Afonso Arinos de Melo Franco - Discurso de posse
AFONSO ARINOS DE MELO FRANCO
DISCURSO DE POSSE
MINISTRO DAS RELAÇÕES EXTERIORES AFONSO ARINOS DE MELO FRANCO
01 DE FEVEREIRO DE 1961.
Senhores,
Ao assumir o cargo de Ministro de Estado das Relações Exteriores, para o qual fui convocado pela honrosa confiança do ilustre Presidente Jânio Quadros, não me iludo sobre as pesadas responsabilidades que me aguardam no exercício da função.
Só mesmo a consciência de modestos atributos que, mercê de Deus, nunca me faltaram o senso da responsabilidade e a dedicação ao trabalho permitiu-me atender, sem vacilar, ao convite do preclaro Chefe de Estado.
Secular e gloriosa é a história desta pasta, Senhor Ministro, história que Vossa Excelência realçou com a sua inteligência, cultura, tato e larga experiência da vida política, acrescendo novos títulos àqueles que fazem com que o Brasil confie no Itamaraty e dele se orgulhe.
O Ministério do Exterior vem sendo, na verdade, desde a Independência, uma Casa na qual homens eminentes têm sabido representar a nossa civilização em contínuo progresso; afirmar a nossa soberania em crescente consolidação; defender os nossos interesses que evoluem e se transformam com as mutações históricas; exprimir, em suma, nos contatos com a comunidade das nações, os traços da nossa personalidade, hoje plenamente desenvolvida e consciente dos seus direitos e deveres. Por outro lado, em diversas oportunidades, no Império e na República, os gestores da nossa política externa souberam representar fielmente a vocação pacífica do nosso povo, manifestada em tantos episódios, nos quais estadistas e diplomatas brasileiros foram a voz que aconselha, a inteligência que orienta, a força, em suma, que intercede entre os desavindos para restabelecer o bom entendimento ou a paz.
O vertiginoso progresso técnico-científico contemporâneo não alargou somente as fronteiras do conhecimento especulativo, senão que ampliou, também, de forma terrífica, o poder material do homem, rompendo, por isso mesmo, os antigos quadros jurídicos-políticos que regiam a vida das sociedades humanas, hoje incertas e sem rumo diante da penosa gestação do mundo de amanhã. Daí a contradição do nosso tempo, de que não se livra nenhum povo e nenhum regime de governo.
O conflito de fatores econômico-sociais gera a contradição de teses e soluções, sejam elas puramente doutrinárias, como, também, técnicas e governativas. Num ambiente mundial e histórico em tão constante e imprevisível movimento, poucos serão os valores permanentes da política internacional. É claro que estes valores, se subordinam ao objetivo final daquela política, que é o interesse nacional de cada país. Por outro lado, a natureza desses valores depende da formação histórica, da cultura e dos sentimentos predominantes de cada comunidade nacional, como também dos elementos ligados aos seus interesses, destino, missão civilizadora e forma de vida.
O primeiro valor marcante da formação brasileira é o sentimento inato da independência nacional, ou seja, a própria tradição de soberania do Estado brasileiro. Não devemos esquecer, contudo, que o Estado brasileiro soberano tem-se afirmado historicamente, desde a independência, vinculado à democracia, que é o único sistema de governo capaz de respeitar os elementos transcendentes da dignidade humana, dentro da instituição estatal. Como bem disse Nabuco, o Império, assegurando-nos o mecanismo da democracia parlamentar, evitou-nos a moléstia infantil do caudilhismo continental. Além de historicamente democrático, o Brasil é também um país pacífico, melhor diríamos, um país pacifista, sempre disposto a resolver e a contribuir para que se resolvam pacificamente os dissídios internacionais de qualquer natureza. Temos, assim, o tríptico de valores que devem presidir ao planejamento da política internacional do nosso país: soberania, democracia, paz.
O governo que se inaugura, sintetizado na forte individualidade do presidente Jânio Quadros, sente-se apto a praticar uma política internacional plena e vigorosamente obediente a essas diretrizes. A moderna noção de soberania transpôs a fase de simples afirmação polêmica de um Estado diante dos demais, para assumir uma conceituação dinâmica e operativa, cheia de consequências. A soberania de um Estado jovem como o Brasil não se limita, hoje, à sua exclusão da influência política de outra autoridade, especialmente de outro Estado, senão que significa a preocupação do Estado com o desenvolvimento nacional, estimulando as forças econômicas, culturais e sociais internas, e afastando ou neutralizando as influências externas que se oponham a tal desenvolvimento, ou o entorpeçam, sejam elas políticas, sejam também econômicas e, portanto, representativas não propriamente de Estados estrangeiros, mas de grupos e organizações econômicas alienígenas e internacionais.
A concepção atual da soberania, a que vimos de nos referir, exige uma grande autonomia nas atitudes da nossa diplomacia, inclusive no quadro das organizações internacionais, porque a nossa posição, nestes grandes palcos do mundo, deve corresponder ao que somos verdadeiramente, como povo, como cultura e como expressão econômica e social.
A nossa contribuição ao mundo cristão-democrático, ao qual indiscutivelmente pertencemos, só será efetiva na medida em que representarmos, dentro dele, a parcela de autenticidade que nos cabe; em que assumirmos a responsabilidade de exprimir as aspirações e reivindicações que estamos no dever e em condições de manifestar. O reconhecimento da autonomia e autenticidade das nações como as da América Latina, ou as novas do mundo afro-asiático, é um enriquecimento para o mundo livre, ao passo que a tentativa de enquadramento desses povos tão cheios de problemas e características peculiares em um sistema, que lhes é artificial, de normas e responsabilidades, é o meio certo de criar, dentro deles, naturais reservas e resistências. Na medida em que somos diferentes e temos problemas específicos, o atendimento desses problemas e o reconhecimento daquelas diferenças são os únicos meios capazes de integrar e fortalecer o mundo livre.
O Brasil se encontra em situação especialmente favorável para servir de elo ou traço de união entre o mundo afro-asiático e as grandes potências ocidentais. Povo democrático e cristão, cuja cultura latina se enriqueceu com a presença de influências autóctones, africanas e asiáticas, somos etnicamente mestiços e culturalmente mesclados de elementos provenientes das imensas áreas geográficas e demográficas, que neste século desabrocham para a vida internacional. Além disso, os processos de miscigenação com que a metrópole portuguesa nos plasmou facilitaram a nossa democracia racial, que, se não é perfeita como desejaríamos, é, contudo, a mais avançada do mundo. Não temos preconceitos contra as raças coloridas, como ocorre em tantos povos brancos ou predominantemente brancos; nem preconceitos contra os brancos, como acontece com os povos predominantemente de cor. A nossa Constituição possui uma esplendente disposição vedativa de tais preconceitos e, se me coubesse algum motivo de satisfação pelos meus doze anos de deputado, este seria seguramente o da autoria da lei que incluiu no Código Penal, a norma genérica da Constituição. Portanto, o exercício legítimo da nossa soberania nos levará, na política internacional, a apoiar sinceramente os esforços do mundo afro-asiático pela democracia e a liberdade, através de apoio às formas de pressão contra o princípio da livre determinação dos povos, do esforço, enfim pelo progresso das áreas e povos economicamente subdesenvolvidos. Se, por um lado, somos país com visíveis aspectos de subdesenvolvimento econômico e técnico, o que nos leva a inegável aproximação de interesse com o mundo afro-asiático, por outro, somos um povo convictamente democrático, sendo que, no campo do direito político e, agora, na prática do regime, o nosso amadurecimento institucional é admirável.
O espetáculo das últimas eleições, da apuração, do reconhecimento e da posse de Jânio Quadros na Presidência, a par de instrutivo para o mundo é, por igual, uma lição e uma advertência para os políticos nacionais. Revelou a magnífica maturidade do povo brasileiro para o exercício efetivo, e não apenas formal, da democracia e ensinou aos ideólogos superados, aos obstinados sectários e aos escravagistas intelectuais, que o nosso povo pode e quer resolver os seus problemas dentro da liberdade política. A esmagadora vitória de Jânio Quadros foi expressão desta advertência de que o povo brasileiro repele as ditaduras de qualquer tipo, personalistas, caudilhistas, de classe ou de partido. Nós, no Brasil, não carecemos de tais processos e livres, como somos, no cenário internacional combateremos sempre livremente. Esta palavra, liberdade, perdeu a sua conotação romântica do século passado; limitou os excessos individualísticos que lhe comprometiam o sentido humano e enriqueceu-se de novos tons sociais e coletivos, mas conservou o núcleo de significado eterno, que é o valor da personalidade. Por esta nova liberdade humana, social e coletiva, é que pugna a política internacional do Brasil, país anticolonialista, antirracista e convicto da necessidade do desenvolvimento como base da democracia. Isto corresponde a deixar bem claro que, se os nossos interesses muitas vezes são os mesmos dos nossos países subdesenvolvidos, a forma de abordá-los e resolvê-los pode variar, exatamente em função do nosso amadurecimento democrático.
Ainda aqui, a vida e a figura de Jânio Quadros exprimem muito bem o que estou salientando. Sua carreira e sua pessoa de estadista são as revelações brasileiras mais fortes dessas novas significações da democracia social.
O pacifismo é, afinal, a construção jurídica e política de um sistema de garantias e soluções para o convívio internacional e, especialmente, continental. Já foi a atividade predominante da democracia brasileira. Alexandre de Gusmão, Barbacena, Paulino de Sousa, São Vicente, Paraná, os dois Rio Branco, Ruy, Nabuco, Mangabeira, Melo Franco, Aranha, aí estão, na Colônia, no Império e na República, alguns grandes nomes, para só falar dos mortos, que ajudaram a construir o monumento da nossa escola diplomática pacifista.
A técnica da paz evoluiu, porém, como todos os demais aspectos da política internacional. O penoso esforço dos juristas e diplomatas se concentra, hoje, em harmonizar, no direito e na prática, princípios tão conflitantes como o da não-intervenção e o da solidariedade coletiva; o da soberania do Estado e o da autoridade dos organismos internacionais, sendo certo que, sem o funcionamento adequado de todas essas peças contraditórias, o mecanismo da paz pode entrar em colapso, com as consequências previsíveis na nossa época de poder ilimitadamente destruidor. Neste terreno delicado, deveremos atuar com tato e prudência, seguindo os nossos interesses, que coincidem perfeitamente com as nossas tradições.
O Brasil está perfeitamente evoluído e capaz de equilibrar, para seu uso, a não-intervenção com a solidariedade coletiva, a soberania do Estado com a adesão aos organismos internacionais, sendo que, quanto a este último aspecto, a norma da Constituição Federal é magnífica de concisão, eficácia e clareza. O problema está em que outras nações, continentais ou não, com as quais mantemos semelhança de situações econômico-sociais, não tendo encontrado o equilíbrio político-democrático, não conseguem, tampouco, situar-se equilibradamente na utilização daqueles instrumentos, até certo ponto contraditórios. É, sem dúvida, a falta de maturação democrática, que leva certos governos à necessidade de enfatizar demasiado o princípio da não-intervenção, em detrimento da solidariedade coletiva; ou o da soberania do Estado, em prejuízo da eficácia dos organismos internacionais. Por isto, repetimos, a nossa ação deve ser prudente, refletida, de forma a salvaguardar, tanto quanto possível conjuntamente, os nossos interesses, o desenvolvimento e emancipação dos povos atrasados e a causa da paz.
Os nossos interesses, situados prioritariamente, coincidem, como disse há pouco, nesses assuntos, com as nossas tradições. O respeito ao ato jurídico, a não-intervenção, o reconhecimento da solidariedade coletiva como um freio às agressões, a defesa da liberdade humana, no seu mais amplo significado, estes e outros princípios presidiram à integração territorial do Brasil, ao fortalecimento da sua independência e soberania, à expansão da sua autoridade internacional. Sem perda nem enfraquecimento destes princípios, sustentadores da nossa política externa, haveremos de aplicá-los em campo cada vez mais largo.
É pensamento do presidente Jânio Quadros que o seu governo entre em relações diplomáticas e comerciais com todos os Estados do mundo, que manifestem desejo de conosco manter intercâmbio pacífico, com o respeito da nossa organização jurídica e social. O espírito desta orientação é o de cooperar para a paz e, portanto, não pode nem deve ela ser interpretada como dirigida contra ninguém. Estamos certos de contribuir, com esta conduta, para a causa da paz e da democracia no mundo.
Não poderia aqui referir o caminho a ser trilhado para atingirmos os objetivos propostos. Alguns dados, contudo, são indispensáveis. Em primeiro lugar, menciono a colaboração com o Congresso, base de toda política externa em qualquer país democrático. Homem do Legislativo, no qual servi por doze anos, como deputado, e dois, como senador, não são novas, nem improvisadas minhas ideias sobre a importância da função do Congresso na política internacional. Ela decorre da presença dos problemas mundiais na vida de cada um de nós, do interesse que esta presença desperta no homem da rua, o qual se transmite ao Poder Legislativo brasileiro. É, pois, com sincera e antiga convicção, que conto com todas as correntes políticas da Câmara e do Senado para, através das suas críticas, sugestões e apoio, prestigiarem a ação do governo da República, no delicado terreno da política internacional, no qual, se as divergências de opinião são salutares, o arrefecimento das paixões é esforço elementar e patriótico, para o bem do país. A continuidade da política brasileira é outro ponto que não esquecemos, principalmente no tocante a iniciativas acertadas, como o da chamada Operação Pan-Americana, do presidente Kubitschek. Esse movimento veio chamar a atenção do continente para as estreitas relações entre o subdesenvolvimento e os riscos que assaltam a democracia. Quando tive a honra de saudar o presidente Eisenhower, em nome do Senado brasileiro, não deixei de dar a opinião da nossa corrente, então oposicionista, a respeito. Não é demais, portanto, que aqui a repita.
Outro aspecto de que devemos cuidar, desde logo, é o da reforma dos serviços do Itamaraty, em tramitação na Câmara, através de mensagem do governo passado, enriquecida por brilhante colaboração daquela Casa. Era natural que o novo governo tivesse a sua palavra sobre a organização da pasta. Não poderei entrar, neste momento, em pormenores; apenas direi que o nosso esforço será no sentido de adaptar a lei aos desígnios do presidente Jânio Quadros. Queremos que o aparelho administrativo seja bastante amplo, forte e flexível para permitir a presença do Brasil nos moldes exigidos pelas nossas necessidades e propósitos.
Por outro lado, pretendemos aparelhar o governo a tornar mais justa e democrática a carreira diplomática, respeitando o que for necessário nas suas tradições, existentes em todos os países e regimes, mas extinguindo, tanto quanto possível, o protecionismo e a emulação pessoal, premiando o mérito, amparando a dedicação e a experiência, criando normas sadias e genéricas para o ingresso e o acesso, exterminando, em suma, na medida do possível, o sistema de influências camarárias, de prestígios pessoais e de injustiças. Isto não representa prevenção nem hostilidade a quem quer que seja, nem abalo de situações consolidadas, mas, apenas, a ação determinada pela colocação do serviço público acima das conveniências pessoais, para bem de um corpo de funcionários que possui alguns dos melhores valores do quadro de funcionários brasileiros.
O presidente Jânio Quadros pretende também e esta é uma responsabilidade do Brasil que muito me honro de proclamar extinguir qualquer preconceito de raça, franco ou disfarçado, no serviço do Itamaraty.
Contamos também com a imprensa, rádio e televisão, e agradecemos o seu apoio, tão necessário à compreensão popular dos objetivos e processos da política internacional. Não receamos as suas críticas porque sei que os profissionais brasileiros são, como eu, patriotas, e nada farão conscientemente em prejuízo do nosso país.
Ao corpo diplomático estrangeiro endereço os meus respeitos. Habituado, desde a mocidade, aos ambientes diplomáticos; honrando-me de ser filho, irmão e pai de diplomatas, que serviram e servem com dignidade ao país, sei dos méritos e fraquezas da carreira que, como em todas as carreiras civis e militares e não diferentemente delas, são méritos e fraquezas das pessoas humanas. Sei, assim, a colaboração valiosa que o ilustre corpo diplomático estrangeiro, ao qual reitero as minhas saudações, pode dar para a solução de tantos problemas do nosso governo, através da compreensão, lealdade e firmeza dos entendimentos e tratativas.
Meus Senhores,
O êxito dos governos depende do dom total dos homens públicos ao serviço da pátria. Esta humilde submissão do homem à sua tarefa, com esquecimento de quaisquer aspirações individuais, mesmo as mais nobilitantes, como a ambição de nomeada, respeito e glória, foi à escola em que me eduquei, foi a mais valiosa herança que me legou meu pai, a quem hoje recordo, com amor, no momento em que me invisto das funções que ele outrora exerceu. É recordando a sua memória e esperando a proteção divina, que alço, agora, a minha esperança de bem servir ao Brasil.