do Fórum Econômico-Social. Devemos impulsionar igualmente a Comissão Parlamentar Conjunta de modo a reforçar a participação da sociedade no processo de integração. Atribuiremos importância à construção de instituições comuns, de políticas sociais, de parcerias na área educacional e cultural, da livre circulação de pessoas e de mecanismos financeiros e monetários que promovam o comércio e a integração.
Consideramos essencial aprofundar a integração entre os países da América do Sul nos mais diversos planos. A formação de um espaço econômico unificado, com base no livre comércio e em projetos de infra-estrutura, terá repercussões positivas tanto internamente quanto no relacionamento da região com o resto do mundo. Vários de nossos vizinhos vivem situações difíceis ou mesmo de crise. O processo de mudança democrática por que o Brasil está passando com o Governo Lula pode ser elemento de inspiração e estabilidade para toda a América do Sul. Respeitaremos zelosamente o princípio da não intervenção, da mesma forma que velaremos para que seja respeitado por outros. Mas não nos furtaremos a dar nossa contribuição para a solução de situações conflituosas, desde que convidados e quando considerarmos que poderemos ter um papel útil, tendo em conta o primado da democracia e da constitucionalidade.
Uma América do Sul politicamente estável, socialmente justa e economicamente próspera é um objetivo a ser perseguido não só por natural solidariedade, mas em função do nosso próprio progresso e bem-estar.
Com os Estados Unidos da América partilhamos valores e interesses. Pretendo explorar ao máximo nossa história de amizade, fortalecendo as bases para o entendimento construtivo e a parceria madura. O diálogo fluido com os Estados Unidos da América é de fundamental importância não só em questões econômico-comerciais do nosso interesse imediato, mas também para assegurarmos influência no encaminhamento dos grandes temas da agenda internacional, de forma compatível com nossas dimensões e valores.
O Brasil manterá uma relação próxima e construtiva com a União Européia. Reconhecemos a longa história de êxito da União Européia na construção da paz e da prosperidade pela via da integração. No plano político, o diálogo com a União Européia e os países que a constituem é importante também com vistas a fortalecer os elementos de multipolaridade do sistema internacional. A cooperação com o Japão e outros países desenvolvidos será também fortalecida.
Forjaremos alianças com grandes países em desenvolvimento. Reforçaremos o diálogo com a China, a Rússia, a Índia, o México e a África do Sul, entre outros. Desenvolveremos, inclusive por meio de parcerias com outros países e organizações, maior cooperação com os países africanos. Angola e Moçambique, que passaram por prolongados conflitos internos, receberão atenção especial. Valorizaremos a cooperação no âmbito da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (a CPLP), inclusive com o seu mais novo membro, o Timor Leste.
Nossa política externa não pode estar confinada a uma única região, nem pode ficar restrita a uma única dimensão. O Brasil pode e deve contribuir para a construção de uma ordem mundial pacífica e solidária, fundada no Direito e nos princípios do multilateralismo, consciente do seu peso demográfico, territorial, econômico e cultural, e de ser uma grande democracia em processo de transformação social. O Brasil atuará, sem inibições, nos vários foros internacionais, regionais e globais. Incentivaremos a promoção universal dos direitos humanos e o combate a todas as formas de discriminação. Lutaremos para viabilizar o desenvolvimento sustentável e para eliminar a pobreza. Apoiaremos a cooperação internacional para o meio ambiente, em especial a implementação do Protocolo de Kyoto e da Convenção de Biodiversidade. Promoveremos o banimento das armas de destruição em massa e daremos impulso aos esforços pelo desarmamento, sobretudo o nuclear. Participaremos da luta contra o terrorismo e o crime organizado, com base na cooperação e no Direito internacionais.
A solução pacífica de controvérsias é um dos pilares da diplomacia brasileira. Após um encaminhamento que despertou tantas esperanças, é triste ver a deterioração da situação no Oriente Médio, onde vivem populações com as quais temos vínculos profundos. Não se pode, de forma alguma, abandonar a via pacífica e do diálogo, sob pena de perpetuar-se o sofrimento das populações envolvidas e de desencadear forças incontroláveis com enorme potencial desestabilizador para a região e para o mundo. É preciso resgatar a confiança nas Nações Unidas. O Conselho de Segurança da ONU é o único órgão legalmente habilitado a autorizar o uso da força, este recurso extremo a ser utilizado apenas quando todos os outros esforços e possibilidades se tenham efetivamente esgotado. Mas é igualmente importante para a credibilidade do Conselho em sua tarefa de manter a paz que suas resoluções sejam fielmente cumpridas. Defenderemos a ampliação do Conselho de Segurança com a inclusão de países em desenvolvimento entre seus membros permanentes, de modo a reforçar sua legitimidade e representatividade.
O crescente número de brasileiros que vivem e trabalham no exterior torna imprescindível uma vigorosa política consular e cultural capaz de assisti-los e de manter vivos seus vínculos com o País.
As políticas cultural, de cooperação técnica, científica e tecnológica serão elementos essenciais da política externa do Governo Lula.
Senhoras e Senhores,
Considero a honrosa indicação com que o Senhor Presidente da República me distinguiu como sinal de reconhecimento da excelência e patriotismo dos quadros do Serviço Exterior Brasileiro. A imagem pública que se tem da vida diplomática costuma ressaltar apenas os aspectos de maior brilho. Mas há um outro lado, de traumas pessoais e familiares, representados pelas constantes mudanças, readaptações forçadas e, em muitos casos, o enfrentamento de situações críticas, do ponto de vista material e psicológico. Tais dificuldades geram necessidades que não podem ser desatendidas.
No caso da carreira diplomática, enfrenta-se um complexo desafio: como conciliar a valiosa experiência acumulada com a justa e necessária renovação nos postos de chefia.
Estou consciente de que as tarefas que temos diante de nós somente podem ser executadas a contento com a participação engajada de todas as categorias de servidores do Itamaraty. Examinarei sempre com atenção e boa vontade suas sugestões e reivindicações.
Senhoras e Senhores, meus colegas,
Não só o Brasil, mas todo o mundo está consciente de qumie o País vive um grande momento de sua história. Pude testemunhar isso pessoalmente. Não são poucos os analistas, intelectuais ou ativistas políticos de variadas tendências que pensam que do êxito brasileiro depende não só o nosso próprio futuro, mas o de outras nações, que, como nós, buscam a via do desenvolvimento com democracia e justiça social.
Sou tentado a dizer, como o poeta, que tenho duas mãos e o sentimento do mundo. Mas o que me dá confiança é a certeza de que, desta feita, serão muitas mãos a colaborar. A tarefa é grandiosa. O Itamaraty não falhará na sua parte dessa missão.
Muito obrigado.