Notícias
Palavras de abertura em coletiva de imprensa do Ministro Ernesto Araújo
Palavras de abertura em coletiva de imprensa do Ministro de Estado das Relações Exteriores, Embaixador Ernesto Araújo (02/03/2021)1
Bom dia a todos. Muito obrigado pela presença.
Eu queria começar dizendo que, como vocês sabem, eu valorizo imensamente a liberdade de expressão. Acho que ela é fundamental para uma sociedade saudável, para uma sociedade democrática e para a execução de todas as tarefas de um governo, entre elas a execução de uma política externa.
Eu costumo comparar o mundo da informação com o mundo da economia. Muitos de nós sabemos que, na economia, o planejamento central não funciona. Não funciona porque uma economia só é eficiente se ela se construir a partir das informações que são trocadas entre milhões de atores econômicos, mediante um sistema de preços e de circulação livre. E acho que a mesma coisa se aplica, por analogia, no mundo da informação, onde a ideia de que se possa ter uma espécie de entidade central determinando o que é verdade e o que não é não funciona, tampouco. Por isso precisamos dessa diversidade de meios de comunicação, em que, a partir de uma circulação permanente de ideias e de falas, a própria sociedade, o próprio sistema dessa circulação filtra e permite que surja uma percepção daquilo que é verdadeiro.
Por isso a importância fundamental de que haja liberdade de expressão por todos os meios e que não se usem conceitos de administração ou produção da verdade para limitar essa circulação. Porque uma sociedade precisa saber aquilo que é verdadeiro e aquilo que não é, seja para o seu desenvolvimento econômico, seja para enfrentar uma pandemia, seja para qualquer outra finalidade.
Quero falar um pouco, sobretudo, de duas ideias que têm circulado a respeito da nossa política externa, da minha gestão aqui e dos resultados que ela tem. Primeiro, a ideia de que a nossa gestão é prejudicial aos interesses nacionais. Às vezes vemos, em alguns setores, a ideia de que, sobretudo na dimensão econômica, seria uma diplomacia que, de alguma maneira, prejudica os interesses nacionais. Nós temos alguns parâmetros para mostrar que não é, absolutamente, assim.
Por exemplo, nosso saldo comercial cresceu nesses últimos dois anos em que estamos aqui. O Itamaraty e a política externa têm uma presença muito grande, como vocês sabem, na dimensão tanto de negociações comerciais, de atração de investimentos, quanto de promoção de exportações. Então, temos um resultado na balança comercial que atingiu 50 bilhões de dólares, em termos de saldo, no ano passado, mesmo com a pandemia.
Os investimentos estrangeiros diretos aumentaram em 2019, em comparação com 2018. Os investimentos diminuíram em 2020, mas diminuíram no mundo inteiro, porque, justamente, houve o efeito da pandemia; mas se mantêm em um nível extremamente positivo. Estaríamos, por exemplo, recebendo hoje, aqui – acabou não sendo possível –, uma delegação de um grupo americano que tem investimentos de 25 bilhões de dólares na área de gás e de energia. Nós temos a perspectiva da implementação de um fundo de investimentos de 10 bilhões de dólares da Arábia Saudita, que nós conseguimos quando fizemos a visita com o Presidente Bolsonaro à Arábia Saudita. Isso ainda não foi materializado porque o nosso dever de casa, do lado brasileiro, é escolher, em conjunto com os sauditas, quais os projetos que darão corpo a esse projeto de investimentos.
Também é determinante (são coisas que não são imediatas, mas nas quais nós avançamos muito) o fato de estarmos construindo uma rede de acordos comerciais de nova geração que permitirão uma transformação do próprio setor produtivo brasileiro. Como vocês sabem, nós concluímos em 2019 uma negociação com a União Europeia, assim como com a EFTA; estamos adiantados com o Canadá e Singapura; e temos perspectivas de vários novos acordos com todas as grandes economias industrializadas e outras economias do mundo.
Isso faz parte de uma estratégia de abertura econômica – é importante que se destaque isso –; faz parte de um compromisso e de um plano do governo (e não só da nossa política externa) de transformar a economia brasileira em uma verdadeira economia de mercado, com abertura econômica e tirando o Estado do centro da economia brasileira. Isso não só em termos de ganho de eficiência econômica, mas em termos, também, de transformação da própria qualidade da governança, porque nós sabemos que em uma economia fechada, artificialmente protegida e centrada no Estado, há muito mais vulnerabilidade para a má governança, para a corrupção e para a ineficiência. Isso foi o que se verificou no Brasil durante muito tempo. Essa agenda comercial faz parte de uma agenda profunda de transformação do Brasil, que tem uma dimensão, inclusive, de transformação de um sistema de governança que deu os maus resultados e criou os escândalos de corrupção que nós conhecemos, entre outras mazelas.
Para acelerar esse processo negociador, nós estamos trabalhando na questão das flexibilidades dentro do MERCOSUL, que permitam, basicamente, que tenhamos mais velocidade na negociação de acordos quando há uma disposição negociadora diferente por parte de cada um dos membros do bloco. Estamos trabalhando, já havíamos conversado com o Ministro Paulo Guedes e sua equipe, pois é um tema que nós levamos em conjunto com o Ministério da Economia e também com o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Trata-se de uma estratégia de governo; existe uma lógica em todo esse processo.
Nós esperamos que essas flexibilidades nos permitam negociar acordos muito mais rapidamente com todas as economias que estejam dispostas a negociar conosco e que sejam relevantes, como, por exemplo, Japão; Índia; outros países do Sudeste Asiático, além de Singapura (estamos com planos com o Vietnã e Indonésia); que fechemos mais rapidamente as negociações com o Canadá; que possamos avançar com a Coreia do Sul – que é uma negociação bastante complexa e que também está em andamento. Continuamos com planos de negociações mais profundas com os Estados Unidos e com outros parceiros. Isso, portanto, faz parte – assim como a prioridade para o ingresso na OCDE – de uma decisão de mudança de modelo econômico; portanto, de abandono de um modelo de economia fechada e estatista.
É preciso falar também da questão da indústria, especificamente, porque nós temos, hoje, uma disparidade muito grande em termos de competitividade no Brasil entre o agronegócio e a indústria. O agronegócio cresceu sua presença na balança comercial por causa da sua competitividade, da sua extraordinária qualidade, e continuamos trabalhando intensamente para a conquista de mercados, seja através de negociações diretas específicas na área agrícola, sobretudo na área de requisitos sanitários e fitossanitários, que muitas vezes são as barreiras que impedem o comércio, seja para incluir mercados agrícolas nessas grandes negociações.
Em grande medida, a indústria brasileira ficou para trás nos últimos 20, 30 anos; a indústria foi, em grande parte, esquecida. Nós tivemos sucessivos governos, a partir de meados dos anos 1990, que, estranhamente, hoje são considerados pragmáticos, mas que perderam imensas oportunidades de colocar o Brasil nos grandes acordos comerciais, de colocar o setor produtivo brasileiro, sobretudo o setor industrial, nas grandes cadeias de produção que se estavam formando nos anos 1990 e que continuaram a se formar nos anos 2000. Por uma opção, por vezes, de natureza ideológica, por vezes, por insuficiente competência de entender o que estava acontecendo no mundo, perdemos vários “bondes” negociadores e, mais do que isso, perdemos a oportunidade de encaixar o Brasil nessas cadeias produtivas. Houve a famosa onda das commodities, nos anos 2000, e se acreditou que isso seria suficiente para o desenvolvimento do Brasil. Isso não foi o suficiente. O investimento correu para outros lugares, e agora nós precisamos correr atrás – e estamos correndo atrás – para trazer esse investimento, para trazer essas cadeias produtivas. Para isso, precisamos criar essa rede com as grandes economias do mundo.
Eu queria dar alguns exemplos concretos de como nós perdemos espaço nessas cadeias produtivas e no setor industrial, sobretudo, que é um setor determinante para o desenvolvimento de uma economia de um país do tamanho do Brasil. As nossas exportações para os Estados Unidos, no ano 2000, eram 25% da pauta exportadora brasileira; agora são 9%. As exportações para os outros países do MERCOSUL chegaram perto de 20% das nossas exportações totais, naquela época, e hoje são 5%. Por que isso é relevante? Porque são os dois principais mercados que absorvem exportações industriais brasileiras. Então, houve uma mudança imensa de perfil nas nossas exportações, com uma concentração muito grande no agronegócio, o que não tem, absolutamente, problema nenhum em termos daquilo que, em números absolutos, representa o agronegócio na nossa pauta. Isso se valeu muito da relação com a China que, no ano 2000, absorvia 2% das nossas exportações e, no ano passado, chegou a absorver 30% das nossas exportações, o que é ótimo e não se questiona, em absoluto. Mas olhar para um lado não significa que não se possa olhar para o outro. A lógica de perseguir esse objetivo da capacitação industrial, da capacitação produtiva do setor de alta tecnologia, é uma lógica que se complementa, mas que não é a mesma lógica da conquista de mercados para o agronegócio.
O nosso perfil comercial, portanto, está muito diferente do perfil industrial. Nós notamos isso no quadro de investimentos. Todos sabemos que o principal parceiro econômico do Brasil, hoje, é a China, em grande parte por causa das exportações do agro e, também, do setor de extração mineral. Vários países asiáticos subiram muito, também, por causa das exportações nesses setores. Mas se nós olharmos o ingresso de investimento no Brasil, nós vemos que o primeiro investidor são os Estados Unidos; depois vêm os Países Baixos, França, Espanha, Japão, Ilhas Cayman (que é um entreposto de investimento; não se sabe exatamente qual a origem última), Luxemburgo, Itália, Reino Unido, Alemanha, Singapura, Chile, Noruega, Suíça, Canadá – esses são os quinze primeiros. Então, nós observamos que são basicamente as economias industriais da América do Norte e da Europa, além do Japão. Várias delas estão presentes nos dois acordos cujas negociações nós já concluímos, com a União Europeia e com a EFTA (os dois grandes países da EFTA, a Noruega e a Suíça, fazem parte dessa lista dos quinze maiores investidores no Brasil); assim como outro país asiático, que também está nessa lista de quinze, com o qual nós também estamos negociando um acordo de livre comércio, que é Singapura.
Isso aponta para o seguinte: a lógica das negociações dos grandes acordos comerciais não pode ser vista apenas como uma lógica de abertura de mercado. Ela é, também; mas, talvez, mais importante seja a lógica dos investimentos. Hoje, os investidores, as multinacionais, as transnacionais raramente têm o processo produtivo de determinados produtos, sobretudo produtos de alta tecnologia, concentrados inteiramente em um único país. O que existe é a distribuição das cadeias de valor. E, para localizar uma parte do processo produtivo em determinado país, os investidores vão olhar todo o tipo de facilidades que podem decorrer de acordos comerciais. Por isso também é importante que o país tenha uma rede que lhe permita importar insumos e serviços também, porque estamos falando de indústria, mas temos que falar também de serviços, que é outra parte fundamental.
Aliás, eu queria fazer um parêntese, porque se diz muito que uma economia avançada não precisa de indústria; que uma economia avançada transita automaticamente para o setor de serviços e, ao se tornar uma economia de serviços eficiente, isso permite que se desenvolva. Isso, por experiência, por estudo, eu sei que não é a realidade, porque o setor de serviços vem junto com o desenvolvimento industrial. Os serviços de alta qualidade, os serviços de alto valor agregado precisam de uma base industrial. Estou falando de uma economia do tamanho do Brasil; não podemos comparar, por exemplo, com Singapura e com outras economias menores que têm outra estrutura e que vivem desses serviços de alta qualidade. Em uma economia do tamanho da brasileira, se ela perder a base industrial, essa ideia de transitar diretamente para uma economia de serviços acaba gerando uma concentração no setor de serviços de baixo valor agregado, de baixa remuneração, quando falta uma base produtiva industrial; ou agrícola, também. A competitividade agrícola também traz investimentos em serviços de alta qualidade, atrai um setor de serviços de alta qualidade, mas ela não é suficiente – é preciso também uma competitividade industrial.
Esse é o nosso diagnóstico, e acho que é o que cada vez mais é o consenso no mundo industrializado. Os Estados Unidos, por exemplo, viveram nos anos 1990, anos 2000 nessa ilusão de que poderiam prescindir da indústria manufatureira e, nos últimos anos (já a partir do governo Obama, depois com o governo Trump e agora, certamente, com o governo Biden), há um esforço de reindustrialização dos Estados Unidos, porque aquela estratégia criou desigualdade, criou uma sociedade com problemas sociais, inclusive. Então, isso é parte do nosso diagnóstico.
Voltando, os acordos comerciais não são simplesmente um acordo de compra e venda. Eles são acordos que colocam o seu setor produtivo em uma articulação, em uma rede com os setores produtivos de outros países e seus parceiros; e ele acaba sendo mais importante, muitas vezes, para a atração de investimentos produtivos do que propriamente para apenas a abertura de mercado. Esse é o papel transformador da rede de acordos que nós estamos criando. É realmente transformar o Brasil em uma economia competitiva, de primeira linha, não só no agronegócio, mas também na indústria, também nos serviços, na alta tecnologia. É um esforço, porque há países que saíram na nossa frente em 1993, 1994, 1995; perdemos 20, 30 anos, por opções equivocadas de outros momentos. Mas eu tenho certeza de que, com a capacidade e que com a dimensão da economia brasileira, nós temos como recuperar esse tempo perdido.
Uma dimensão importante de mencionar nessa estratégia são os Estados Unidos. Desde o começo de 2019, nós começamos a falar do interesse de um acordo comercial amplo com os Estados Unidos. Isso ainda não se materializou, mas, já no ano passado, conseguimos atingir três importantes acordos regulatórios no final do ano – em outubro, se não me engano – que já começam a mudar o panorama da interconexão dos nossos setores privados com os Estados Unidos. Os acordos regulatórios são, na verdade, os mais demandados pelo setor privado como um instrumento de aumento do intercâmbio com os Estados Unidos, não só comercial, mas de investimentos, como dizíamos.
Aqui, entramos em um ponto que é muito falado: a ideia do alinhamento automático com os Estados Unidos, que é outra ideia completamente falsa. Uma relação profunda com os Estados Unidos é necessária, tão necessária quanto uma relação profunda com os outros grandes parceiros. Vocês viram o perfil, por exemplo, de investimentos ao Brasil e a importância vital de uma relação com os Estados Unidos para os setores industriais, de alta tecnologia. Para ter essa relação profunda, que é necessária, e para competir com outros destinos de investimentos a partir dos Estados Unidos – como o Sudeste Asiático, como a própria China, como o México e outros países latino-americanos que têm acordos comerciais com os EUA –, nós identificamos que era fundamental criar uma estrutura de confiança, uma estrutura de parceria com os Estados Unidos, e, a partir desse nível macro, começar a criar os instrumentos específicos.
Em outros momentos, em que houve uma pequena abertura de janela em relação aos Estados Unidos, escapando de tendências antiamericanas que predominavam muito aqui na nossa diplomacia, houve uma tentativa de partir do micro. Por exemplo, procurou-se negociar o acordo de salvaguardas tecnológicas com os Estados Unidos, mas não havia o clima de confiança necessário para grandes acordos com esse parceiro. Outros instrumentos que, em determinados momentos, surgiu a ideia de se negociar nunca prosperaram, porque é uma relação que tem essa especificidade; ela precisa de um clima, de uma estrutura de confiança para que se tenham os resultados específicos.
Acho que nós conseguimos, a partir, já, do começo de 2019, criar essa estrutura, que levou aos resultados que vocês já conhecem: o acordo de salvaguardas tecnológicos; o acordo de pesquisa em desenvolvimentos na área de defesa; o apoio à entrada na OCDE, e vários outros instrumentos. E a perspectiva de um grande acordo, que não foi interrompida com a mudança de governo nos Estados Unidos; mas, claro, uma relação profunda que nós estávamos construindo em um país democrático não se transpõe, às vezes, automaticamente, quando muda o governo, porque depende de um encaixe. Mas esse encaixe continua sendo totalmente possível, e nós já estamos trabalhando nisso com a nova administração.
Todos os sinais, nas conversas que nós já tivemos, são no sentido de manter esse engajamento na dimensão comercial. A nova USTR (Representante Comercial americana, digamos, Ministra do Comércio), que já foi indicada, ainda não foi confirmada, mas faremos, certamente, os contatos. Nos contatos com o Secretário de Estado, por exemplo, que eu tive, nós falamos desse tema, e o Secretário Antony Blinken encorajou o Brasil a continuar tratando do tema. Disse que, assim que a USTR for aprovada pelo Congresso, vamos voltar a trabalhar. O Departamento de Estado, no caso, não tem a mesma centralidade negociadora, digamos, que tem o Itamaraty aqui no Brasil (as negociações são mais conduzidas pelo USTR), mas apoia imensamente e entende a importância estratégica. Então, o desenho estratégico permanece. Todos os sinais, os contatos também com [o Enviado Presidencial Especial para o Clima dos EUA] John Kerry, todos os sinais são de que essa visão estratégica permanece e continuará rendendo esses resultados.
Eu queria falar de dois exemplos que muitas vezes aparecem (por uma falta de informação) como sendo exemplos de casos que nós cedemos a interesses americanos simplesmente por uma questão de amizade ou “ideológica” (como às vezes se fala), ou o que quer que seja. São os exemplos do aço e do etanol.
No ano passado, mais ou menos na metade do ano, nós fomos procurados para ter conversas com os parceiros americanos sobre o setor do aço. Em 2018, os Estados Unidos impuseram tarifas altas ao setor do aço, para proteger o seu setor, que faz parte dessa questão da reindustrialização americana que eu estava falando. O Brasil, então, no governo anterior – que foi um bom resultado, certamente –, conseguiu uma cota dentro dessa tarifa para poder continuar exportando, pois as tarifas eram proibitivas. Com a pandemia, o setor em crise, os parceiros americanos nos procuraram e falaram que teriam que diminuir a cota para o Brasil, ou então tirariam a cota. Então, durante algumas semanas, nós negociamos, falamos com o nosso setor privado. É claro que o ideal é uma não diminuição, mas nós acabamos conseguindo manter 90% dessa cota de aço – espero que em algum momento ela seja recomposta, ou até aumente –; e a opção seria perder esses 90% e ver as nossas exportações de aço sujeitas a tarifas cheias, como se diz, para toda a produção, o que paralisaria a nossa exportação de aço para os Estados Unidos.
Isso é um resultado que se deveu à qualidade do nosso diálogo. Eu tenho certeza de que, se não tivéssemos a qualidade do diálogo que temos, teríamos sofrido um impacto muito maior. Inclusive, a qualidade desse esforço negociador foi reconhecida pelo nosso setor privado, por representantes do setor privado, que já me disseram pessoalmente isso. Não foi uma simples aceitação de uma imposição dos Estados Unidos; foi parte de uma negociação. Claro, às vezes negociamos para ganhar e às vezes negociamos para não perder, ou para minorar o máximo possível as perdas. Todos os que conhecem negociação sabem que é assim. E temos que ver também o balanço geral de uma relação, o balanço geral de uma parceria – e esse eu tenho certeza de que é positivo.
O outro exemplo é no setor do etanol. Nós tínhamos concedido, em 2019, a extensão de uma cota e um pequeno aumento de uma cota para o etanol americano no mercado brasileiro, o que venceria em setembro do ano passado; aí, começamos a conversar com os Estados Unidos sobre o que fazer com isso. O ideal, para o que dizia o nosso setor do açúcar e do álcool nessa ocasião, era não estender essa cota, porque o setor estava em um momento difícil; por outro lado, era algo importante para os Estados Unidos, e a perspectiva era de que, se nós não conseguíssemos um entendimento, nós perdêssemos o mercado para o etanol brasileiro nos Estados Unidos (que é um mercado mais ou menos equivalente ao mercado para o etanol americano no Brasil); perdêssemos talvez parte da nossa cota de açúcar na exportação para os Estados Unidos, e até mesmo as preferências que nós temos no Sistema Geral de Preferências (SGP), que são preferências unilaterais concedidas pelos Estados Unidos, que beneficiam mais ou menos 2 bilhões de dólares de exportações brasileiras para os Estados Unidos. Esse era o quadro, e isso era o que podíamos perder.
Então, conseguimos um acordo em que nós estendemos por três meses essa cota, com a perspectiva de negociar um entendimento melhor e definitivo, que acabou não sendo possível, mas, dentro desse entendimento de três meses, uma extensão de cota foi acompanhada por uma concessão adicional de cota americana de açúcar de 80 mil toneladas em favor dos exportadores brasileiros. Aconteceu que, ao final de três meses, por uma questão de estrutura de preço, de câmbio, etc., os exportadores americanos praticamente não aproveitaram essa extensão de cota que era, se não me engano, de 187 milhões de litros de etanol. Aproveitaram uma proporção ínfima, no valor de mais ou menos 800 mil dólares de exportações para o Brasil, enquanto essa cota que nós conseguimos nesse mesmo contexto, de 80 mil toneladas adicionais de açúcar no mercado americano, foi inteiramente aproveitada pelos exportadores brasileiros de açúcar, em valor na faixa de 40 milhões de dólares.
Esse foi o resultado do entendimento que é considerado um entendimento negativo para os interesses brasileiros. Quer dizer, nós evitamos a perda do SGP (2 bilhões de dólares que poderiam ser afetados); nós evitamos a perda do mercado das exportações brasileiras de etanol para os Estados Unidos; nós aumentamos a nossa cota de açúcar para o mercado americano; e aumentamos a nossa importação de etanol no valor de apenas 800 mil dólares, em um contexto em que nós, digamos, ganhamos 40 milhões.
Isso é resultado de uma negociação da qual eu participei pessoalmente. Foi conduzida, basicamente, pelo Itamaraty – tanto no caso do aço quanto no caso do etanol. Acho que são dois bons exemplos, pois um é na área industrial e outro na área agrícola, do agronegócio. Tenho certeza, tanto no caso do etanol como no do aço, de que isso não teria sido possível se não houvesse a qualidade do diálogo que nós tínhamos construído com as autoridades comerciais americanas. Então, isso é um exemplo de resultados concretos nessa relação, que é objeto de tantas desinformações, que é a relação com os Estados Unidos.
Antes de abrir a palavra para perguntas, quero apenas falar rapidamente de outra questão que se fala muito, de que a nossa política, a nossa gestão prejudica a imagem do Brasil no exterior hoje. Bem, hoje, o que nós vemos, infelizmente, é uma espécie de esforço de algumas correntes políticas do Brasil em criar, deliberadamente, uma má imagem, uma imagem totalmente distorcida do Brasil no exterior. Vou dar três exemplos.
Um seminário, na semana passada, organizado em Harvard, chamado Brazil Day, organizado por pessoas que se dizem analistas de política externa ou de relações internacionais, ou do que quer que seja, que procurou promover a imagem de que existe um risco à democracia no Brasil, de que existe um retrocesso democrático no Brasil. Os senhores me dirão se é verdade ou não. Eu tenho a impressão de que, absolutamente, não é verdade. Nós temos uma democracia vibrante, total independência de poderes, total transparência, total liberdade de informação, liberdade de expressão.
Houve também um famoso relatório que foi preparado por diferentes entidades aqui do Brasil e enviado para a nova administração americana, procurando pintar uma imagem de um Brasil e de um governo, no nosso caso, que deliberadamente destrói o meio ambiente; que atenta contra os direitos humanos; que atenta também contra a democracia, contra liberdades fundamentais; uma obra, basicamente, de ficção – muito ruim, em termos de estilo –, mas uma obra de ficção que procurou ser vendida e apresentada como a realidade do Brasil. Felizmente, as pessoas da administração Biden são tão abertas à boa informação e tão inteligentes quanto as pessoas da administração anterior e sabem o valor desse tipo de coisa. Mas vemos que é um esforço deliberado.
O último exemplo é uma carta que foi assinada por alguns ex-ministros do Meio Ambiente, dirigida ao Presidente Emmanuel Macron e à Chanceler Angela Merkel, pintando um quadro desesperador do Brasil em relação à pandemia e pedindo auxílio, como se não existisse um governo federal que está atuando no Brasil nessa área.
Então, acho que quem produz a imagem que infelizmente é ruim e é totalmente desconectada da realidade, no exterior – e que afeta, aí sim, os nossos interesses; que prejudica a consecução do nosso acordo com a União Europeia, por exemplo –, são setores que não querem todo esse processo de abertura no qual nós estamos engajados, que não querem uma boa relação nem com os Estados Unidos, nem com a União Europeia e nem com o mundo desenvolvido. Não por implicância, mas porque sabem que essa relação é transformadora, que esse conjunto de relações que nós estamos criando transforma o velho sistema de corrupção, de atraso, ao qual essas pessoas estão ligadas, do qual elas têm saudades, o qual elas gostariam de restabelecer. A meu ver, essa é a origem da questão da imagem.
Obrigado.
1Link para o vídeo: https://www.youtube.com/watch?v=E6y7VGLm82Q&feature=youtu.be.