Notícias
Intervenção do Ministro Carlos França na Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional do Senado Federal
Intervenção do Ministro Carlos França na Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional (CRE) do Senado Federal (19/08/2021)[*]
É para mim uma grande satisfação atender ao convite de Vossa Excelência, Presidente Kátia Abreu, para participar desta audiência pública sobre temas de alta relevância da agenda do MERCOSUL.
A Senadora Kátia Abreu, como Presidente desta Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional, estabeleceu valiosa parceria com o Itamaraty. Aproveito esta oportunidade para renovar meu compromisso pessoal de continuar a trabalhar em estreita sintonia com esta Casa e com a Senadora na promoção e defesa dos melhores interesses da inserção internacional do Brasil.
É também motivo de satisfação poder dividir esta mesa com o Ministro da Economia, Paulo Guedes; com o Professor, Doutor e Embaixador Celso Lafer – duas vezes Ministro das Relações Exteriores do Brasil –; com o Embaixador do Uruguai Guillermo Valles; e com o Doutor Fabrizio Panzini, em representação da Confederação Nacional da Indústria: todos têm grande contribuição a dar ao tratamento do tema que nos reúne aqui hoje.
Senhora Presidente Kátia Abreu,
Senhores senadores,
Senhoras e senhores,
O MERCOSUL, como sabemos, comemorou neste ano seu trigésimo aniversário. Ele é, sem dúvida, a melhor corporificação do mandato da Constituição Federal em favor da integração regional. Historicamente, serviu para consolidar os processos de redemocratização no Cone Sul; para afastar a hipótese de conflito bélico entre Brasil e Argentina; e para colocar as relações do Brasil com seu entorno nos trilhos da cooperação e do entendimento.
Em termos estratégicos, o MERCOSUL contribui para elevar o peso geopolítico do Brasil, é fator de paz e cooperação na América do Sul, amplia o perfil internacional de seus integrantes e é um aliado dos nossos esforços de desenvolvimento.
O lado econômico-comercial tende a receber mais atenção do público, mas a verdade, como já foi dito aqui, é que o MERCOSUL possui uma agenda multifacetada. Não há domínio da política pública que não seja tratado em algum foro específico do MERCOSUL. Apenas para dar alguns exemplos, o MERCOSUL alcança temas de justiça, segurança, educação, ciência e tecnologia, cultura, defesa do consumidor, entre tantos outros. Em todos eles, buscamos formas variadas de cooperar e integrar, valendo-nos de uma abordagem gradual e progressiva.
O balanço dos ganhos econômicos do MERCOSUL é significativo. A remoção das barreiras tarifárias ao comércio levou, no início do projeto integracionista, a um forte crescimento das trocas entre os quatro sócios. Ao longo do tempo, o peso do MERCOSUL foi diminuindo em nosso comércio total. Porém, ainda hoje, o bloco é o principal destino das vendas brasileiras em setores importantes, como o automotivo, o químico e o têxtil, e também muito relevante em outros segmentos. Para não falar dos fluxos de investimentos estimulados pelo processo de integração e da dinâmica de integração produtiva, cujo potencial precisamos continuar a explorar. Não é por outra razão que a indústria nacional constitui uma grande defensora do MERCOSUL em nossa sociedade.
Reconhecer o valor do MERCOSUL em suas múltiplas dimensões não significa, naturalmente, ignorar as carências e os desafios que ele ainda enfrenta. E agora entro no assunto que nos ocupa hoje. Quando se avalia a trajetória do MERCOSUL, pode-se identificar uma clara promessa ainda não cumprida. Embora enunciado como objetivo no Tratado de Assunção, o fato é que até hoje o MERCOSUL não logrou transformar-se em plataforma para a inserção competitiva dos seus integrantes nos mercados globais. Se o MERCOSUL já serviu para estreitar os laços econômico-comerciais entre os quatro sócios e também com a América do Sul, pouco fez, até o momento, para a projeção dos seus integrantes na economia global.
O governo do Presidente Jair Bolsonaro, a que sirvo com muito orgulho, tem trabalhado, desde o início, para corrigir essa lacuna do MERCOSUL. Já nos primeiros dias de 2019, mobilizou-se para dar um impulso decisivo às negociações comerciais do MERCOSUL com parceiros de fora da região. O foco prioritário residiu, inicialmente, nas tratativas com a União Europeia, que se arrastavam havia muito tempo. Paralelamente, e com o mesmo objetivo, o Brasil trabalhou para introduzir na agenda prioritária do bloco a revisão da Tarifa Externa Comum (TEC), que estabelece o nível de proteção contra a entrada de produtos estrangeiros no mercado ampliado do MERCOSUL e constitui o principal instrumento de política comercial da união aduaneira do bloco. É importante dizer aqui: em seus vinte e cinco anos de existência, a TEC jamais foi objeto de uma revisão integral.
Revisão da TEC e negociações externas são as duas faces de uma mesma moeda. E ambas as faces refletem o propósito de aumentar os níveis de competitividade e abertura da economia brasileira e de melhorar nossa participação nas cadeias regionais e globais de valor. Trata-se de objetivos do programa de governo do Presidente Bolsonaro, para cuja consecução o MERCOSUL constitui um aliado fundamental.
A revisão da TEC, incluída entre as metas de 100 dias do governo Jair Bolsonaro, foi inserida na agenda de trabalhos do MERCOSUL já em março de 2019. Para o Brasil, naquele momento, estava claro que um elemento fundamental nessa reforma seria reduzir a TEC, cuja média se situa em 13,5%, nível bastante alto para os padrões mundiais e que impõe elevados custos e restringe o leque de opções de insumos para nossa indústria e de bens de consumo para nossas populações. Tínhamos muito presente também que caberia atacar problemas de estrutura da TEC. Um deles, por exemplo, são os picos tarifários, situações em que as tarifas aplicadas pelo país são consideravelmente superiores às que se observam na média mundial.
No processo de revisão, identificou-se de imediato um alinhamento de posições entre Brasil, Paraguai e Uruguai. A Argentina, que passou por transição política no período, tardou a definir sua posição e, quando o fez, apenas em agosto de 2020, demonstrou um grau de ambição menor que o dos demais sócios. Em março do corrente ano, a partir de uma iniciativa do Ministério da Economia, o Brasil apresentou uma nova proposta de revisão da TEC, que levava em conta as dificuldades enfrentadas para se alcançar uma posição convergente dentro do MERCOSUL, bem como as preocupações de segmentos do nosso setor produtivo com o contexto econômico desafiante, agravado pela pandemia.
A proposta consistia em dois cortes tarifários lineares de 10%, para todo o universo de produtos, a serem esses cortes implementados em julho e dezembro do corrente ano, respectivamente. Buscava-se obter, por meio de proposta menos ambiciosa e de mecanismo tecnicamente simplificado, um resultado concreto a curto prazo na revisão da TEC. O objetivo era emitir uma sinalização, dentro do Brasil, mas também para o mundo, do claro compromisso do país com a abertura, um dos eixos da plataforma do governo Bolsonaro. No mês seguinte, a Argentina apresentou contraproposta que implicava redução média das alíquotas da ordem de 10%, porém sem linearidade ou transversalidade e com foco na desgravação de insumos produtivos e bens não produzidos regionalmente.
Desde então, Presidente Kátia Abreu, as negociações buscam aproximar as posições dos países. Nesse sentido, o Brasil realizou contínuos esforços para obter um ponto de convergência com a Argentina, que, cabe ressaltar, chegou a apresentar uma modulação da sua proposta ao aceitar uma redução linear de 10%, mas limitada a 75% do universo de produtos que tínhamos inicialmente proposto.
Não foi possível alcançar um resultado sobre TEC durante a presidência argentina do MERCOSUL, no semestre passado. Essa presidência se encerrou em 8 de julho deste ano. Não obstante, continuamos a trabalhar para chegar a um acordo neste tema que é tão central para o governo brasileiro, e quero dizer que, para tanto, mantenho diálogo franco, fluido e muito cordial com o meu homólogo, o Chanceler Felipe Solá, da Argentina.
Senhoras e senhores,
No esforço de transformar o MERCOSUL em instrumento efetivo de inserção global, o governo brasileiro tem concentrado esforços não apenas no processo de revisão da TEC, mas também em dar um impulso mais decidido em favor das negociações externas. Nesse contexto, temos buscado corrigir um descompasso que se percebe entre as vertentes regional e extrarregional da agenda de relacionamento externo do MERCOSUL. Se o bloco já possui hoje acordos de livre comércio com quase toda a América do Sul, até a primeira década do século atual só havíamos assinado, fora da região, acordos de livre comércio com Israel, Palestina e Egito. Com o avanço das negociações com a União Europeia, a partir de 2016, criou-se um ambiente propício para o lançamento, em 2017, de negociações com a Associação Europeia de Livre Comércio (EFTA, que reúne Suíça, Noruega, Islândia e Liechtenstein); e em 2018, com o Canadá, a Coreia do Sul e Singapura.
O governo Bolsonaro iniciou-se com o firme objetivo de concluir as negociações com a União Europeia e a EFTA – o que ocorreu em 2019 – e de acelerar as negociações com Canadá, Coreia do Sul e Singapura. Naquele ano, também retomamos as negociações de acordo de livre comércio com o Líbano, que haviam sido interrompidas em 2016. Desde então, estamos trabalhando para concluir as pendências e poder firmar os acordos com União Europeia e EFTA. Estamos também trabalhando para lançar novas frentes negociadoras, como as que já foram autorizadas pela CAMEX com a Indonésia e o Vietnã; e também para ampliar os acordos atuais que temos com Índia e Israel.
Não é possível mencionar as negociações externas sem tratar das chamadas “flexibilidades”. O governo do Presidente Jair Bolsonaro tem apontado o conceito de flexibilidade como elemento importante para seguirmos adiante naquelas negociações externas em que não houver um grau mínimo de coincidência de interesse entre nós. A regra do consenso, portanto, não pode ser utilizada como instrumento de veto nem como obstáculo à abertura do MERCOSUL para o mundo. É importante ressaltar que o Itamaraty entende que o tratamento do tema das flexibilidades, tratado sempre dentro da agenda do bloco, sem prejuízo de que a questão possa voltar a surgir, caso a caso, em negociações externas que estejam em curso ou que venham a ocorrer futuramente.
Se é fundamental avançar nas negociações com parceiros extrarregionais, as tratativas com nosso entorno não são menos importantes. Quando enfocamos a América do Sul, devemos atentar para o fato de que, em 2019, graças à implementação de acordos que negociou nos anos 90 e no início de 2000, foi conformada uma área de livre comércio de fato do MERCOSUL com os países da região. Este é um ganho ainda pouco conhecido do público em geral, mas que realça, de forma muito concreta, o papel do bloco como promotor da integração regional.
Cientes da importância estratégica da América Latina, temos buscado consolidar e expandir essa rede de acordos na região. Em 2019, implementamos o livre comércio automotivo com o México e temos nos empenhado, desde então, em engajar o lado mexicano na ampliação do limitado acordo que possuímos com aquele país nos demais setores, sobretudo para garantir um acesso efetivo ao mercado agrícola.
Em outra frente, atuamos junto ao Congresso Nacional, com apoio do setor produtivo, para internalizar o amplo acordo de temas não tarifários que fechamos com o Chile. Estamos, ainda, em contato com a Colômbia visando aprimorar o acesso a produtos agropecuários, lançar a negociação de acordo sobre compras governamentais, além de aprofundar a liberalização do comércio bilateral no setor automotivo.
Trabalhamos, também, para expandir a fronteira de liberalização comercial para além da América do Sul, mediante tratativas com parceiros da América Central e do Caribe. Durante a presidência de turno brasileira do MERCOSUL, já acordamos com os sócios buscar retomar reunião da Comissão Administradora do acordo de livre comércio com o Peru e explorar espaços para a atualização do marco normativo que regula nossa relação econômico-comercial com o Equador. Este ano encontra momento para esses movimentos, uma vez que nós tivemos recentemente eleições e posse de novos mandatários tanto no Peru quanto no Equador.
Ainda no contexto regional, a articulação com a Aliança do Pacífico é fenômeno relativamente recente. O potencial aqui é claro: os dois agrupamentos respondem, juntos, por cerca de 90% do produto interno bruto e dos fluxos de investimento externo direto na região. O comércio recíproco corresponde a 30% do total das trocas dentro da Associação Latino-Americana de Integração (ALADI) e é conformado sobretudo por produtos de alto valor agregado, geradores de maior renda e empregos de melhor qualidade. Os dois agrupamentos representam cerca de 76% da população regional, um mercado de mais de 500 milhões de pessoas.
Se já avançamos na definição de uma agenda de cooperação com a Aliança do Pacífico, ainda resta o desafio de encontrar fórmulas efetivas para gerar resultados concretos. O MERCOSUL, a partir de iniciativas do Brasil, colocou sobre a mesa propostas de acordos em facilitação de comércio e convergência regulatória, mas até o momento não logramos um entendimento com os parceiros da Aliança, que parecem relutar em conferir uma dimensão propriamente negociadora ao processo de aproximação. Durante o presente semestre, o Brasil estará em contato com a presidência rotativa da Aliança do Pacífico, que cabe à Colômbia, para tentar impulsionar essa vertente de ação que esperamos possa vir a converter-se, no futuro, em um dos principais vetores de modernização da integração regional e de penetração nos mercados dinâmicos da Ásia-Pacífico.
Por fim, o tema da ampliação do MERCOSUL pode ser entendido, em seu sentido mais estrito, como a adesão de novos membros ao bloco. O que se tem hoje é um processo ainda em curso de adesão do Estado Plurinacional da Bolívia. Acreditamos ser necessário levar em conta aqui as lições aprendidas com a adesão da Venezuela, que se encontra atualmente suspensa do bloco não apenas por ter violado a cláusula democrática, mas – importante ressaltá-lo – por não ter cumprido com as normas e compromissos requeridos para sua adesão. Uma eventual adesão da Bolívia deveria significar um pleno engajamento dela com o acervo normativo do MERCOSUL e com sua agenda de modernização, caracterizada pela retomada dos valores originais do bloco em favor do livre comércio e da abertura para o mundo.
E aqui me permito fazer uma pequena digressão, o Embaixador Guillermo Valles comentou aqui da vocação do Uruguai como um país articulador, ele chamou um “país bisagra” – em português, dobradiça –, que é importante, porque é o que conecta a porta ao batente, então é o que faz a articulação. A Bolívia também se vê como uma terra de contatos. É muito comum ouvir os bolivianos se referirem à Bolívia como união entre o Pacífico e o Atlântico, fruto de uma doutrina da Bolívia como terra de contatos, de Ostria e de Guachalla, formulada logo após a Guerra do Chaco, que justamente entende a Bolívia como esse país articulador. Então nós vemos condições de a Bolívia se unir ao MERCOSUL. Mas como talvez não tenha acontecido com a Venezuela, mas aconteceu com os sócios originais do bloco, é importante esse compromisso, essa adesão a todo esse acervo normativo. Fora a Bolívia, não há nenhum outro país que esteja sinalizando interesse em fazer parte do MERCOSUL como membro pleno. Recorde-se que todos os países da América do Sul estão de alguma maneira associados ao bloco.
Senhora Presidente, senhoras e senhores,
Quero, em conclusão, saudar a iniciativa de promover este debate sobre os rumos do MERCOSUL, um ativo central para a inserção do Brasil no mundo. Estamos convencidos de que o êxito desse projeto de integração depende fundamentalmente do engajamento da mais ampla gama de atores. Por isso, valorizo muito esta oportunidade de intercambiar pontos de vista no âmbito do Congresso Nacional, que é, por definição, a instância representativa da pluralidade de interesses da sociedade.
Reitero, particularmente neste momento em que o Brasil ocupa a presidência semestral do bloco, o compromisso do Itamaraty de juntos trabalhar para um MERCOSUL mais moderno e que possa contribuir para um Brasil mais próspero para todos.
Muito obrigado.