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Palavras do Ministro Ernesto Araújo em audiência pública na Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional do Senado Federal
Palavras do ministro das Relações Exteriores, embaixador Ernesto Araújo, em audiência pública na Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional do Senado Federal – 24 de setembro de 2020*
Muito obrigado, senhor presidente, senador Nelsinho Trad.
Senhores senadores aqui presentes e senhores senadores presentes remotamente, deputada Bia Kicis, senhores aqui presentes e que nos assistem, é uma honra, como sempre, estar presente aqui no Senado. Fico muito feliz de ter recebido este convite para vir falar com os senhores sobre a nossa relação com a Venezuela e, especificamente, sobre a recente visita do secretário de Estado Mike Pompeo ao Brasil.
Gostaria de começar mencionando como foi a marcação da visita do secretário de Estado.
O secretário Mike Pompeo telefonou-me, em certa ocasião, dizendo que pretendia organizar um périplo por alguns países da América do Sul e gostaria de vir também ao Brasil, especificamente, gostaria de ir a Boa Vista, para visitar a Operação Acolhida, suas instalações na capital de Roraima. Perguntou-me o que eu achava. Falei: acho excelente. O Brasil tem, na Operação Acolhida, uma iniciativa da mais alta importância e atribuímos a mais alta importância à defesa dos direitos humanos e da recuperação da democracia na Venezuela. Então, disse que o receberia com o maior prazer em Boa Vista. Marcamos a reunião, e assim aconteceu. Então, foi uma visita marcada comigo e com contraparte do secretário Mike Pompeo, com grande satisfação pela nossa parte.
Bem, essa visita foi anunciada já antes de acontecer por parte do próprio secretário de Estado, enfim, do Departamento do Estado Americano, como uma visita para, segundo a nota deles, enfatizar a importância do apoio dos Estados Unidos e do Brasil ao povo da Venezuela, no seu momento de necessidade, ao visitar migrantes venezuelanos que fogem do desastre na Venezuela – essa foi a expressão da nota americana, e é exatamente o propósito da visita, conforme tínhamos falado com o secretário Mike Pompeo. Portanto, já estava anunciada dessa maneira.
Visita à Operação Acolhida
A Operação Acolhida, como eu disse, é uma iniciativa à qual nós atribuímos a maior prioridade, uma iniciativa internacionalmente reconhecida.
Eu queria falar de alguns depoimentos recentes de autoridades de organismos internacionais em relação à Operação Acolhida. Por exemplo, o secretário-geral da ONU, António Guterres, disse, em dezembro de 2019 – é uma declaração do porta-voz do secretário-geral da ONU: "O secretário-geral saúda e agradece ao Brasil por essa decisão da Operação Acolhida. Como alguém que já foi alto comissário para Refugiados, ele sabe muito bem o impacto que isso terá para os venezuelanos, ao dar-lhes maior proteção e acesso a serviços vitais".
O diretor-geral da Organização Internacional para as Migrações disse: "A Operação Acolhida brasileira destaca-se por não apenas ajudar os que chegam à fronteira, mas por realocá-los em todo o território nacional, dando acesso ao mercado de trabalho".
Expressões semelhantes do funcionário da ACNUR, da Agência de Refugiados das Nações Unidas e do representante conjunto da ACNUR e da Organização Internacional para as Migrações são mais ou menos no mesmo sentido. Portanto, é uma iniciativa com enorme apoio internacional, de organismos internacionais, e nos dá muito orgulho que ela seja visitada, no caso, pelo secretário de Estado Mike Pompeo.
É importante lembrar que os Estados Unidos são, em primeiro lugar, o maior financiador das operações da agência das Nações Unidas de refugiados e da Organização Internacional para as Imigrações no mundo. Especificamente, o governo norte-americano já destinou mais de US$ 64 milhões para o financiamento de atividades e apoio aos imigrantes e refugiados venezuelanos no Brasil. O número mencionado pelo secretário Mike Pompeo em Boa Vista é até um pouco menor, é de US$ 50 milhões, mas, se somamos tudo que já foi feito, chega-se a US$ 64 milhões, mais US$ 30 milhões que os Estados Unidos anunciaram na última sexta-feira, em Boa Vista.
Esses recursos chegam através desses organismos internacionais principalmente, não são diretamente para o governo brasileiro, mas ajudam imensamente na manutenção dessa operação. Então, parece que faz todo o sentido que o secretário de Estado dos Estados Unidos, que tem essa contribuição, que tem esse interesse em contribuir com a Operação Acolhida, visite as instalações da Operação Acolhida e, no caso do Brasil, nos dá muito orgulho.
A visita, então, deu-se em algumas horas em Boa Vista, com visitas a instalações da Operação Acolhida e uma coletiva de imprensa. Quer dizer, houve uma reunião bilateral entre mim e o secretário Mike Pompeo e, depois, uma coletiva de imprensa.
Nessa coletiva, um dos elementos mencionados pelo secretário Mike Pompeo foi objeto de polêmica por uma má tradução, como já se sabe, que já está publicada na imprensa. Foi traduzido que ele haveria dito: "O nosso mundo está consistente, e a gente vai tirar essa pessoa e vai colocar no lugar certo" – como se estivesse referindo a Nicolás Maduro. Na verdade, o que ele disse em inglês, e eu vou tentar uma tradução melhor, foi: "So, our will is consistent, our work will be tireless and we will get to the right place [então, nossa vontade é coerente, o nosso trabalho será incansável e chegaremos ao lugar certo]". Isso, no contexto de toda a entrevista, fica claro que é dentro de uma perspectiva humanitária, de uma perspectiva de defesa dos direitos humanos.
O secretário de Estado disse outras coisas. Eu vou me permitir ler em inglês e depois vou traduzir, porque aí fica no registro como foi o original, em inglês, para que não se fique discutindo a questão de tradução. Então, ele disse:
“The spirit of goodwill and shared values continues [entre Brasil e Estados Unidos, ou seja, o espírito de boa vontade e de valores compartilhados continua]. [...] The two largest democracies and economies in the western hemisphere are powerful forces for good when we work together [somos as duas maiores democracias e economias do hemisfério ocidental e poderosas forças pelo bem quando trabalhamos juntos]”.
[...]
Ele disse:
[...]
“I’m in Boa Vista because we’re working together to help the Venezuelan people overcome the humanitarian man-made crisis brought on by the illegitimate Maduro regime [estou em Boa Vista porque estamos trabalhando juntos, ou seja, com o Brasil, para ajudar o povo da Venezuela a superar a crise humanitária feita pelo homem, ou seja, não é uma crise decorrente de um desastre natural, mas trazida, ocasionada pelo regime ilegítimo de Nicolás Maduro]”.
Ele disse: "Foreign Minister, your government’s compassion and support for freedom in this area is truly a model for the entire hemisphere". Então, ele disse, dirigindo-se a mim: "Ministro, a compaixão do seu governo e o apoio do seu governo à liberdade nessa área, nessa região, é verdadeiramente um modelo para todo o hemisfério".
Ele disse: "You provided shelter [você deu abrigo] to nearly 265.000 Venezuelans [a 265 mil venezuelanos, etc.] [...]".
Então, o apoio especificamente na Operação Acolhida e a nossa visão humanitária, a nossa visão da crise humanitária na Venezuela, ficaram muito claros como foco da visita. Nada foi dito que possa ser considerado um tipo de ameaça ou de agressão ou qualquer coisa nesse sentido.
Bem, então, só para finalizar, na Operação Acolhida, o governo brasileiro já gastou mais de US$ 400 milhões desde 2018. A contribuição americana, dependendo de como se compute, dá US$ 80 milhões ou quase US$ 100 milhões. Isso dá uma dimensão de qual é a contribuição americana, do volume da contribuição americana para a Operação Acolhida. É um modelo, inclusive, como eu dizia, reconhecido, porque ele é diferente, dá apoio integral ao imigrante, com saúde, com documentação e com a questão da internalização, que outros modelos não têm. Ele tem sido uma referência, por exemplo, para a Colômbia, que já recebeu mais de três milhões de imigrantes venezuelanos.
O êxodo venezuelano, como os senhores sabem, não tem nenhum precedente na nossa região e pouquíssimos precedentes no mundo. Quatro, cinco milhões de venezuelanos já deixaram o seu país, o que significa em torno de 15% – ou até mais – da população venezuelana. Isso não tem absolutamente nenhum precedente.
Bem, como eu dizia, em reuniões bilaterais entre chanceleres, a coisa mais comum é que se converse sobre a situação de terceiros países. Quase sempre, nessas reuniões, nesses diálogos, existe um item na pauta: situação regional na região do país A e situação regional no país B. Comentam-se os problemas, e comenta-se como esses países cooperam naquela determinada situação. Então, falar de terceiros países é a coisa mais comum em todos esses diálogos.
Quero lembrar que, no mesmo dia em que eu fui a Boa Vista para o encontro com o secretário Mike Pompeo, eu havia tido uma teleconferência com o chanceler, o ministro das Relações Exteriores da China, Wang Yi. Tivemos uma longa conversa por telefone na manhã daquele dia, em que, entre vários assuntos, numa excelente conversa da relação bilateral, falamos também de Venezuela. Nesse caso, as perspectivas são um pouco diferentes. Eu reiterei a nossa enorme preocupação com a situação de direitos humanos e falta de democracia na Venezuela e a expectativa de que toda a comunidade internacional se mobilize. O ministro da China, enfim, referiu-se basicamente à ideia da não intervenção. Eu acho que não se pode fazer nada em relação àquilo, são perspectivas muito diferentes, mas falamos de Venezuela, falamos de várias outras coisas.
Bem, para falar disso, tem sido usada uma imagem que eu acho interessante trabalharmos um pouco, que é a imagem: "Olha, eu recebi alguém na minha casa para falar mal do meu vizinho". Na verdade, não é isso. Na verdade, o que nós temos? Vamos supor, então, que nós, aqui no Brasil, estamos numa rua e temos um vizinho que é muito amigo nosso. De repente, esse vizinho tem a casa dele invadida por um narcotraficante que praticamente escraviza o vizinho, prende no porão o vizinho e toda a sua família e ocupa essa casa do vizinho. Vamos supor que um dos filhos do vizinho consegue escapar, vem para o nosso terreno, nós o acolhemos e, então, recebemos um amigo de uma outra rua, que também é amigo do nosso vizinho, e vamos falar dessa situação. Então, o fato de nós falarmos dessa situação não é uma agressão ao nosso vizinho, é uma preocupação com o fato de que a casa do nosso vizinho foi tomada por um narcotraficante. Então, vamos falar aqui o que fazemos, se chamamos a polícia, conforme o caso mais difícil.
Enfim, vamos falar da contribuição, estender um pouco essa metáfora, esse vizinho de outra rua estar nos ajudando a receber os filhos do vizinho que conseguiram escapar. Então, ele tem todo o interesse também na situação, de modo que é isto: o fato de sermos vizinhos não quer dizer que nós tenhamos que ignorar a situação justamente da casa do vizinho. O fato de nós estarmos criticando, nesse exemplo, o narcotraficante que tomou essa casa não significa que nós estejamos agredindo o nosso vizinho, é o contrário: é o nosso dever de vizinhança e de solidariedade.
Existe muita confusão – às vezes, deliberada; às vezes, não – quando se fala da Venezuela, porque, às vezes, se fala se referindo ao país, à nação venezuelana e a seu povo; às vezes, ao governo; e, às vezes, ao regime. Então, absolutamente nada do que nós estamos fazendo é contra o povo venezuelano, contra a Venezuela. Então, algumas pessoas disseram: "Ah, isso é contra a Venezuela", "Isso é uma ofensa à Venezuela". De forma nenhuma! Ofensa à Venezuela seria ignorarmos o sofrimento do povo venezuelano. Nós temos total solidariedade pelo povo venezuelano. É uma nação amiga, é uma nação irmã, com uma tradição democrática imensa; terra de Bolívar, como se sabe. Aliás, o fato de o regime usar o nome bolivariano é uma ofensa à memória de Bolívar – fazendo um parêntese. Então, temos um país, a nação Venezuela. Nada contra.
Governo
Para nós, o governo da Venezuela é aquele que o Brasil e 56 outros países reconhecem, que é o governo legítimo de Juan Guaidó. Existe o regime, que é o grupo de pessoas que manejam ali as alavancas do poder de maneira repressiva, de maneira brutal contra o seu próprio povo. Então, Venezuela pode significar coisas diferentes, não é? Inclusive, a Venezuela... Guaidó faz parte do Grupo de Lima, que é o grupo de países latino-americanos e caribenhos e Canadá, que tenta trabalhar pela democracia na Venezuela. A Venezuela está ali presente. Então, é importante que a gente não use a palavra Venezuela para se referir a esse bando de facínoras que ocupa o poder ainda na Venezuela, pelos quais a gente só tem desprezo – e justamente, me parece. É importante esclarecer isso.
As críticas que o secretário Mike Pompeo e eu veiculamos, enquanto em Boa Vista, ao regime venezuelano – que, como eu disse, não foram nem tanto o foco da reunião; foi mais a questão da Operação Acolhida –, essas críticas não são novas, de nenhuma maneira. São muito conhecidas as nossas posições, tanto as nossas quanto as dos Estados Unidos, que não são necessariamente as mesmas, mas são muito convergentes.
Por exemplo, há uma declaração de 14 de agosto do Grupo de Lima (Bolívia, Brasil, Canadá, Chile, Colômbia, Costa Rica, Guatemala, Honduras, Panamá, Paraguai, Peru e Venezuela – Venezuela legítima, a verdadeira Venezuela), de apoio ao presidente encarregado Juan Guaidó, contra "as manobras do regime ilegítimo de Nicolás Maduro que atentam contra o exercício dos mais elementares direitos civis e políticos [...]. Firme repúdio ao anúncio do regime ilegítimo de realizar eleições parlamentares sem as garantias mínimas e sem a participação de todas as forças políticas". Isso está bastante bem registrado aqui nesta nota.
Houve também uma declaração conjunta de países do Grupo de Lima e de países de outras regiões, entre eles os próprios Estados Unidos, Austrália, Marrocos, Coreia, Ucrânia, Reino Unido, enfim, países de todas as regiões, que mencionaram a necessidade de colocar os interesses da Venezuela acima da política. É um apelo a todos os venezuelanos, de todas as tendências ideológicas, para que coloquem os interesses da Venezuela acima da política e se engajem – eu estou lendo e traduzindo, então estou um pouco lento –, urgentemente, em apoio a um processo formatado e conduzido pelos venezuelanos para estabelecer um governo de transição inclusivo. Essa é uma proposta que nasceu no começo deste ano, de estabelecimento de um governo de transição, com a renúncia simultânea de Maduro e Guaidó, proposta que apoiamos, no começo do ano, que nos pareceu muito pertinente e prática. Infelizmente, ela não deu certo, porque o grupo de Maduro e o próprio Maduro não querem largar o poder. Mas isso mostra que há um esforço de criação de uma solução política. Aqui se fala de solução conduzida pelos venezuelanos, claro, com o apoio da comunidade internacional.
Eu quero falar com detalhes sobre a evolução da degradação institucional da Venezuela a partir de 2015. Então, como é muita coisa, são muitos atos antidemocráticos, não consigo decorar tudo. Nós não chegamos aqui do nada. Houve toda uma involução dramática na Venezuela.
Em fevereiro de 2015, o prefeito de Caracas, Antonio Ledezma, foi preso por alegada conspiração contra o governo, uma das principais figuras da oposição.
Em julho de 2015, decisões do controlador-geral da República inabilitaram ao exercício de qualquer cargo público outras grandes figuras da oposição, como Daniel Ceballos e María Corina Machado, talvez uma das maiores líderes democráticas da Venezuela, além de Vicencio "Enzo" Scarano Spisso, líder do partido regional Cuentas Claras e ex-prefeito de San Diego.
Em dezembro de 2015, foram realizadas eleições legislativas, as últimas minimamente livres na Venezuela, que resultaram na eleição de 66%, dois terços, da Assembleia Nacional de figuras da oposição, algo que não era esperado pelo regime. Então, o que o regime fez? Imediatamente começou a anular todas as decisões, todos os atos da Assembleia Nacional e a pressionar a Assembleia Nacional através de decisões do Judiciário e de intimidação. Então, em dezembro de 2015, ainda nos últimos dias do mandato da composição anterior da Assembleia Nacional e no meio de um recesso parlamentar, a Assembleia Nacional nomeou novos juízes do Tribunal Supremo de Justiça e o governo intimidou os juízes do tribunal então existentes. Muitos deles tiveram que fugir do país e constituíram o que é hoje o Tribunal Supremo de Justiça no exílio, o tribunal legítimo da Venezuela.
Em janeiro de 2016, no início da nova legislatura, o novo Parlamento venezuelano foi declarado em desacato por esse tribunal ilegítimo de justiça, ou seja, a Suprema Corte composta por pessoas nomeadas, naquele momento, ilegitimamente por Maduro, aparelhado pelo regime. A Corte Suprema sentenciou que qualquer ato da Assembleia Nacional não teria efeito.
Em abril de 2016, esse tribunal ilegítimo, a pedido do Executivo, declarou inconstitucional a Lei de Anistia, que acabava de ser aprovada por essa nova Assembleia Nacional. As Forças Armadas venezuelanas declararam que a Lei de Anistia atentava contra a paz, o Estado de direito e a disciplina militar. Era uma lei que permitiria que os políticos de oposição acusados injustamente de todo tipo de crimes voltassem à atividade política.
Em 2016, outubro, após uma série de protelações, o Conselho Nacional Eleitoral suspendeu o processo de coleta de assinaturas para aprovação de referendo revocatório do mandato presencial, algo previsto na Constituição venezuelana. Pela Constituição venezuelana, a própria Constituição bolivariana de Hugo Chávez, se você tiver assinaturas de 1% dos eleitores do país, é convocado um referendo para manter ou revogar o mandato presidencial. A oposição recolheu mais de 1% das assinaturas, mas esse Judiciário aparelhado por Maduro não reconheceu. Servidores públicos foram ameaçados de demissão, caso assinassem a petição. Continuaram as usurpações das funções do Legislativo pelo Judiciário.
Em março de 2017, o Tribunal Supremo de Justiça anunciou restrições à imunidade parlamentar e a intenção de assumir as funções legislativas enquanto durasse a situação de desacato da Assembleia Nacional.
Em maio de 2017, o Conselho Eleitoral anunciou convocação de eleições de uma Constituinte, a partir de um critério misto de representatividade, ou seja, violando o sufrágio universal, violando o que está previsto na própria Constituição venezuelana.
Essa Assembleia Constituinte eleita de maneira inconstitucional começou a funcionar em agosto de 2017, usurpando o mandato da Assembleia Nacional legítima. Houve vários outros desmandos. Esse Conselho Eleitoral antecipou, inconstitucionalmente, as eleições para governador.
Em dezembro de 2017, a Assembleia Nacional Constituinte declarou a dissolução de prefeituras por terem se afastado do caminho da orientação político-territorial, ou seja, usurpação dos poderes das entidades subnacionais.
Em janeiro de 2018, a Corte Suprema determinou que o Conselho Eleitoral excluísse a união das oposições, a Mesa da Unidade Democrática, do processo de revalidação do registro eleitoral de partidos políticos.
Em março de 2018, a Assembleia Constituinte, de maneira inconstitucional, aprovou o decreto que antecipava as eleições presidenciais para maio de 2018. Essa eleição foi realizada com a vedação de participação dos principais partidos oposicionistas, eivada de denúncias de compra de votos, operação de zoneamento eleitoral e uso do aparato de segurança para repressão e intimidação dos eleitores. Foi feita sem nenhuma supervisão internacional, nenhuma observação de nenhuma entidade externa.
Em função dessa eleição completamente fraudada, Maduro foi eleito para novo mandato. O corolário, é lógico, da ilegitimidade de uma eleição é a ilegitimidade do mandato que dela se origina. As oposições venezuelanas e o tribunal legítimo no exílio, o Tribunal Supremo, concordaram com essa linha e os países latino-americanos, finalmente, em janeiro de 2019, com grande liderança do Brasil, mobilizaram-se para defender a própria Constituição venezuelana e evitar que Maduro tomasse posse ilegitimamente. Então, não foi reconhecida a posse de Maduro para um mandato obtido em eleições completamente fraudadas e de acordo com a Constituição venezuelana, por decisão da própria Assembleia Nacional, o poder passou, conforme a Constituição, para o presidente da Assembleia Nacional, Juan Guaidó.
Os desmandos do regime continuaram depois disso, enfim, com todo tipo de suspensão de imunidades parlamentares, intimidação, usurpação de poderes da Assembleia Nacional legítima e assim por diante.
Eu espero que, inclusive, os senhores senadores aqui, nesta Casa, vejam que o que há, na Venezuela, é, entre outras coisas, uma progressiva intimidação e usurpação do Legislativo venezuelano, que, no entanto, é onde hoje reside a legitimidade da Venezuela, pela própria Constituição venezuelana. Juan Guaidó é presidente interino por força da Constituição venezuelana, como presidente da Assembleia Nacional. O que foi feito foi uma completa degradação e erosão das instituições venezuelanas ao longo do tempo, não é um fenômeno recente, é um fenômeno que, se ocorresse em qualquer outro lugar do mundo em que as pessoas não tivessem a estranha simpatia que têm por Nicolás Maduro, seria denunciado como uma ditadura e como um regime ditatorial da pior espécie.
Eu queria referir-me também ao seguinte: a questão dos direitos humanos. Nós temos um problema dessa evidente erosão da democracia que é acompanhada pela pior situação de direitos humanos já vivida na nossa região. Na semana passada, dois dias antes da visita do secretário Pompeo a Boa Vista, saiu o informe da missão internacional independente de averiguação de fatos sobre a Venezuela, formada pelo Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, aprovada em 2019 por iniciativa do Brasil e dos países do Grupo de Lima.
O que essa missão da ONU concluiu sobre a Venezuela? Que houve um processo gradual de ruptura das instituições democráticas e do Estado de Direito, como acabei de mostrar aqui; que há uma repressão política seletiva contra indivíduos críticos ao regime, incluindo parlamentares, prefeitos, militares alegadamente implicados em rebeliões; que houve um papel central dos órgãos de inteligência nas atividades de repressão política, como prisões sem mandados judiciais, interrogatórios sem a presença de advogados, uso excessivo da força, falsificação de provas, tortura, violência sexual e prisões ilegais; que houve execuções extrajudiciais, manipulação de informações, completo desrespeito em relação à produção de provas. Em conclusão, o relatório deixa claro que foram cometidos crimes de lesa-humanidade na Venezuela, incluindo "assassinatos, encarceramentos e outras privações graves da liberdade física, tortura, violação e outras formas de violência sexual, desaparecimento forçado de pessoas e outros atos inumanos". A missão afirma estar segura de que Maduro e alguns de seus ministros, como os ministros da Justiça e Paz – curiosamente: paz – e da defesa, ordenaram ou cometeram os delitos verificados. Então, é diante disso que nós estamos.
Bem, esta é situação da Venezuela: degradação institucional e esse tipo de situação de direitos humanos. Há outros elementos de direitos humanos em outros relatórios, mas vou ater-me a este que é o último e que é das Nações Unidas.
Um parêntese aqui. Foi dito – e talvez seja uma das críticas principais à visita do secretário Mike Pompeo – que ela foi uma plataforma eleitoral para as eleições de novembro nos Estados Unidos. Bem, não é assim, não é assim. Um dos elementos que mostram que não é assim é o seguinte: existe, nos Estados Unidos, uma grande convergência entre republicanos e democratas sobre a situação na Venezuela.
Numa audiência no último mês de agosto, no Senado americano, foi evidenciado um amplo consenso bipartidário, de republicanos e democratas, sobre a questão venezuelana. O líder democrata, Bob Menéndez, corroborou a ideia de consenso bipartidário em relação: aos objetivos norte-americanos na Venezuela; à disponibilização de auxílio humanitário ao país e aos seus vizinhos; ao apoio às sanções – ele chegou a afirmar –, ao apoio integral à ampliação das sanções americanas, no caso, contra aqueles que se beneficiem de exploração ilegal de ouro venezuelano, por exemplo. Então, esse é um dos elementos que mostra que não faz muito sentido pensar nisso como uma plataforma eleitoral, já que não há diferença substantiva entre posições de republicanos e democratas em relação à Venezuela, ou seja, tudo indica que, se houver uma vitória democrata nas eleições em novembro, a atitude norte-americana em relação à Venezuela continuará exatamente a mesma. Não foi apresentada nenhuma novidade em relação ao posicionamento americano nem brasileiro na reunião de Boa Vista.
Eu acho que essa ideia de que pode ser uma plataforma eleitoral, além de não ser verídica, cria uma estranha dependência, assim, digamos, em relação ao calendário político de outros países, ao contrário do que se afirma, porque, se nós não pudermos defender os direitos humanos, em época de campanha, em outros países, em que mundo nós estamos? Eu acho que a defesa dos direitos humanos, a defesa da democracia é uma obrigação permanente quer estejamos ou não em campanha em algum país do mundo.
É muito interessante falar da questão da defesa da democracia à luz da nossa Constituição e dos direitos humanos, porque foi muito bem mencionado que haveria uma contradição entre a reunião que nós tivemos em Boa Vista e a Constituição Federal, especificamente ao art. 4º. Não há absolutamente nenhuma contradição. Ao contrário, nós estamos defendendo e trabalhando de acordo com os princípios do art. 4º da Constituição, cujo inciso II diz: "prevalência dos direitos humanos". A prevalência dos direitos humanos é um dos princípios que deve orientar a atuação externa do Brasil, o relacionamento internacional do Brasil. Outro princípio é a "autodeterminação dos povos", que, evidentemente, é a democracia. O povo venezuelano hoje não possui autodeterminação, em função dos desmandos, da repressão do regime.
Então, nós estamos claramente trabalhando em defesa dos direitos humanos, pela prevalência dos direitos humanos. Eu acho que eles... E o que é prevalência? Prevalência vem de prevalecer, e prevalecer significa uma coisa ter mais valor do que outra. Então, é a ideia de que os direitos humanos prevalecem sobre, por exemplo, alguma ideia de que haja um benefício eleitoral em outro país. Certamente, não é o caso. Se nós fizéssemos isto, "olha, eu não posso receber uma visita para falar de democracia na Venezuela e para apoiar ajuda humanitária na Venezuela, porque faltam 46 dias para a eleição americana", estaríamos, portanto, dizendo, "olha, então existe a prevalência da eleição americana sobre os direitos humanos", e estaríamos ferindo brutalmente a Constituição.
Alega-se, então... Acho que talvez seja a alegação de que trabalhar pela democracia na Venezuela, pelos direitos humanos na Venezuela, fere o inciso do art. 4º sobre a não interferência ou não intervenção em outros países, não é? Bem, não é certamente o caso. O próprio Congresso Nacional já reconheceu que não é o caso, que trabalhar pela democracia não fere a Constituição, não é inconstitucional.
Eu quero lembrar, por exemplo, que, em 2001, o Congresso Nacional aprovou o texto do Protocolo de Ushuaia sobre compromisso democrático no MERCOSUL, Bolívia e Chile, e foi promulgado um decreto em 24 de abril de 2002. O artigo 1º do Protocolo de Ushuaia diz: "A plena vigência das instituições democráticas é condição essencial para o desenvolvimento dos processos de integração entre os Estados Partes do presente Protocolo".
O que isso significa? Significa que, se houvesse uma ruptura da ordem democrática em outro país, no caso, do MERCOSUL, os demais países deveriam tomar determinadas atitudes a respeito. Se esse tipo de atitude é considerado que fere a não intervenção, então, o Congresso Nacional teria aprovado um texto inconstitucional, que eu acho que não é o caso. Mas, enfim, nós temos a corroboração, por meio do Protocolo de Ushuaia, de que trabalhar pela democracia, pelos direitos humanos em outro país é plenamente constitucional.
Além disso, também ainda falando do art. 4º, é interessante, porque o Protocolo de Ushuaia, aprovado pelo Congresso Nacional aqui, diz que a democracia é a condição para os processos de integração entre, no caso, os países do MERCOSUL, então, condiciona a integração regional à democracia. O art. 4º diz também que um dos nossos propósitos é promover a integração latino-americana. Então, ao assegurar a democracia, que o próprio Congresso Nacional reconheceu que é uma condição, uma pré-condição, para a integração regional, nós estamos trabalhando para cumprir o art. 4º no sentido da integração regional latino-americana.
Já tenho dito que a integração latino-americana não pode ser a integração dos cartéis da droga, tem que ser a integração de países democráticos. Enquanto houver países dominados por cartéis da droga, por exemplo, não se pode, de acordo com o próprio Protocolo de Ushuaia, aprovado pelo Congresso Nacional, trabalhar pela integração ou obter uma integração.
Bem, apenas para finalizar, gostaria de dizer também da questão dos interesses brasileiros, econômicos, porque frequentemente se menciona que nossa atitude em relação à Venezuela feriria nossos interesses econômicos, comerciais ou algo desse tipo. Bem, o que feriu nossos interesses comerciais e econômicos foi a atitude irresponsável de governos anteriores de apoiar o regime de Hugo Chávez e de Nicolás Maduro. Então, por exemplo, na questão da refinaria Abreu e Lima, em que houve um compromisso da Petrobras de participar, com a Venezuela de Chávez, da construção da refinaria, Chávez nunca colocou o dinheiro, e a Venezuela teve prejuízos financeiros e na sua credibilidade. Foi mais um dos muitos elementos dessa época que prejudicaram imensamente a Petrobras.
Além disso, companhias brasileiras que exportaram bens e serviços para a Venezuela com garantias do Tesouro Nacional levaram calote, ao longo desse tempo, num montante, já vencido, de mais de US$ 400 milhões e, a vencer, de mais uns US$ 300 milhões.
Então, o contribuinte brasileiro... Isso nunca foi cobrado. Nunca foi usada a maravilhosa relação bilateral que existia entre determinados governos e a ditadura de Chávez-Maduro; nunca usaram isso para cobrar o dinheiro dos brasileiros, o dinheiro das companhias brasileiras. E o contribuinte brasileiro, em função das garantias do Tesouro Nacional, arcou – ou vai arcar em breve – com esses mais de US$ 700 milhões de prejuízo.
Então, quem feriu os interesses econômicos brasileiros foi quem tolerou esses regimes, esse regime brutal na Venezuela.
Basicamente é isso. Teria, claro, outras coisas para falar, mas, enfim, espero ter coberto basicamente qual é o contexto da visita do secretário Mike Pompeo, como ela ocorreu e por que ela ocorreu. E estou pronto a esclarecer qualquer outra dúvida.
Muito obrigado.
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* Texto adaptado. Fonte: Senado Federal