Celso Lafer - Discurso de posse
CELSO LAFER
Discurso pronunciado pelo Chanceler Celso Lafer na cerimônia de
transmissão do cargo de Ministro de Estado das Relações Exteriores, no
Palácio do Itamaraty, em 13 de abril de 1992.
Excelentíssimo Senhor
Ministro Francisco Rezek,
Minhas Senhoras, Meus Senhores
Convidado pelo Excelentíssimo Senhor Presidente da República, é com grande honra e
emoção que recebo, das mãos do meu colega e amigo Ministro Francisco Rezek, o cargo de
Ministro de Estado das Relações Exteriores.
A hora é particularmente desafiadora. A conjuntura internacional evolui com muita
velocidade. Modificam-se alianças e padrões de comportamento outrora rígidos e previsíveis.
Isto exige clareza de conceitos.
O liberalismo de inovação, ao qual eu me filio, reconhece a importância de uma
constante busca de eficiência que o mercado instiga, afirma a liberdade nos planos político e
pessoal, e exige o respeito ao primado da legalidade, inerente ao estado de direito. Sabe, no
entanto, que todas essas dimensões devem ser permanentemente vivificadas pela aspiração de
justiça social, enquanto tarefa ética imprescindível posta pela escala de desigualdades
prevalescentes no Brasil e no mundo.
Sem dúvida, esta visão do liberalismo que o Presidente Collor vem preconizando e
aprofundando facilita a harmonização do trabalho governamental, contribuindo para a
consecução dos grandes objetivos nacionais formulados com precisão e limpidez no seu
discurso de posse.
Desde os primeiros dias de seu Governo, o Presidente Fernando Collor indicou a
necessidade de tornar compatíveis as agendas interna e internacional. Ao assumir a Chefia do
Estado, o Presidente afirmava que: “a riqueza e a complexidade do momento não são motivo
para timidez e recuo; ao contrário, requerem sensibilidade nova, proposta de ação que seja
clara, que torne a política externa sintonizada com os objetivos da reconstrução nacional”.
Hoje, as realidades da vida internacional correspondem ao que apontavam os versos de
Camões: “Todo o mundo é composto de mudança, tomando sempre novas qualidades”. Daí a
importância da prudência como faculdade de orientar-se na História.
A comunidade mundial alimenta-se da simultaneidade de informações e da
consciência da interpenetração dos grandes problemas globais.
Os temas de alta política internacional não são apenas os da guerra e da paz;
concentram-se, igualmente, em torno das questões do desenvolvimento, dos fluxos
financeiros, do comércio, do intercâmbio científico-tecnológico, da proteção do meio
ambiente e da promoção dos direitos humanos.
A instabilidade, a ameaça ou o uso da força, no entanto, continuam a habitar o sistema
internacional, o que se explica pela interação entre forças centrípetas, de integração, e forças
centrífugas, de fragmentação. As primeiras exprimem-se através da globalização e da
interdependência; as segundas manifestam-se através do renascimento vigoroso das questões
das nacionalidades e muitas vezes têm sido fator de ameaça à paz e segurança internacionais.
Não menos preocupante e desestabilizadora é a persistência e mesmo o agravamento das
desigualdades entre as nações.
Minha visão, porém, é otimista. Confio no papel da razão, do diálogo e da moderação
como instrumentos específicos e válidos da cultura e da condição humanas em quaisquer
situações, mesmo as mais difíceis.
Entendo que o realismo é o ponto de partida da formulação da política externa, mas
não pode ser seu ponto de chegada, pois isso representaria mera acomodação ao peso dos
fatos e dos condicionamentos. Uma política externa para um país como o nosso requer uma
“visão de futuro”. É essa que dá sentido à atuação diplomática. Permite combinar a vontade
de transformar e a razão moderadora, a luta em prol de objetivos éticos e o sentido de
realidade, de maneira a ensejar para o Brasil um papel afirmativo no processo de reforma, ora
em curso, da ordem mundial.
O atual momento diplomático requer uma combinação de tradição e inovação. É
preciso criar o novo a partir do existente. Do acervo de nossa política externa, retiramos os
princípios fundamentais que marcaram historicamente nossa diplomacia, como o da solução
pacífica das controvérsias, a igualdade soberana dos Estados, a autodeterminação e a não-
intervenção. Estes princípios, hoje evidentes à luz da evolução do Direito Internacional,
correspondem, no plano externo, ao contrato social elementar que é a regra da reciprocidade.
São a base para realizar os ideais de justiça social, para atenuar as disparidades crescentes que
hoje ainda separam Homens e Nações.
Vossa Excelência, Ministro Rezek, cuja vida sempre esteve voltada para o Direito e
que me deu a honra de ser examinador em meu concurso para Professor Titular da Faculdade
de Direito da USP, soube zelar, com inestimável dedicação, e alto sentido ético pelo
patrimônio comum transmitido por nossos antecessores, entre os quais ressalta o patrono
maior que foi o Barão do Rio Branco. Soube, ao mesmo tempo, inovar ao transpor para o
plano das relações internacionais o projeto de modernização do Presidente Collor, legitimado
interna e externamente pela democracia.
De grande relevância foram as atitudes tomadas pelo Governo Collor na sua gestão,
Ministro Rezek, em relação aos novos temas globais. Entre esses seguramente se encontram o
respeito aos direitos humanos, a construção da paz, a ênfase na cooperação, e a meta da
integração.
O Brasil adquiriu, assim maior credibilidade internacional, ampliando quantitativa e
qualitativamente a faixa de sua operação diplomática.
Restaurou-se progressivamente a imagem do Brasil como pólo para investimentos.
Reintegrou-se o País aos fluxos dinâmicos da economia mundial.
A diplomacia é instrumento essencial e insubstituível neste processo.
Em política externa, trata-se descompatibilizar necessidades externas. Não existem
automatismos, nem ganhos fáceis. É preciso imaginação, vontade e esperança, para detectar
novos nichos de oportunidade.
Uma oportunidade – que nem o Brasil nem seus parceiros podem deixar escapar – é a
Rodada Uruguai, no GATT. Está em jogo a ordem econômica mundial, que o mercado, apesar
de todas as suas inegáveis virtualidades, não é capaz de assegurar por si só. O Mercado não é
um dado bruto, não opera no vazio. Requer uma moldura jurídica mais ampla, que deve ser
necessariamente objeto de construção política. A atitude positiva e conciliadora do Brasil na
Rodada tem sido constante e dá-nos o direito de propugnar por idêntico sentido de
convergência dos outros atores, de modo a garantir, sem unilateralismos, regras globais para o
comércio mundial.
A Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, por sua
vez, constitui outra oportunidade na agenda internacional. Consciente da magnitude deste
tema e do papel que lhe compete como país-sede do que será a maior conferência
internacional do pós-guerra, o Brasil buscará com determinação e perseverança afiançar o seu
êxito. Estamos convencidos de que é preciso desmobilizar atitudes de confrontação, e buscar
um consenso que permita realmente tirar partido desta ocasião única para reformular os
processos indissociáveis de promoção do desenvolvimento e proteção do meio ambiente, com
base na cooperação e não na recriminação mútua.
Assumo o Itamaraty plenamente consciente da complexidade da tarefa. Tenho certeza
de que serei apoiado por todos os que compõem os quadros desta instituição modelar,
respeitada no mundo inteiro por seu profissionalismo e competência.
Posso fazer minhas as palavras do Ministro Horácio Lafer em seu discurso de posse
nesta Casa, em 4 de agosto de 1959: “Estou certo de poder contar com a colaboração
esclarecida e tenaz do magnífico corpo de funcionários que, na Secretaria de Estado, em
Missões diplomáticas e nas Repartições consulares, empregam um esforço construtivo ao
serviço do Brasil. Por meu turno, podem eles estar seguros de que saberei defender, como se
meus fossem, os altos e legítimos interesses do Itamaraty e de seus servidores”.
Estou consciente, ainda de que os recursos humanos não prescindem, por melhores e
mais eficientes e dedicados que sejam, de condições materiais apropriadas, sobretudo nesta
era de acelerada evolução tecnológica. A diplomacia mudou talvez menos em sua essência,
em seu corpo de princípios jurídico-políticos, do que em sua percepção do tempo e do espaço.
Requer velocidade na captação e na transmissão das informações, agilidade nas reações e
acompanhamento incessante. Exige constante aprimoramento e sensibilidade redobrada.
Demanda imaginação e audácia, tanto quanto prudência e sentido de permanência.
Sei das dificuldades que o Itamaraty enfrenta. Cuidarei como meta prioritária de
superá-las no mais breve prazo. Comprometo-me com a busca tempestiva de soluções
duradouras e equitativas para os problemas institucionais e de carreira que afetam o
funcionamento da Casa. A hora é de unir, de somar, de assegurar a harmonia e o sentido de
excelência que sempre caracterizaram esta que é uma instituição permanente da Nação
brasileira. Para que juntos, sem exclusões ou discriminações, sob a liderança do Presidente
Fernando Collor, possamos contribuir para a grande tarefa do desenvolvimento econômico-
social do Brasil e para a inserção competitiva do País no mundo.
Minha atividade empresarial levou-me a seguir sempre de perto os problemas da
ordem econômica internacional. Experimentei na esfera da ação a necessidade de motivar
homens e mobilizar meios para alcançar metas previamente estabelecidas. Trago esta
experiência para o Itamaraty, como trago o penhor de uma vida universitária dedicada ao
estudo das questões internacionais.
Tenho abordado em muitos de meus trabalhos a relação entre democracia e política
externa. A democracia é uma maneira de organizar o estado e a sociedade que tem como
pressupostos o respeito pelo outro e pelos direitos humanos, a tolerância e o princípio da
legalidade. A associação positiva entre a democracia no plano interno e uma visão de mundo
traduz-se num internacionalismo de vocação pacífica, guiado pelos princípios da coexistência
e da cooperação. Daí minha visão da diplomacia como um processo de diálogo e negociação
que reflete externamente a convivência democrática no plano interno.
Não deixarei de ser coerente com as minhas reflexões. Desejo um Itamaraty permeável
aos impulsos da sociedade, do Congresso Nacional, da imprensa, da academia, do mundo
empresarial e do mundo do trabalho.
Com a orientação do Senhor Presidente, o legado de realizações que recebo do
Ministro Rezek, a colaboração desta Casa e o apoio da sociedade brasileira, assumo o desafio
que este elevado cargo impõe com a nítida consciência de sua complexidade. Mas assumo,
sobretudo, com o entusiasmo de um servidor que não abriga outra aspiração que a de dar o
melhor de si mesmo para o bem da República.