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Entrevista do Ministro Ernesto Araújo concedida ao canal Crítica Nacional
Entrevista do Ministro das Relações Exteriores, Embaixador Ernesto Araújo, concedida ao canal Crítica Nacional (13/05/2020)*
Paulo Eneas – Amigos do Crítica Nacional, bom dia. Começamos agora uma edição extraordinária do jornal Crítica Nacional destinada a receber um convidado muito especial que vai conversar conosco, o Chanceler Ernesto Araújo. Então, eu já quero aproveitar e trazê-lo à tela. Senhor Ernesto Araújo, bom dia. Em primeiro lugar, muito obrigado por nos receber.
Ministro Ernesto Araújo – Muito bom dia, Paulo. É uma grande alegria estar com você aqui.
Paulo Eneas – A satisfação é nossa. Quero agradecer ao senhor por ter tirado um tempo para conversar conosco. Eu sei que será por alguns minutos, em função dos seus compromissos, mas é uma satisfação nossa recebê-lo aqui.
Ministro, eu gostaria de começar, inicialmente, tratando de um artigo recente que o senhor publicou no blog Metapolítica 17, uma publicação particular que o senhor tem, falando do “comunavírus”.– ou seja, a epidemia que existe (que está aí, infelizmente), mas desenhando uma narrativa geopolítica e ideológica em torno dela. O senhor, inclusive, faz nesse artigo uma crítica muito enfática a um dos teóricos marxistas mais importantes da atualidade, que é Slavoj Žižek. Os porta-vozes globalistas criticaram enormemente o seu artigo, como era de se esperar – sinal de que o artigo tem muito mérito. Eu gostaria que o senhor discorresse um pouco a respeito da ideia central presente no artigo, por favor.
Ministro Ernesto Araújo – Claro. Isso é muito importante, porque uma das coisas que eu tento fazer muito é estudar os teóricos marxistas, os principais teóricos de esquerda, e isso já há alguns anos. O que acontece é que muita gente não estuda; então, muita gente tem a impressão de que em 1989 houve a queda do muro de Berlim, em 1991 acabou a União Soviética, e acabou; não precisa mais ler os teóricos marxistas. As pessoas nem sabem que eles existem; ignoram-nos. E o que acontece é que esses teóricos – inclusive alguns da maior capacidade intelectual, entre eles Slavoj Žižek – continuam escrevendo. Desde 1991, eles continuam escrevendo, procurando novos caminhos para o comunismo, para as ideias deles, para a implementação do comunismo, e chamando-o de diferentes maneiras.
Há uma coleção de três livros muito interessantes, chamados The Idea of Communism. É uma coleção de ensaios de dezenas de teóricos marxistas, entre eles Žižek, que é um dos organizadores. Acho que saiu em 2010. A coleção tem uns 40 ensaios, e alguns são muito bons do ponto de vista de profundidade intelectual; é claro que eu não concordo com os objetivos deles. Mas as coisas estão aí, e, sobretudo a partir dos anos 2000, com a ideia de que eles precisavam encontrar novos caminhos para essa utopia. Utopia para eles; para nós é uma distopia. Eu acho que para todo o gênero humano é uma distopia. Não adianta achar que acabou se não acabou.
É muito bom escolhermos o mundo ideal, onde não existe mais marxismo. Mas existe, até com a corrente anterior, que chamávamos de marxismo cultural, que vem de bem antes (pode ser que venha até dos anos 1930), sobretudo dos anos 1960. Mas especialmente a partir dos anos 2000, há uma clara tentativa de achar novos caminhos. Quer dizer, desistir, abandonar a ideia da implantação do comunismo pelo socialismo – ou seja, pela propriedade coletiva nos meios de produção – e encontrar novas maneiras. E isso é claro.
Isso está, inclusive nos teóricos latino-americanos também. A dimensão latino-americana desse pensamento marxista também é fundamental para entender a nossa região, para entender a Venezuela, para entender o Foro de São Paulo. Teóricos como Ernesto Laclau, que é argentino. É importante lê-los para entender. E tudo isso converge para um programa de não mais utilizar a propriedade coletiva dos meios de produção (que é o socialismo que aprendíamos na escola, que era a teoria socialista); é de outras maneiras. Eles começam a falar em criar novos caminhos; falam muito de coisas relativas à ideologia de gênero, à criação de novos sujeitos revolucionários. Isso é um pouco ignorado, embora esteja lá.
E tem esse livro do Žižek, que ele publicou agora – é um livreto, são artigos que ele tem escrito desde o começo da pandemia –, em que ele, de certa forma, entrega o jogo. Por isso que eu achei interessante e fiquei muito empenhado em analisá-lo. Porque ele desenvolve, um pouco, o raciocínio de que “estamos procurando novos caminhos para o comunismo; não é mais a revolução tradicional; tentamos as diferentes ideologias de gênero, esse tipo de coisa, mas, agora, temos o vírus; essa é a oportunidade gerada pela pandemia para a implementação de uma espécie de comunismo”. Ele diz que é uma nova espécie de comunismo, mas é a mesma.
Isso é que me chamou atenção, porque é algo que algumas pessoas já estavam falando, sobre o clima que gera de renúncia a liberdades fundamentais, o clima de renúncia à soberania nacional que está um pouco dentro da psique coletiva da resposta à pandemia. Isso já era uma coisa que parecia meio estranha. Nós estamos sempre falando da dimensão psicológica e não da dimensão da saúde, de técnica e de combate a uma epidemia. Nós estamos falando da dimensão ideológica.
E é isso que o Žižek fala, que há um vírus, e há também um vírus ideológico. Todo o resultado da pandemia vai permitir a contaminação de toda humanidade por esse vírus ideológico, que é o comunismo. E aí ele vai descrevendo, de maneira muito clara, o que ele entende por isso. É basicamente o fim da autoridade nacional e a submissão dos países a organismos internacionais. Ele diz muito claramente que “se vocês querem entender o que é esse novo comunismo que tenho em mente, leiam as recomendações das OMS”. Ele diz isso, de maneira muito clara.
Ele trata também da erosão das liberdades. Ele, visivelmente, coloca como sua visão de futuro ideal da humanidade uma cidade quarentenada, com todos trancados dentro de casa, com todas as lojas fechadas ou vazias, ninguém na rua, uma pessoa de máscara aqui, uma pessoa de máscara ali. “Nossa, que maravilha!”. Aquilo que para nós, pessoas racionais, normais, é uma circunstância que esperamos que acabe logo, para ele, não; isso é o futuro: o fim, digamos, do Estado-nação; a autoridade supranacional; o fim das liberdades individuais – cada um trancado em seu cubículo.
Uma coisa muito central que ele fala é que o próprio espírito humano seria um vírus que tem que acabar. É basicamente isso. Não com essas palavras, não estou citando textualmente aqui, mas ele diz que o espírito humano é um vírus, é uma doença; e a própria linguagem humana tem de estar sujeita a regras. Isso é muito profundo, porque uma coisa é o controle social do corpo das pessoas: onde você pode ou não pode ir, se você tem que usar máscara ou se você não tem que usar máscara. Outra coisa, já mais profunda, é o controle do espírito através do controle da linguagem.
Eu, pessoalmente, já vinha vendo isso e falando disso. É algo que eu vejo, acho que outras pessoas já viram antes de mim – de forma nenhuma, eu fui o primeiro –, mas eu procuro chamar atenção para isso, porque, como eu coloco lá no artigo, eu acho que o grande inimigo do comunismo, o que ele quer destruir, não é o capitalismo; é o espírito humano, que é o centro de tudo que há de bom na nossa vida, e dos nossos desafios também. E como é que você destrói o espírito? Pelo controle da linguagem. O espírito vive na língua. Então, essa programação toda do politicamente correto (que, cada vez mais, já vinha restringindo o que você pode e o que você não pode falar), de alguma maneira, nessa visão dele, se acelera com todo esse clima gerado pela pandemia. Parte dessa função, dessa contaminação pelo vírus ideológico que vai, segundo ele, construir um novo comunismo é a destruição do espírito. É a destruição desse vírus que, segundo ele, é o espírito humano, através do controle da linguagem.
É uma visão horrível de uma sociedade de controle absoluto, e ele está colocando lá, abertamente. Inclusive, eu acho que alguns teóricos marxistas nem concordaram com ele, talvez até com receio, pensando “olha, o cara está mostrando o jogo; não deveria estar”. Então, acho que Žižek prestou um serviço, mostrando qual é a ideia, e eu procurei chamar atenção para isso. Eu acho que, em alguns cantos, meu artigo foi criticado – sempre é bom ser criticado, porque estamos fazendo as pessoas pensarem – porque não entenderam o que é a ideia do Žižek e o que é minha crítica ao Žižek, que, no fundo, é chamar atenção para o que parece ser uma programação de ação.
Eu também não disse que o vírus seria um complô comunista. Não é. Isso é uma maneira de não entender. Eu estou falando da filosofia. Não estou dizendo que haja um complô e nem estou dizendo que o coronavírus seja parte desse complô, absolutamente, porque não é o que Žižek diz, e eu estou comentando o que ele diz. Por um lado, é assustador, mas, é isso que existe, e é contra isso que temos que nos insurgir. Não adianta ignorar e dizer que não existe. Está aí. E é um autor influente, é um autor que eu acho que expressa uma certa mentalidade.
Eu também não digo que exista (não existe, eu acho; eu espero que não) um comitê central de pessoas que estão ali planejando: “como é que nós vamos fazer o comunismo a partir da pandemia?” Mas essas coisas já estão no ar há algum tempo; já vinham, em grande parte, sendo preparadas, ao longo de, pelo menos, trinta anos. É esse processo de reconstrução do marxismo. Agora, nós temos marxismo sanitário, que Žižek está colocando, que não tem nada a ver com saúde. De novo, não estou criticando as medidas; cada país faz as medidas que quiser, de quarentena, de não quarentena. Não é isso.
E, se me permite estender-me um pouco, isso tem a ver, também, com a questão da linguagem e um pouco com a reação de algumas pessoas ao que eu escrevi. É essa questão de que “ah, ele está dizendo que tem complô”. Isso é uma coisa muito importante e muito grave: a perda da capacidade metafórica na linguagem humana das pessoas, no mundo todo. Esse é um fenômeno dessas últimas décadas. As pessoas não conseguem mais pensar através da metáfora. Quando você fala, as pessoas só veem o concreto. Então, se eu estou atribuindo a Žižek uma metáfora que ele usa, do vírus ideológico, as pessoas acham que eu estou falando do vírus, do coronavírus, da COVID-19, e não é. Mas isso é esse reflexo. Essa destruição da linguagem para destruir o espírito é algo que esse marxismo cultural já vinha operando, e eu acho que isso já está ficando claro, agora, como muitas coisas estão ficando claras com a pandemia e tudo que está gerando no mundo.
Acho que há dois grandes problemas cognitivos hoje em dia. Um é esse: a perda da capacidade metafórica. O pensamento precisa de metáfora. Você pode dizer que toda palavra, no fundo, é uma metáfora, qualquer conceito é uma metáfora. Você fala de liberdade, por exemplo. O que é isso? Toda abstração, de certa forma, envolve uma dimensão metafórica. É impossível o pensamento humano sem metáfora. Então, eles querem que fique um pensamento totalmente raso, totalmente horizontal.
Outro problema grave, cognitivo, que eu tento combater é confundir juízo de fato com juízo de valor. Machado de Assis tem uma crônica de que eu estava me lembrando outro dia, que ilustrava esse fenômeno, mais ou menos assim: havia dois homens caminhando na rua, e um deles diz: “aquela casa é amarela”. O outro, então, diz: “você gosta de amarelo? Que estranho.” “Não, eu estou dizendo que a casa é amarela”. “Nossa, que mau gosto, você gostar de casa amarela”. “Não, eu estou dizendo que a casa é amarela, não estou dizendo que eu gosto da casa amarela”. Isso é difícil, hoje em dia. Lógico, Machado de Assis, há mais de cem anos, já anunciava isso. E isso é muito grave, porque você perde a capacidade de dialogar, de ter um debate inteligente em qualquer área, quando você não consegue distinguir juízo de fato de juízo de valor.
Isso é muito presente, hoje, na grande imprensa. A grande mídia hoje só conhece dois verbos: atacar e defender. Ou você está atacando ou você está defendendo. Outro dia, inclusive, eu citei Jacques Lacan – aliás, é uma frase de Lacan que eu vi em outro livro do Žižek –, numa palestra que eu dei[1], que eu citei até com interesse, e disseram “Ernesto Araújo ataca Lacan”. Eu não ataquei Lacan. Mas só há dois verbos: atacar e defender. É difícil você ter uma discussão inteligente quando só existem dois verbos, quando só existem dois conceitos.
Bem, falei muito.
Paulo Eneas – Não. Está ótimo. Até porque eu também vi a repercussão desse artigo. Grande parte da repercussão baseada nisso que o senhor disse, da dificuldade da distinção dos valores e do fato. Todas as críticas vieram no sentido de não entender a metáfora. Aliás, é até a metáfora usada pelo próprio autor original que o senhor criticou, o Žižek.
O senhor mencionou também um autor que eu acho muito importante, que é o Ernesto Laclau. Ele deu uma guinada de 180 graus no marxismo, ao dizer que, na verdade, é a ideia revolucionária que vai criar a classe revolucionária – exatamente o contrário do marxismo clássico. E isso, é claro, é um pouco do desdobramento da Escola de Frankfurt. Foi uma ideia que foi sendo germinada a partir da Escola de Frankfurt. E, depois da Segunda Guerra, nós vimos, de maneira mais explícita, essa convergência de interesses globalistas, dos globalistas modernos, vamos chamar assim, metacapitalistas, com o movimento comunista.
O senhor observa que, no imaginário criado em função da situação da epidemia, essa convergência, me parece, está cada vez mais explícita, inclusive a partir das falas como a de Žižek, por exemplo, ao dizer que o novo soviete supremo internacional é a OMS. É algo nesse sentido, ou seja, eles estão entregando, realmente, o jogo ao dizer “nós queremos construir uma sociedade autoritária” – ele não diz que é autoritária, obviamente, mas é, sim, uma sociedade autoritária – “com indivíduos atomizados, com o abandono de toda e qualquer tradição e valores éticos e morais de base judaico-cristã, baseada em uma ideia de uma arquitetura de destruição” – que é essa imagem que, para nós, é depressiva; estamos vendo, nas grandes cidades, todos os estabelecimentos comerciais fechados, as cidades abandonadas, pessoas andando de máscaras na rua e coisas do gênero. É uma imagem até mesmo distópica e ele vê nisso até um valor estético, inclusive.
Então, eu queria dizer o seguinte: o senhor acredita que, nessa situação de epidemia, as respostas que estão sendo ensejadas evidenciam isso, que, aliás, o próprio professor Olavo de Carvalho já diz há anos, ou seja, essa convergência cada vez mais explícita dos agentes globalistas modernos com o movimento comunista? Tanto que não vemos uma voz de esquerda, por exemplo, criticando as medidas de cerceamento de liberdades e outras sendo tomadas, aqui no Brasil e no resto do mundo, sob pretexto de combater a epidemia. Parece que isso fica mais evidente, agora, nessa situação colocada. Ou seja, o vírus que Žižek fala está realmente presente. É impossível não ver esse aspecto.
Ministro Ernesto Araújo – Claro. Eu acho que, por um lado, sim, está ficando muito mais claro. E isso está sendo uma coisa geral nessa pandemia, muitas coisas estão ficando claras. Eu acho que essa pandemia é uma espécie de reagente que foi jogado no sistema mundial e está mostrando onde estão as cores verdadeiras de determinados fenômenos, de determinadas correntes.
É muito claro que está havendo uma tentativa de captura de toda essa resposta à pandemia por parte do projeto de esquerda, chamemos como chamemos. A questão das liberdades individuais, das liberdades públicas, isso parece muito claro. Não vou entrar na discussão se é necessária ou não a quarentena, nem que grau ou em que tipo de nuance, nem se funciona em certos países ou em outros. Isso não me cabe discutir aqui. Mas parece óbvio que quem quer menos liberdade para o ser humano, quem quer construir um projeto sem liberdade, diz “Olha, que beleza! Surgiu uma oportunidade maravilhosa aqui, porque, por meio do medo das pessoas, nós vamos construir uma sociedade sem liberdade”. Žižek foi quem mostrou o jogo, mas esse jogo está por aí, me parece. É uma oportunidade de relativizar, de maneira brutal, a liberdade em nome da saúde.
É isso que eu sempre tenho tentado dizer. Eu acho que uma coisa da essência do pensamento conservador, ao qual modestamente pertenço, é a capacidade de lidar com a contradição – porque toda a vida humana, toda a existência, é eivada de contradições – e de saber administrar essas contradições. Do outro lado, a esquerda, todo o complexo ideológico da esquerda, é de romper contradições, é sempre ir para um lado só. Eu acho que o lado conservador é o lado do bom senso. O lado esquerdista é o lado do radicalismo, sempre.
Isso está se vendo agora. O que é o bom senso? “Vamos ver, aqui, como lidamos com isso, porque, ao mesmo tempo, tem a economia, tem os empregos.” Isso é uma visão nossa, do Presidente Bolsonaro, claramente. A saúde das pessoas, obviamente, é a grande prioridade, mas, ao mesmo tempo, temos uma economia, temos pessoas que estão correndo o risco de morrer de fome, estão tendo o seu sustento destruído. Isso está acontecendo no Brasil e em outros países, por tudo o que está acontecendo.
E como nós lidamos com essa contradição? É sempre tentar achar um equilíbrio, ainda que mais ou menos precário. É para isso que nós temos o pensamento, é para isso que nós temos sentimentos: para encontrar equilíbrios diferentes em momentos diferentes. Isso é que é o pensamento humano e esse é que é o caminho do espírito humano.
Do outro lado, você tem só uma coisa, no caso, só a saúde. Mas eles não estão preocupados com a saúde; estão preocupados em usar isso. É mais uma coisa também que eu falo: a ideia de sequestrar e perverter. Ou seja, pegar uma agenda nobre, necessária (no caso, a saúde), e perverter para os seus objetivos. Isso nós estamos vendo.
Claro, essa é uma oportunidade para todo mundo que queria um mundo com menos liberdade, um mundo com controle social de cima, o fim do Estado-nação. Isso é um programa realmente claríssimo. Eu acho que há uma grande convergência de certas programações chamadas “capitalistas” – que não são; o capitalismo é parte do horizonte da liberdade, mas, enfim, do aproveitamento do capitalismo – e, ao mesmo tempo, do socialismo e do comunismo: é acabar com o Estado-nação.
Então, é óbvio que essas correntes viram essa oportunidade e, também, não é por acaso que, de repente se está usando isso para dizer: “olha, os países individuais não têm capacidade de lidar com essa situação; precisamos de um governo global”. Isso é um mantra que se cria: “ah, esse tema é global, exige uma solução global”. O que é uma solução global? É você ter burocratas internacionais, sabe-se lá respondendo a que agenda, impondo soluções aos países. Isso tudo está se acelerando.
Por outro lado, está sendo bom, pois muitas pessoas estão acordando para coisas que nós falávamos e que as pessoas não achavam que fosse verdade. Voltando à metáfora da casa amarela: não estou dizendo que a OMS seja uma coisa ruim; não quero demonizar de forma alguma a OMS ou qualquer organismo internacional; estou falando da maneira como isso é aproveitado. Nós vínhamos falando de globalismo. Um dos aspectos do globalismo (não é o único) é como os organismos internacionais são usados para corroer as soberanias nacionais, que são a morada, eu acho, da liberdade humana. Como é que isso é feito? Agora, você tem um autor marxista dizendo: “quer entender o comunismo? Olha aqui as resoluções da OMS.” O mundo tem de ser feito assim. E ele ainda fala que a OMS ainda é pouco. Claramente, o que ele quer é um “governão” mundial impondo tudo.
Isso está vindo à luz. É claro que existe aquela resistência cognitiva, de não ler, de não estudar. Mas eu acho que muitas pessoas que estavam, ali, sem acreditar, estão começando a acordar. Muitos países estão acordando para isso. Mas o reflexo do politicamente correto ainda é muito forte, porque é o que as pessoas aprenderam, estão aprendendo há anos; desde o jardim da infância, as pessoas aprendem a ter os reflexos do politicamente correto.
Eu tenho visto certas pessoas ao redor do mundo falando “ah, não pode ter xenofobia”. Não é o tema aqui; ninguém está falando de xenofobia, não é um tema de xenofobia, aqui. O tema é a erosão de liberdades, que está acontecendo. Isso é que é preocupante e que tem de ser administrado junto com (eu sempre venho falando) a questão da saúde. Mas há uma incapacidade de ver qual é o desafio do momento e a tendência de pegar a ficha que está pronta. Eu acho que não tem uma mesa central, um comitê central, mas, às vezes, parece que tem porque as pessoas imediatamente começam a ter o mesmo discurso. Diante da COVID-19, da pandemia, há pessoas morrendo, lamentavelmente, pela epidemia, mas também pessoas tendo suas vidas destruídas pela questão econômica, como a gente responde a isso? “Fala de xenofobia”. Mas ninguém está falando disso.
Paulo Eneas – Ou seja, é uma “não solução”. Traz uma “não solução” para o problema.
Ministro Ernesto Araújo – Claro. É um “não problema”, é uma “não solução”. É claro que ninguém é a favor de xenofobia, aqui (é como naquele exemplo: “eu estou dizendo que a casa é amarela”). Em outros momentos, o problema de xenofobia, claro, tem de ser evitado, tem de ser combatido, é óbvio, mas não é o tema aqui.
Eu vi também num debate alguém dizendo: “ah, o clima continua sendo um grande problema”. Ninguém está falando de clima, ninguém está falando de mudança climática. Agora, tem pessoas que têm essa preocupação e dizem: “ah, que bom, a pandemia está diminuindo a atividade econômica mundial, isso reduz as emissões...” Então, você vê que essas coisas estão ligadas.
Paulo Eneas – Exato. Agora, Ministro, indo um pouco para o tema, digamos assim, das implicações políticas, geopolíticas e econômicas, inclusive. O que nós constatamos, a partir do momento em que a epidemia se instalou, tornou-se um fato real no mundo, particularmente aqui no Ocidente, o que se verificou é que algumas medidas que se pretendiam tomar encontraram uma grande barreira e dificuldade pelo fato de o Ocidente, ao longo das últimas décadas, ter feito escolhas (que podem ser reavaliadas, obviamente) e ter transferido praticamente toda a sua base de produção industrial para a China. Desde produtos industrializados de nível elementar básico (podem ser até mesmo considerados como commodities, como equipamentos de proteção individual de uso hospitalar, entre outros) até mesmo coisas mais sofisticadas, como, por exemplo, respiradores, entre outros. É um dado da realidade que, hoje, qualquer produto que você compra no mercado, aqui no Ocidente, um produto industrializado, desde o mais sofisticado, como um chip, até uma coisa que é quase uma commodity (uma máscara, por exemplo), é grande a probabilidade de que seja fabricado na China.
Isso foi um processo construído ao longo das últimas décadas, obviamente. Permanece uma discussão à parte, mas parece que a epidemia evidenciou que essa situação cria uma dependência aqui do Ocidente que tem de ser reavaliada. Inclusive, alguns países, como o Japão, já anunciaram que estão tomando medidas explícitas no sentido de vir a adotar medidas institucionais para incentivar que as empresas japonesas saiam da China e voltem a produzir, ou seja, a instalar a sua base de produção industrial, no Japão ou em países que ofereçam, digamos, outras condições distintas daquela do regime chinês.
Eu queria que o senhor avaliasse um pouco isso. Ou seja, como o senhor vê isso que ficou evidenciado agora no caso da epidemia? Claro, já era visível para muita gente, obviamente, mas ficou visível de modo mais amplo, para mais pessoas, diante de situações dramáticas, problemas de equipamentos hospitalares e, até mesmo, de medicamentos. Ficou evidente a dependência do Ocidente, que transformou a China em seu parque de produção industrial, por circunstâncias outras que poderemos até tratar aqui, se for o caso. Eu queria ver como o senhor avalia isso e se o Ocidente vai precisar rever essas opções feitas – que têm a ver com várias razões geopolíticas, econômicas, de interesse capitalista imediato, o que é legítimo, mas, ao mesmo tempo, sem um norte, sem um parâmetro estratégico, acabam levando a situações como essa. Eu queria que o senhor avaliasse um pouco esse quadro que nós temos hoje no Ocidente como um todo e até no Brasil. Nós somos afetados por isso também, obviamente.
Ministro Ernesto Araújo – Claro. Sim, isso eu acho que é mais um dos elementos que estão sendo trazidos à tona por causa da pandemia e uma situação para a qual as pessoas estão acordando. E o que eu falo aqui não é, evidentemente, nenhuma crítica à China. A China operou de maneira muito boa, de acordo com os seus interesses, nesse tempo, atraindo investimentos e se tornando a principal potência industrial do mundo. Então, é óbvio que agiram de acordo com os seus interesses, de maneira totalmente legítima. Mas muitos países, sobretudo no Ocidente, e países ligados ao Ocidente, como Japão e Coreia, estão acordando para o problema que isso causa para eles, do ponto de vista dos seus interesses, e se perguntando o que todos esses trinta anos de globalização criaram. Criaram um enfraquecimento muito grande do Ocidente no coração industrial da economia, com tudo o que isso implica.
Toda a questão da pandemia está sendo um “acelerador histórico”. Coisas que iam levar mais tempo para serem percebidas e para serem tratadas estão vindo à luz muito mais rapidamente. Eu acho que nesses últimos dois meses nós vivemos vinte anos, talvez, de debate, de evolução e de recapacitação de pensamento, em certa medida – como no tema do Žižek, que nós estávamos falando antes, por exemplo, da questão ideológica.
Essa questão industrial é interessante, porque eu, há mais tempo, procuro estudar muito a política e a economia americana, e eu já vinha vendo, desde há alguns anos antes da eleição do Trump, e com a eleição do Trump, com o programa econômico dele, foi ficando muito claro que uma grande parte deste programa é reindustrializar os Estados Unidos e retomar a capacidade produtiva, que eu acho que é algo necessário para qualquer grande economia, ter uma capacidade industrial forte.
Isso era um debate que já estava começando antes, inclusive, do Trump nos Estados Unidos, no sentido da perda da capacidade tecnológica e de inovação também. Nos anos 1990, quando começou toda a exportação da capacidade industrial, no caso americana, para a China, sobretudo, se dizia assim: “olha, não tem problema. As coisas vão ser feitas fisicamente na China, mas as ideias vão ser geradas, concebidas, desenhadas aqui, nos Estados Unidos.” Mas cada vez menos era isso que acontecia. Os Estados Unidos também perderam a capacidade tecnológica e perderam a capacidade de inovação, porque a inovação é feita onde o produto é feito.
Eu acho que isso se aplica a outros países também. Claro, cada um com a sua realidade. No caso do Brasil, nós perdemos muito da nossa base industrial, isso é óbvio, ao longo dos anos, em grande parte por causa da competitividade chinesa e asiática, em geral. De novo, não é uma crítica; é o que aconteceu. Também não sei se poderia ter sido feito diferentemente. Então, não quero criticar essas políticas do passado.
Mas grande parte do nosso esforço, hoje, da nossa política comercial e econômica – para a qual, aqui no Itamaraty, procuramos contribuir, sobretudo, por meio das negociações comerciais e da estratégia, digamos, de inserção internacional, sobre a qual eu converso muito com o Ministro Paulo Guedes –, uma grande parte do nosso esforço é recolocar o Brasil nas cadeias globais de produção. Atrair investimento industrial, atrair investimentos da Quarta Revolução Industrial para cá, ir recuperando investimentos e a capacidade industrial que foi perdida ao longo dos últimos vinte anos, sobretudo.
Isso já era parte do nosso programa, sobretudo por meio das negociações comerciais, essa ideia (da qual estamos muito convencidos) de que tendo acordos comerciais com as principais economias você se reposiciona nas cadeias. E agora isso está se acelerando também. Países que estão vendo que: “olha, estava muito concentrado o nosso investimento na China. Precisamos desconcentrar”. Em grande parte, é trazer de volta: os Estados Unidos trazendo de volta a produção para os Estados Unidos; o Japão trazendo de volta para o Japão. Mas não só. Vai haver – estamos seguros disso, estamos vendo isso nas notícias, nas especulações – uma redistribuição de investimentos também para outros países além desses países industriais centrais, por esse caminho de diversificação. O Brasil já estava se posicionando para isso. Agora nós precisamos nos posicionar ainda mais, ainda mais rapidamente, para isso, para ser parte dessa redistribuição, o que eu acho que vai ser saudável. E como eu digo, não é algo contra a China, é algo de uma lógica de redistribuição das cadeias.
Paulo Eneas – Exato. O que o senhor falou é importante. Eu acho que essas iniciativas de uma revisão nas relações com o regime chinês, no que diz respeito à produção industrial, até pela capacidade e musculatura, digamos assim, geopolítica, econômica, quem tem mais condições de dar um start para isso são justamente países como os Estados Unidos, em primeiro lugar, e até, eventualmente, o Japão e alguns países europeus.
Agora, como o Brasil vai se inserir nisso? Já há alguma iniciativa formal? É claro que essas iniciativas envolvem também o Ministério da Economia e outras áreas do governo, mas já existe alguma coisa, que possa vir a público, obviamente, desenhada no sentido de que, agora, a política no governo Bolsonaro, no que diz respeito a relações estratégicas do Brasil com o resto do mundo (o que também inclui a China, obviamente) é de entrar nesse stream, digamos assim, de um possível redirecionamento de investimentos industriais? Por exemplo, de o Brasil oferecer algumas vantagens, digamos assim, algum elemento de vantagem competitiva para que, eventualmente, uma empresa que esteja na China, em vez de voltar para o Japão, ela possa vir para o Brasil? Estou falando, aqui, de maneira genérica. Ou, eventualmente, empresas brasileiras que estejam (porque há, obviamente) instaladas na China. Existe já alguma iniciativa ou alguma ideia sendo elaborada? No sentido de dizer ao empresário brasileiro, que obviamente é livre para investir onde ele quiser, e vai continuar livre, tem de ser assim: “olha, se a sua empresa está na China e você a trouxer novamente para o Brasil, vão ser oferecidos tais incentivos, digamos, para que volte a operar no Brasil, e não na China”. Existe alguma coisa desenhada nesse sentido? Eu entendo que é uma decisão que vai além do Itamaraty, obviamente, envolve o governo como um todo, porque é uma solução estratégica e de longo prazo, inclusive. Mas existe algo nesse sentido desenhado?
Ministro Ernesto Araújo – Olha, em termos de incentivos assim, não. Nesse momento, pelo menos, não.
O que há é um esforço, antes de mais nada, digamos, de inteligência comercial – de ver o que está acontecendo no mundo e ver quais são as oportunidades. Mas, no fundo (não tão explicitamente), existe um programa, em tudo o que temos feito na área econômica, desde o começo desse governo, que já vinha nesse sentido. Toda a agenda de reformas é fundamental para trazer investimentos: a reforma da previdência, que nós conseguimos, e as outras que estão aí, que, se tudo der certo, virão no momento que for possível. Isso já deu um sinal extraordinário de mudança de rumo e já fez o mundo olhar para o Brasil de maneira muito diferente. Quer dizer, a capacidade de ter controle fiscal, de ter números macroeconômicos em ordem, isso é absolutamente fundamental e isso já vinha sendo feito.
Segundo, um elemento importante: a OCDE. O nosso empenho é para entrar na OCDE e a nossa articulação era para que tivéssemos apoio de todos os países (principalmente dos Estados Unidos), que era o que estava faltando para entrar na OCDE. Isso é também determinante – já era antes, agora ainda mais – porque a OCDE tem os padrões internacionais da melhor qualidade em tudo: em movimentação financeira, em regulamentação ambiental, inclusive, e em todo tipo de padrões de regulamentação que dão confiança ao investidor e que facilitam a interconexão de investimentos.
E, em terceiro lugar, os acordos comerciais. Já fechamos com a União Europeia no ano passado. Ainda não está em vigor, porque ainda precisa terminar a revisão legal. jurídica, como vocês sabem, para depois ser assinado e submetido aos parlamentos. Mas só a sinalização de assinar já foi a de que o Brasil mudou; o Brasil fez, pela primeira vez, um grande acordo comercial, junto com o MERCOSUL, reposicionando-se nessa estratégia. E um acordo também muito importante com a EFTA, que tem economias importantes. Além disso, as negociações estão em curso também com três grandes economias que são: Canadá, Cingapura e Coreia. Inclusive, no caso da Coreia, sobretudo, e do Canadá também, economias com grande capacidade industrial.
Há, na nossa programação, hoje, uma parceria econômica com os Estados Unidos, que ainda não está totalmente desenhada, mas “o bloco está na rua”. Tivemos uma reunião muito importante, virtual, há algumas semanas, com o Representante Comercial americano (USTR), e definimos que vamos em frente com isso a partir da determinação dos Presidentes, que ficou muito explícita na reunião do Presidente Bolsonaro com o Presidente Trump em Mar-a-Lago, em março. Isso abre um novo horizonte.
O Japão tem interesse recíproco muito grande em partirmos para alguma mecânica de negociação comercial. A Índia é uma nova vertente que nós abrimos e começamos a explorar a partir da visita, também, do Presidente Bolsonaro à Índia agora em janeiro. É outra grande economia, um mercado fundamental e ainda fechado, ao qual um acordo faria um diferencial gigantesco.
Então, nós estamos desenhando uma centralidade do Brasil com as maiores economias do mundo: a União Europeia, outros países europeus, Estados Unidos, Japão, Índia. Continuamos, claro, com o nosso comércio com a China, mas nossa dimensão, a partir do que estamos falando aqui, é estar presente nesse mundo das grandes economias industriais que vão refazer a sua estratégia de investimento.
Desse modo, digamos que, no varejo, não temos essa programação para criar individualmente, para determinadas empresas, estímulos. Não sei se teremos; no momento, não existe nada, especificamente, para isso. Mas eu acho que tudo o que estamos fazendo em termos de políticas nacionais, de reformas, em termos de OCDE e de acordos comerciais redesenha o mapa. E o Brasil, dessa vez, conta com uma atratividade muito maior, além, claro, das características que nós já temos: o mercado interno; a infraestrutura que estamos reparando e incrementando. Isso também é fundamental para esse reposicionamento.
Eu acho que essa oportunidade de uma redistribuição – “redistribuição” eu não quero usar porque parece uma coisa socialista – essa reconfiguração é mais ou menos natural. O Brasil já vinha se preparando e está se preparando cada vez mais para se beneficiar disso.
Paulo Eneas – Exato. A pergunta que eu pretendia fazer-lhe o senhor até antecipou, mas eu vou apenas enfatizar alguns aspectos. O Brasil estaria, de fato, privilegiando acordos bilaterais? Porque uma crítica que nós, da nossa parte, como jornalistas, sempre fizemos ao longo dos anos, foi ao chamado “multilateralismo”, que foi uma opção privilegiada pelos governos anteriores, coloca na mesa de negociações, com condições supostamente iguais, países com condições distintas (inclusive onde o ganho nem sempre é melhor). Ou seja, ao privilegiar acordos multilaterais, isso muitas vezes enseja ou abre a possibilidade para que sejam incluídas questões que transcendem legítimos interesses comerciais recíprocos; então, você começa, a partir daí, a desenvolver agendas, muitas vezes sob o pretexto de governança, e assim por diante.
Eu acho que a história da União Europeia é muito significativa nesse sentido. Foi uma iniciativa meritosa, obviamente, para incentivar trocas comerciais, principalmente após a Segunda Guerra, etc. Num dado momento, aquilo, depois de décadas, tornou-se, na prática (na visão que eu acho que muitos autores compartilham), uma construção de um Estado europeu, para todos os efeitos, sem as características de um Estado, que nós defendemos, democrático, em última instância.
Mas, enfim, voltando aqui ao aspecto estritamente comercial: o Brasil está, hoje, efetivamente privilegiando acordos bilaterais? Ou seja, existe a possibilidade de um acordo bilateral comercial, no caso, especificamente, com os Estados Unidos e o Japão? De que maneira as relações com o MERCOSUL constituem constraints ou amarras nesse sentido? O senhor poderia discorrer um pouco a respeito?
Ministro Ernesto Araújo – Ótimo. Certamente, hoje, a dimensão mais dinâmica das negociações comerciais, e eu acho que não só por parte do Brasil, é a bilateral.
Aliás, um parêntese. Outro dia eu até falei no discurso que eu fiz na Sessão do Conselho de Segurança das Nações Unidas que temos de parar de usar a palavra “multilateralismo”, porque esse -ismo geralmente denota uma ideologia. Eu acho que, de certa forma, isso é revelador, porque você tem, em todas as áreas, instâncias multilaterais e você tem instâncias nacionais e bilaterais. No caso comercial, também. Então, quando você fala em multilateralismo, parece que você está fazendo uma opção de princípio: “sou um multilateralista; então, não importa o que aconteça, eu vou no multilateral”. Geralmente o -ismo é isso: quem é -ista, não importa o que a realidade lhe diga, fez uma opção, um investimento pessoal, um compromisso pessoal, e vai sempre para um determinado caminho. Isso é o -ismo. E eu acho que isso não deve ser assim nem na área comercial e nem em nenhuma outra.
Para falar especificamente do comércio: nessa perspectiva multilateralista, sempre temos de privilegiar os fóruns multilaterais, no caso a Organização Mundial do Comércio? Não necessariamente. Existe o que chamamos de sistema multilateral de comércio, a OMC, e existem as negociações bilaterais que convivem há muito tempo. Hoje, realmente, a dinâmica para essas estratégias de inserção comercial estão muito mais no âmbito bilateral.
Temos de agir diante da realidade. Qual é o problema de qualquer ideologia? É negar a realidade. Então, nós queremos seguir a realidade e os caminhos onde as oportunidades aparecem. De modo que, nessa esfera comercial, não há por que ser multilateralista. Tampouco bilateralista. Não é uma opção ideológica. Se se revelar, a partir de amanhã, de repente, que a OMC é mais importante, vamos deixar de lado isso aqui? Claro que vamos. Também não seremos bilateralistas; nem multilateralistas.
É interessante também um aspecto: o multilateral comercial (OMC) é bem diferente de outros multilaterais (aquele do Sistema das Nações Unidas) – ele é mais eficiente, ele é mais realista. Ele não é -ista, ele é muito menos eivado de ideologia. Isso se expressa, por exemplo, no peso muito grande que os países-membros têm na OMC. A OMC tem um excelente secretariado. Tem, inclusive, uma pessoa que eu admiro muito, que é o excepcional Diretor-Geral da OMC, que é o Embaixador Roberto Azevedo, provavelmente o melhor diretor--geral que a OMC já teve, que tem ajudado enormemente os avanços que têm sido possíveis nos últimos anos na sua gestão. Mas, em grande parte, o drive, como se diz, negociador é dos países-membros, entre os quais o Brasil tem de desempenhar um papel fundamental. O Brasil é chamado, e nós queremos desempenhar esse papel.
A OMC não acabou. Eu acho que ela tem de fazer coisas diferentes das negociações bilaterais. Ela é um fórum fundamental de articulação, de criar o que chamamos de um campo de jogo plano, que permita negociações frutíferas, mas acho que ela não pode fazer tudo. Já ouvi, em algum momento: “olha, todo o processo de liberalização comercial vai ser feito na OMC”. Isso já não se fala tanto, praticamente não se fala. Mas ela continua sendo uma peça nisso.
Então, aqui voltamos naquilo que eu falei antes, da visão conservadora e da visão esquerdista de mundo. O conservadorismo é conviver com coisas diferentes. Convivemos com o multilateral e com o bilateral. Exploramos um de uma maneira e o outro, de outra. A tendência do -ismo é muito de esquerda: “não, é só um”. E isso vemos – extrapolando, agora, para a esfera política multilateral – sobretudo o Sistema das Nações Unidas. Fala-se: “ah, o Brasil sempre foi um país multilateralista.” O Brasil não pode ser multilateralista, nem bilateralista. O Brasil tem de ser o Brasil, e perseguir os seus interesses, defender os seus interesses da maneira correta em cada momento; porque também as coisas mudam. É como se, em 1500, nós tivéssemos feito uma opção de ser multilateralistas e então tivéssemos de tratar tudo na nossa história sempre no multilateral. Não, isso não existe. As coisas vão mudando, e o que você pode atingir em diferentes fóruns vai mudando.
Muita gente diz que, no nosso governo, diminuímos nossa presença multilateral. Não é nada disso. Nós deixamos de colocar esse -ismo no multilateralismo. Deixamos de ver, necessariamente, que a melhor solução é sempre aquela que passa pela ONU, é sempre aquela que passa pela OMS, ou o que quer que seja. Não. Tem de analisar cada uma.
Voltando à diferença entre a cosmovisão, digamos, conservadora e a esquerdista. A esquerdista é sempre centralizadora, é sempre com uma solução única. A nossa – eu me coloco, aqui, na esfera conservadora, claro – é da diversidade. Por que nós tendemos a ser contra essas soluções centrais? Porque soluções diferenciadas são mais eficientes. Vemos isso em todo tipo de exemplo.
Por exemplo, no caso da saúde, voltando ao combate ao coronavírus, à pandemia. O próprio secretariado da OMS – que às vezes fala uma coisa e às vezes fala outra –, em alguns discursos e comunicados, deixa claro que tem de haver enfoques diferenciados em diferentes países, não pode haver um enfoque mandatório. E eu acho que isso é claro. A resposta não pode ser a mesma para todos os países, cada qual com sua realidade econômica. O Brasil tem dezenas de milhões de trabalhadores informais, mas outros países não têm trabalhadores informais, países desenvolvidos, só para dar um exemplo.
O enfoque conservador é um enfoque de baixo para cima. É uma realidade construída a partir desse diálogo permanente entre o pensamento, a ideia e a realidade. Então, temos de analisar cada ponto; por exemplo, no comércio: neste momento, certos temas devem ser tratados no âmbito multilateral, certos temas no bilateral. Vamos ver como está o mundo. O momento é mais favorável a isso, ou mais favorável àquilo. Na saúde: vamos ver como um país pode se articular melhor, de acordo com sua realidade. O enfoque de esquerda, o enfoque globalista, evidentemente, é de cima para baixo: “é isso aqui e pronto”.
Paulo Eneas – Exato. No caso, Ministro, só para termos, talvez, um apanhado dessa abordagem nova do governo brasileiro a respeito desses acordos. Isso significa abandonar, abrir mão da ideia de governança internacional? Talvez aí que resida o problema dos organismos? Fala-se em governança mundial, até mesmo na área da saúde. Explicitamente, tivemos alguns autores dizendo, e até a própria OMS verbaliza isso (com um palavreado um pouco mais sutil), que é preciso estabelecer uma governança mundial. Em outras palavras, dizem que é preciso ter uma governança mundial para que a área de saúde pública seja determinada pela OMS.
No caso dos organismos multilaterais, o problema reside nessa ideia de governança mundial? Seria aí que estaria residindo a dificuldade dos Estados membros em tratar os temas nesse ambiente, da maneira que seja favorável a cada Estado, levando em conta as suas particularidades? Seria o caso de deixar de lado a ideia de governança mundial, que, talvez, pelo que eu pude apreender na fala do senhor, é o caso da OMC, que deixou de lado a ideia de governança e tornou-se basicamente um espaço de articulação de iniciativas? Diferentemente do que é o Sistema das Nações Unidas, e mesmo da União Europeia, onde há intenção de governança? “Governança” é uma palavra um pouco sutil. Na verdade, buscam um estado transnacional.
Ministro Ernesto Araújo – Isso. Isso é importantíssimo. Isso tem a ver com uma coisa que eu falei outro dia, não me lembro onde, que o problema da pandemia, do coronavírus, é um problema epidemiológico, mas ele não é só um problema epidemiológico; ele é um problema epistemológico também. E o que estamos vivendo no mundo é um problema, em grande parte, epistemológico. É um problema de como você raciocina. E uma coisa que eu tenho procurado apontar há muito tempo, que eu vejo no mundo e, sobretudo, nos meios de pensamento que chamamos de “globalistas” (que tem tanta presença na mídia, que basicamente dominam o discurso público) é o nominalismo. Ou seja, você trabalhar com a palavra e esquecer a realidade que está por trás. Esquecer que a palavra é um instrumento para você atuar e entender a realidade.
As pessoas se enamoram das palavras. “Ah, governança global, que maravilha”. O que isso significa? O que isso significa em cada momento? Vamos ver como nos articulamos, como os países se articulam em coordenação, sem perder a sua soberania, para enfrentar determinados problemas. Claro que certos problemas requerem mais coordenação, outros menos. Certos problemas são mais regionais, outros são realmente mundiais. Mas tem de se ver em cada caso. E, no entanto, “governança global” virou um desses conceitos-mestre e, a partir desse conceito, determinadas soluções são impostas (ou tentam ser impostas) que não são necessariamente as melhores.
Eu acho que, claro, existem os problemas concretos, mas se não tivermos a capacidade, a honestidade intelectual de pensar concretamente e pensar de acordo com a razão humana, e não de acordo, simplesmente, com as palavras, nós vamos nos perder. E isso é uma das coisas que eu acho que esse tema, agora, da pandemia, está chamando atenção. É muito isso. Durante muitos anos, bastava dizer: “olha, esse é um tema global, requer soluções globais”. Isso é um discurso que se repete. E se repete desde o secretariado das Nações Unidas até a escola primária, onde as pessoas começam a dizer isso e nunca desenvolvem. Ficam naquele círculo “ah, é um problema global”, e esquecem da realidade que está por trás.
Eu acho que, hoje, nós precisamos, claro, enfrentar o aspecto da saúde, o aspecto econômico, mas também esse aspecto epistemológico. Isso não é banal, porque, se você não tem a capacidade correta de pensamento, de dialogar e a todo tempo ajustar as suas ideias à realidade, você cai numa ideologia; você cai num nominalismo, você cai no mundo das palavras, e as palavras, justamente, não existem para isso. Então você tem o Žižek que quer matar o espírito controlando o discurso. Mas, também, isso aqui não é o espírito humano, você simplesmente ignorar a realidade e ficar só no reino das palavras porque as palavras soam bem e porque elas são politicamente corretas.
Paulo Eneas – Perfeito. Ministro, eu vou abordar um tema muito específico, em relação à China. Há, na esfera da opinião pública, aqui no Brasil, uma crítica muito grande à atuação do Embaixador da China no Brasil. Na esfera da opinião pública, essa crítica percebe-se todos os dias, inclusive havendo interpretações, as quais, mais particularmente, nós endossamos (mas, óbvio, é a posição do nosso jornal) de ele ter uma atuação que não está necessariamente em linha com o que está estabelecido, digamos, em linhas gerais, para a conduta de diplomatas e de representação diplomática. Ou seja, há uma certa desenvoltura em sua atuação política com agentes políticos outros, inclusive aqui do Brasil. Há até uma sugestão ao governo, por parte de pessoas da opinião pública brasileira, de que, eventualmente, seria o caso (existe um termo, se eu estiver enganado, o senhor pode me corrigir, por favor) de defini-lo como persona non grata e fazer uma solicitação à China (porque isso faz parte do procedimento diplomático) para uma troca de embaixador. Eu não sei se isso é tão simples assim, reconheço que há uma série de questões envolvidas, mas o senhor poderia dizer alguma coisa a respeito? Porque a crítica é muito grande da parte, como eu disse, de pessoas da opinião pública em relação à atuação do Embaixador.
O que existe, hoje, do ponto de vista do Itamaraty? Claro, eu sei que existe uma série de questões protocolares e formais a serem levadas em conta, mas, em vista a essa crítica presente na opinião pública brasileira, o que o senhor poderia dizer a respeito?
Ministro Ernesto Araújo – Ótimo. Antes de mais nada, observamos que hoje, ao redor do mundo, há vários países onde tem havido, infelizmente, problemas entre os representantes diplomáticos chineses e os governos locais. Dois exemplos que me ocorrem agora são Suécia e França, onde os governos questionaram a atuação dos embaixadores. Isso é uma referência importante.
Eu vou dizer, simplesmente, o seguinte: as relações diplomáticas são regidas pela Convenção de Viena. A Convenção de Viena é sobre relações diplomáticas e lá tem vários dispositivos sobre como deve ser a atuação de embaixadores e das suas missões diplomáticas. Há coisas muito importantes ali. Uma é não se imiscuir nos assuntos internos do país onde eles estão e a outra é respeitar a legislação local. É só o que eu vou dizer.
Paulo Eneas – Perfeito. Entendo. Voltando agora, ainda à questão de um acordo comercial Brasil-Estados Unidos (embora o senhor já tenha antecipado), existe algo que pode ser firmado de maneira mais pontual, digamos, nesse sentido? Existe algo no horizonte?
Ministro Ernesto Araújo – Olha, na verdade, desde a visita do Presidente Bolsonaro aos Estados Unidos em março do ano passado, em 2019, nós já colocamos lá a ideia de uma parceria econômica com os Estados Unidos – que já vem dando resultados dentro desse conceito que é um pouco amplo. Já existem várias coisas que aconteceram. Por exemplo, o apoio americano ao nosso ingresso na OCDE, que faz parte desse horizonte e que é uma coisa decisiva. Sempre é bom voltar a isso.
Mas, o que nós estamos fazendo, hoje, é desenhar como é que seria, especificamente essa parceria em termos de instrumentos mais concretos. Alguns já estão em andamento, como eu falei, nessa área de facilitação de comércio, ou seja, de desburocratização do comércio, digamos assim, o que ajuda muito. O nosso pessoal técnico tem conversado frequentemente com os americanos, com o Escritório do Representante Comercial (USTR), que equivale, mais ou menos, a um ministério do comércio. Do lado de cá, nós trabalhamos em conjunto entre o Itamaraty, o Ministério da Economia e o Ministério da Agricultura para definir como será essa parceria. Esperamos que avancemos em pouco tempo, em uma questão de meses. Claro que a pandemia atrapalha um pouco, mas continuamos trabalhando nesse sentido e, muito em breve, eu tenho certeza que nós teremos um desenho de como seria essa parceria.
O que é fundamental reiterar é que existe uma determinação política de mais alto nível, ou seja, dos dois Presidentes, de rumar para isso. Eles falaram disso no ano passado, em março, e, agora, reiteraram isso, também em março, de 2020, em Mar-a-Lago, de maneira mais explícita. Lá se fala de um pacote comercial ainda neste ano, com medidas que já possam entrar em vigor agora, e uma parceria econômica que vai além do comércio – quando se fala de parceria econômica, você fala de toda a parte de regulamentação, de toda parte de investimentos, de regulamentação de investimentos, inclusive – isso com o sentido de futuro próximo, esperamos, e com um grau de ambição muito grande, maior do que o pacote importante planejado para este ano.
Estamos trabalhando, portanto, em coisas de curto prazo e em uma visão que se concretizará, certamente, no médio prazo com os Estados Unidos, dentro dessa estratégia de que o Brasil seja um ator central no palco da reconfiguração dos investimentos mundiais, investimentos que venham gerando emprego, gerando tecnologia, gerando capacidade produtiva aqui. Então isso é sempre muito importante: ver as relações não numa perspectiva estática, mas numa perspectiva dinâmica. Às vezes, você vê só os números de comércio. Hoje, os números de comércio entre o Brasil e os Estados Unidos caíram um pouco, sobretudo em termos relativos, em relação a outros parceiros, mas não quer dizer que sejam menos importantes. Ao contrário, isso gera uma necessidade de você trabalhar de uma outra maneira.
Também se fala muito assim: “ah, a nossa economia não é muito complementar com a economia americana, nós competimos em algumas coisas”. Mas o que isso significa? Aí você tem o negócio do nominalismo de novo, a superficialidade de pensamento e o problema epistemológico. É um raciocínio muito precário dizer “a nossa economia não é complementar com a americana, então não devemos perseguir uma aproximação econômico-comercial com eles, diferentemente de outros parceiros”. Não é, absolutamente, assim, porque você tem, então, de trabalhar de uma outra maneira, de uma maneira mais profunda.
Existem dezenas, centenas de grandes empresas americanas que investem no Brasil, algumas brasileiras que investem nos Estados Unidos e que geram tecnologia, que geram inovação. Vamos aproveitar isso. Vamos estimular para que haja mais disso, para que esses investimentos capacitem o Brasil, capacitem o nosso setor industrial, sobretudo, mas o agrícola também, por que não? Tudo hoje está conectado. O agronegócio inclui os setores industriais, os setores de serviços, e vice-versa. Isso também é importante mencionar.
Eu tenho certeza de que uma relação profunda com os Estados Unidos será extraordinariamente benéfica para o Brasil em termos de geração de empregos, geração de tecnologia, geração de capacidade industrial. É isso que nós estamos perseguindo, justamente porque não temos esse enfoque nominalista que eu tanto critico; temos um enfoque de realidade, de qual é a realidade e como é que a nossa economia. Mas, também, não temos um enfoque estático de olhar só para hoje. Não, temos o enfoque de olhar para o amanhã, e sempre com essa visão de Brasil grande, que eu acho fundamental.
Acho que nos acomodamos também durante muitas décadas num papel de um Brasil realmente sem capacidade de atuação. Um país periférico, um país que tinha que ter medo, no caso, de uma relação com os Estados Unidos. Diziam: “olha só, vamos ficar subordinados”. De forma nenhuma. Nós temos uma visão de Brasil grande, e é por isso que nós temos esse grau de ambição na nossa relação com os Estados Unidos porque a concebemos como uma relação de iguais. É claro, os Estados Unidos têm uma economia maior, uma capacidade de um setor muito maior do que a nossa, mas temos peso o suficiente, temos autoconfiança suficiente para nos colocarmos diante dos Estados Unidos, que são a maior potência do mundo, em todos os sentidos, como um igual. E explorar isso em benefício deles, certamente, e em benefício nosso, do nosso ponto de vista, preocupados com o nosso interesse, obviamente.
E não desprezando, muito pelo contrário, valorizando a dimensão dos nossos princípios, dos nossos ideais, da convergência que nós temos de princípios, ideais e valores com os Estados Unidos. Isso não é irrelevante. Os avanços que nós estamos conseguindo são, em grande parte, por causa disso. É outro erro epistemológico, mais uma vez, dizer: “olha, isso aqui é só economia, isso aqui é só comércio, isso aqui é só a esfera dos valores”. Na realidade, essas coisas não estão separadas. Você pode trabalhar de maneira, às vezes, a privilegiar uma coisa aqui, uma coisa ali, mas a convergência de valores, hoje, que nós temos de visões entre o Brasil e os Estados Unidos está se traduzindo (e vai se traduzir cada vez mais) em resultados concretos na economia. Esses avanços, muitos deles, não seriam possíveis se não houvesse essa convergência de valores. Então, esse casamento dessas duas vertentes e essa ação conjunta sempre em permanente convivência com a contradição, como eu falava antes, é fundamental.
Paulo Eneas – Perfeito. Só um detalhe adicional: tanto em relação aos Estados Unidos quanto a outros acordos bilaterais que o Brasil está buscando, em que medida, efetivamente, o MERCOSUL constitui-se um constraint, um impedimento para isso? Em que medida o estatuto do MERCOSUL, digamos, cria dificuldades para essas iniciativas bilaterais do Brasil com outros países?
E eu vou emendar a pergunta para que o senhor fale, também, um pouco como está o MERCOSUL hoje, até em função das mudanças que houve na Argentina. Enfim, o senhor acredita que o MERCOSUL, tal como está desenhado, é uma aposta que o governo deve continuar fazendo? Ou as relações do Brasil com a América Latina (óbvio que devem ser relações privilegiadas, até pelo nosso papel relevante aqui no subcontinente) poderiam se dar por meio de outros mecanismos que não esse? No meu entender, pelo menos, posso estar errado, é uma herança ainda de um -ismo, no caso do multilateralismo, presente, representado, aqui, pelo MERCOSUL. O senhor poderia falar a respeito?
Ministro Ernesto Araújo – Em grande parte, você tem razão. O MERCOSUL foi, de certa forma, uma herança de um -ismo. Eu trabalhei muito com o MERCOSUL, acreditava muito no MERCOSUL (continuo acreditando) como uma plataforma que pode ser muito eficiente para o Brasil. O MERCOSUL, na sua criação, foi importante. Ajudou muito o Brasil a consolidar o processo de reformas na época, o Brasil se recolocar como um polo de atração de investimentos internacionais. Depois, realmente, ele virou um –ismo, virou um “MERCOSULismo”, e isso é o que precisamos evitar.
Esse “MERCOSULismo” tem características de parar, praticamente, de falar de comércio, parar de avançar na área comercial e se tornar uma espécie de caixa de ressonância ou de mecanismo de sustentação de regimes totalitários. Isso ficou muito claro quando, em um dos governos anteriores do PT, o Paraguai foi suspenso para que pudesse entrar a Venezuela de Chávez no MERCOSUL. Foi realmente claríssimo que o que se queria do MERCOSUL, naquela época, era essa dimensão ideológica do MERCOSUL como um mecanismo para apoiar, no caso, Hugo Chávez. O Paraguai tinha um governo com uma outra tendência, depois do impeachment de Fernando Lugo. Enfim, não vou entrar em detalhes, mas então se resolveu punir o Paraguai por haver, na ocasião, destituído constitucionalmente um Presidente de esquerda – isso os governos de esquerda de então do MERCOSUL não podiam aceitar –, e aproveitar para colocar a Venezuela dentro porque o Paraguai ainda não tinha permitido a entrada da Venezuela de Chávez. Isso contaminou, certamente, o MERCOSUL. Isso é um grande exemplo, mas, como esse, há vários.
Nós tentamos descontaminar, curar o MERCOSUL desse vírus ideológico que o tinha contaminado. E acho que conseguimos, ao longo do ano passado, graças, em grande medida, à questão da convergência de valores e de visões entre o Presidente Bolsonaro e o Presidente Macri. Conseguimos transformar de novo o MERCOSUL em um bloco de livre comércio entre os países e em um bloco eficiente de negociação para fora. Tanto que, depois de vinte anos, concluímos a negociação com a União Europeia que, ao longo desse tempo todo, era colocada em banho-maria porque não havia vontade política, realmente, de concluir. Mostramos que o MERCOSUL podia funcionar.
Mas, como eu falei, é sempre uma aposta. Nós temos os nossos objetivos, cada país tem os seus, e eu acho que o MERCOSUL só funcionará bem se ele for um espaço de convergência entre os objetivos de todos os seus membros. A Argentina deu sinais um pouco ambíguos no sentido de questionar se o MERCOSUL continuava sendo compatível com a visão de mundo deles, hoje. Eu acho que sim, tive uma boa conversa em fevereiro com o Chanceler argentino e ficou bastante entendido que eles continuavam tendo essa visão de MERCOSUL aberto no livre comércio entre os países e com a negociação eficiente para fora. Depois, a Argentina deu sinais de que não queríamos mais as negociações externas. Ainda estamos conversando para saber exatamente o que isso significa, até onde vai esse comprometimento da Argentina com o que nós entendemos que é um projeto fundamental do MERCOSUL, que é o MERCOSUL funcionando como um bloco que negocia eficientemente com terceiros.
Mas, como eu digo, queremos o MERCOSUL, e não “MERCOSULismo”. Temos as nossas estratégias de inserção. O MERCOSUL, hoje, tem sido uma parte, nesse período desse governo, importante dessa estratégia de inserção internacional, mas nós temos a nossa estratégia. É como eu falei, nós temos de viver com as contradições, e nós vamos sempre perseguir aquilo que seja melhor para o Brasil, assim como os outros sócios do MERCOSUL perseguirão o que é melhor para eles. Se um dia identificarmos que não há essa coincidência, de que o que é melhor para nós não é o melhor para eles, nós teremos de conversar.
Paulo Eneas – Perfeito. Ministro, o seu assessor nos informou que, daqui a pouco, nós vamos ter de encerrar a entrevista, em função dos seus compromissos. Vou me ater um pouco mais a questões pontuais. Nós sabemos, infelizmente, da atuação, inclusive de ex-Presidentes como Fernando Henrique e Lula, que, na minha leitura, atuam contra a imagem do país no exterior, e outros agentes políticos também. Embora exerçam sua liberdade de expressão, na prática atuam, no exterior, de uma maneira depreciativa em relação ao Brasil.
No caso do Itamaraty, eu queria que o senhor falasse, em linhas gerais, obviamente, inclusive agora, nessa situação por conta da epidemia, quais têm sido as iniciativas do Itamaraty (naquilo que lhe cabe, obviamente), no que diz respeito ao problema da imagem projetada do Brasil no exterior, na esfera mais ampla da opinião pública internacional? Claro que o Itamaraty tem os seus canais de relações diplomáticas, obviamente. Mas na esfera que vai além da diplomacia, na esfera da comunicação, como o Itamaraty tem atuado para tentar contra-arrestar esse esforço (que sabemos que existe, infelizmente, por parte da esquerda brasileira, junto com a esquerda internacional) de depreciar a imagem do Brasil, e em particular, do próprio Presidente Bolsonaro, no exterior? Até onde o Itamaraty atua nesse sentido dentro da sua missão institucional, obviamente, no exterior?
Ministro Ernesto Araújo – Ótimo. Isso, obviamente, é um problema, porque para nós todos que estamos aqui vivendo no Brasil, está claro que grande parte da imagem que se tem de nós na imprensa internacional, sobretudo na europeia, é completamente diferente da nossa realidade. Então, isso é um problema. Não que nós queiramos projetar uma imagem que não é verdadeira, mas porque nós queremos que nos vejam como nós somos. O problema certamente nasce, claro, na esquerda brasileira, que usa suas conexões com os meios de comunicação internacionais e com a esquerda europeia para projetar uma imagem falsa, contra os interesses nacionais, inclusive, de maneira totalmente destrutiva. Uma coisa é você ter uma divergência política, outra coisa é você querer destruir a imagem do seu país. Não acho que seja um comportamento legítimo.
O que eles encontram também na opinião pública de países desenvolvidos, de novo, principalmente na Europa? Encontram problemas epistemológicos, para voltar a esse tema: uma superficialidade de pensamento, um pensamento que evoluiu para um nominalismo, que evoluiu para um pensamento por estereótipos. Hoje, isso é um grande problema, acho que de todo o Ocidente, essa tendência de pensar apenas por rótulos e estereótipos. As pessoas acham que pensar é você geralmente ter um estímulo visual (uma coisa meio primitiva), a figura de um líder ou a figura de uma foto de um país, e você tem de colar um rótulo naquilo. Acho isso engraçado porque, em épocas passadas, em que não havia Internet, em que não havia tanta facilidade de comunicação, as pessoas tinham uma capacidade de pensamento muito maior. Eu acho que conseguiam pensar não por rótulos, mas por raciocínios bem mais complexos. Mas hoje, infelizmente é isso em grande parte do mundo.
Então, acho que a opinião pública europeia não está de má-fé, mas eles estão preparados (ou despreparados) por décadas desses problemas de pensamento com rotulagem, e quem oferece o rótulo é a esquerda brasileira, muitas vezes com conexões com certas correntes da esquerda europeia. Chegam a afirmar que o Brasil seria “autoritário”. Onde está o autoritário? Nunca um governo respeitou tanto, nunca um Presidente respeitou tanto a separação de poderes, a Constituição. Nós estamos fazendo uma transformação extraordinária no Brasil. Vamos continuar fazendo, se Deus quiser, totalmente dentro da Constituição e de maneira totalmente democrática. Democracia de verdade, com as pessoas participando, com as pessoas falando, indo na rua e se manifestando de maneira pacífica. Isso não é visto, não é reconhecido. Simplesmente colam um rótulo.
Esse é o problema, o diagnóstico. Agora, o que nós fazemos? Bem, a dimensão de comunicação é uma coisa fundamental. Temos discutido isso no governo. Como nós faremos chegar a imagem correta? Infelizmente, nós ainda não estamos em um mundo, como vou dizer, onde todo o mundo está bem intencionado nessa esfera internacional de comunicação. Então, não é que alguém está com alguma informação incorreta em algum órgão de mídia internacional e que nós vamos chegar com a informação correta e eles vão falar: “olha só, eu não sabia”. Não é assim que funciona. Já existe um viés plantado, ali, pelas editorias e por esse esquema de rotulagem. É mais complexo do que simplesmente mostrar a informação. É uma narrativa muito pobre, totalmente equivocada que se criou, mas é um filminho que as pessoas veem todo dia. Você fala: “olha, esse filme está errado” e a pessoa reage “não, você é autoritário”. “Não, eu quero te mostrar, aqui, a realidade, os números, o que o Brasil é, o que o Brasil não é”. Isso é como empurrar a pedra morro acima. Essa pedra é uma pedra pesada que nós temos de empurrar morro acima e nós estamos empurrando, mas exige um esforço que é mais do que um esforço de comunicar. Quer dizer, não basta mostrar o que estamos fazendo, não basta mostrar o que o Brasil realmente é; é preciso entrar dentro de uma engrenagem que está muito viciada.
Nos Estados Unidos, também há os grandes órgãos de comunicação com os quais o Presidente Trump tem tantos problemas porque, desde o começo, lá também, distorcem completamente o que é o governo Trump, por exemplo. É um trabalho que é bem mais complicado do que nós gostaríamos. Isso é na esfera de comunicação junto aos órgãos.
Na esfera diplomática, também é muito importante. Eu sempre tenho tido muitos contatos, claro, com os chanceleres de todos os países, sobretudo com chanceleres europeus, e sempre procuro falar: “olha, vocês não estão entendendo que o Brasil é hoje. O Brasil é hoje um país que está de pé, que luta pela liberdade, pela democracia, pela economia de mercado, por todos os valores que vocês, europeus, sempre pregam e praticam, em grande parte. Vocês não estão nos vendo. Nós estamos, aqui, fazendo a mesma coisa que vocês fazem, agindo de acordo com os mesmos valores que vocês dizem que têm, valores básicos”. Eles não enxergam isso. E aí, na conversa com os chanceleres, a maioria, praticamente todos são muito propensos a escutar e a entender, a entender a lógica. Eu procuro explicar a lógica, pois as coisas têm uma lógica.
O que o Brasil é hoje na nossa região? Nós somos um país que chegou e falou: “vamos acabar com esse negócio de ditadura na Venezuela, vamos acabar com esse negócio, dentro, claro, do princípio da solução pacífica, obviamente, do princípio de não intervenção”. Não estamos tentando intervir na Venezuela, nós estamos defendendo o governo legítimo da Venezuela, só para dar um exemplo. O Brasil, hoje, está se colocando pela democracia na América Latina. Os europeus sempre se preocupam com a democracia na América Latina, e hoje você tem o maior país da região trabalhando incessantemente pela democracia na região. Isso, às vezes, não é reconhecido, muitas vezes não é reconhecido. Ficam com estereótipos, com falsidades, muitas vezes, falsidades completas sobre a nossa política indigenista, sobre a situação dos indígenas no Brasil, sobre a situação do meio ambiente. É uma vontade de estar contra a realidade, de não ver a realidade. Uma dificuldade muito grande de ver a realidade.
Os chanceleres, as autoridades, claro, têm muito mais abertura, e temos tido um diálogo muito bom, muito construtivo. Eu sempre falo: “o Brasil está totalmente pronto a dialogar em todos os níveis, a mostrar o que nós estamos fazendo na nossa política de direitos humanos, indígena, na política de meio ambiente, tudo isso”. Nós queremos, justamente, mostrar o que nós estamos fazendo é mostrar que isso vem de dentro desse Brasil que é um país que está trabalhando incessantemente também pelos seus valores, que são os valores ocidentais. Isso é difícil, mas nós vamos conversando e vamos passando essa imagem.
Mas é claro que é difícil, porque você conversa com os chanceleres (nós temos uma relação muito boa) e eles entendem a nossa lógica, mas a pessoa sai dali e tem um jornal que está publicando que o Brasil é um horror, que queima a Amazônia, não sei o que, e a constituency dele, digamos, o público dele está lendo aquilo. Então, ele tem de reagir àquilo. Se ele chegar e disser “olha, isso não é verdade” vão dizer “não, você está agindo com um governo autoritário”. É difícil, também, eles explicarem a nossa lógica, então nós precisamos ter esses caminhos para explicar a lógica.
Eu acho que também um caminho que nós temos de explorar muito mais (eu estou aqui refletindo contigo) é esse tipo de canal que nós estamos fazendo aqui, porque é muito difícil chegar na mídia tradicional europeia com a nossa mensagem. Podemos escrever artigos – vamos escrever, estamos escrevendo –, publicar, mostrar, mas eu acho que o caminho passa muito pela mídia alternativa, que, para mim, hoje, é a mídia central, é a mídia de verdade. Não só no Brasil, mas no mundo. O que se passa, eu acho, em muitos países europeus é que a mídia alternativa é fraca, diferentemente do que acontece no Brasil e nos Estados Unidos. Em grande parte, por que nós estamos tendo a mudança que nós estamos tendo no Brasil e nos Estados Unidos, atualmente? Porque a mídia alternativa é forte. Na Europa, pelo que eu vejo, pelo que eu acompanho, não tem a mesma projeção. As pessoas leem jornal e acreditam. No Brasil, as pessoas já sabem que muitos jornais são órgãos de propaganda e não de notícia. Na Europa, eles acham que é notícia.
É uma mentalidade que é difícil de se criar. Não adianta, é um movimento, novamente, epistemológico. Nós temos de esperar, rezar (nós que acreditamos) para que haja uma abertura mental das pessoas, sem a qual é muito difícil. É por isso que nós temos de fazer a nossa parte. Todos os dias mostrar qual é a nossa mensagem; acho que precisamos, realmente, trabalhar mais com as mídias alternativas mundiais, e com as mídias tradicionais também. É um compromisso meu, nosso, de todo o governo, de tentar realmente levar essa imagem do Brasil que realmente está mudando e daquilo que o Brasil realmente representa hoje.
Paulo Eneas – Perfeito, Ministro. Em função da solicitação do seu assessor, em função do seu compromisso daqui a pouco, eu vou, na verdade, fazer duas últimas perguntas, em função do tempo dado pelo seu assessor. Primeiro, nós temos uma relação muito próxima com a Hungria; inclusive, eu estive recentemente por lá, numa entrevista muito breve com o Premier Viktor Orban. É claro, as viagens estão suspensas em função da epidemia, etc., mas eu queria que o senhor falasse, muito pontualmente, como está a relação do Brasil com a Hungria e se há perspectiva de visita do Presidente Bolsonaro a Budapeste. Eu acho que estava até programada, se eu não me engano, mas, obviamente, foi suspensa em função da situação da epidemia.
Segundo, sobre a embaixada em Israel: foi aberto o escritório de Representação Comercial em Jerusalém, mas o Presidente Bolsonaro, a cada oportunidade, reafirma o seu compromisso de, até o final do seu mandato, a embaixada do Brasil em Israel será na capital do Estado de Israel, que é Jerusalém. Podemos esperar para breve, digamos (espero que sim), o anúncio da transferência da embaixada do Brasil de Israel para Jerusalém? Então eu vou encerrar com essas duas perguntas para o senhor. Eu gostaria até de me estender mais, mas eu vou respeitar a solicitação do seu assessor para os seus próximos compromissos.
Ministro Ernesto Araújo – Pois é. Obrigado, Paulo. Eu gostaria de falar o dia todo aqui; cansaríamos os teus ouvintes, mas eu teria o maior prazer. É um prazer podermos falar e, realmente, tem tanto assunto. Agradeço muito a tua atenção, o teu interesse, a tua compreensão por aquilo que nós estamos tentando fazer; isso antes de mais nada.
Em relação à Hungria, sim, estava prevista uma visita do Presidente à Hungria e à Polônia – são dois países que estão se revelando parceiros importantíssimos para nós. O Primeiro-Ministro da Hungria, Orban, veio à posse do Presidente em janeiro de 2019, desde então estou trabalhando muito continuamente com o Chanceler húngaro Péter Szijjártó, que é um chanceler extraordinário; assim como com a Polônia também. Eu fui o primeiro chanceler a visitar a Hungria no ano passado; já estive duas vezes na Polônia – não por acaso, mas porque há, como vocês sabem, uma convergência muito grande de valores, de soberania nacional, de liberdade, de democracia e de uma visão de mundo.
É interessante, porque eu falei um pouco, na resposta anterior, sobre a Europa, onde nós temos dificuldade de entrar num relacionamento com a mídia, sobretudo – isso é muito uma questão da Europa Ocidental. A Europa Oriental é bem diferente. Não tanto nessa questão de mídia, mas, hoje, corre na Europa Oriental uma seiva diferente; eu acho que corre uma seiva mais viva na Europa Oriental em relação a essas questões que nós estamos discutindo, que vão além das questões econômicas tradicionais, que vão além das questões geoestratégicas. É essa coisa da filosofia, de o que está no nosso espírito, na nossa cabeça, de como o nosso pensamento foi distorcido ao longo do tempo, de uma maneira a denegrir o Estado--nação, a denegrir o sentimento nacional. Isso é algo que eu acho que faz muito parte dessa dinâmica, hoje, da Europa Oriental – que é bastante diferente.
É interessante, porque eu acho que não é coincidência o fato de que isso acontece na Europa Oriental – que é, justamente, a região da Europa que foi dominada pelo comunismo durante tanto tempo; eles tiveram uma experiência direta do que é o comunismo, enquanto que a Europa Ocidental não. De modo que eu acho que isso está na raiz, talvez, dessa diferença e dessa percepção, hoje, que eu acho que nós temos, não talvez idênticas, mas que existe na Polônia, Hungria, em outros países, e nós, aqui, de que certas coisas do globalismo têm um parentesco evidente com o totalitarismo que eles sofreram – o totalitarismo comunista. Por isso que eles se insurgem de uma maneira muito mais visceral quanto a certas coisas. Para a Europa Ocidental, para outros países, isso é um pouco uma abstração. Para a Europa Oriental, não. Eles viveram isso e não querem voltar a viver um comunismo como esse do Žižek, um comunismo por outros meios, um comunismo construído a partir do globalismo.
Por isso, também, que essa relação é tão importante – porque nós estamos num mundo, realmente, não nos relacionando apenas no terreno econômico-comercial, embora tenhamos tido, eu acho, muito mais sucesso no terreno econômico-comercial do que nos governos anteriores. Mas nós não estamos apenas nisso; nós estamos trabalhando também com as coisas mais profundas, com a dimensão do pensamento.
Isso tem a ver também com Israel. A nossa aproximação com Israel é uma revisão, também, não só geopolítica, mas uma revisão de valores; nós nos demos conta de que era uma relação que estava totalmente deixada de lado por uma opção muito complicada, de ser contra Israel como Estado judeu, de diferentes maneiras. Isso não era falado explicitamente, mas quando se olha como era a qualidade da relação, como era o padrão de votação do Brasil nas Nações Unidas – que nós mudamos –, era uma ideologia que, infelizmente, grassa em certos lugares do mundo, muito contrária a Israel; e que nós mudamos completamente.
E parte disso é a questão de Jerusalém e o trabalho que nós estamos desenvolvendo. Estamos estudando realmente o momento de uma transferência de embaixada. Mas, como eu sempre digo, isso é algo importantíssimo, que tem um valor simbólico, mas que também vem junto de uma concepção mais ampla, não só de uma concepção da relação Brasil-Israel, mas de uma concepção de mundo.
Por exemplo, a questão de padrão de votação contra Israel é uma coisa que vinha se repetindo todos os anos: “como é que foi a do ano passado?” “ah, foi sempre assim.” E virou essa “tradição” da política externa brasileira voltar contra Israel. Eu não sei de onde veio isso. Isso virou “tradição”. Um erro repetido ao longo de muito tempo vira tradição? Eu acho que não. Mesmo se em determinado momento do passado (não nesse exemplo, mas em outros exemplos) tenha sido feita uma opção de maneira correta, o mundo evolui, muda, deixa de ser daquela maneira, então você muda a sua posição. “Ah, não pode, porque é uma tradição”. Não. Tem de avaliar em cada momento. Então, eu acho que isso também chama atenção para esse aspecto de revisão de posições. Por que nós estamos revisando tantas posições? Porque temos posições que, infelizmente, estavam congeladas, fora do prazo de validade; estavam lá na geladeira.
Temos que pensar de acordo com a realidade; é o problema, de novo, do nominalismo: as pessoas estão apegadas a palavras e não apegadas à realidade. Vamos ver qual é a realidade, como podemos, hoje, contribuir para a paz Israel-Palestina? Não adianta repetir as palavras que nós usávamos em 1967, ano em que eu nasci; vamos ver como está hoje; vamos esquecer as palavras, vamos ver a realidade. Usar as palavras (desculpa insistir nisso) para descrever, entender e agir na realidade, e não viver num mundo de palavras, simplesmente: “ah, vamos repetir a declaração de 1967 e vamos para casa tranquilos” (hoje nem vai para casa, porque já está em casa, na videoconferência). Essa é a nossa perspectiva em relação a Israel, e em relação a tudo.
Paulo Eneas – Perfeito. E a questão da mudança de embaixada, só para complementar, há perspectiva, de fato, de ela se concretizará até ao final do mandato do Presidente (que nós esperamos que seja seu primeiro mandato)?
Ministro Ernesto Araújo – Temos conversado muito com o Presidente. Como você falou, é um compromisso dele que vem da campanha. Agora, isso é uma coisa que nós também vamos conversando todo dia, sobre o momento oportuno, e isso também sempre dentro de uma construção que nós já vínhamos fazendo, de que qualquer movimento nosso em Israel – tanto a questão de embaixada quanto o restante da relação – é algo que não tem absolutamente nada contra os países árabes. A grande maioria dos países árabes ou de maioria muçulmana acho que já entendeu perfeitamente isso. As nossas conversas com os países do Golfo, por exemplo, deixaram isso muito claro.
Isso é outra questão de nos adaptarmos à realidade. Houve um momento em que a maioria dos países árabes tinha um confronto insolúvel com Israel. Hoje, muitos deles aceitam a existência de Israel e há uma geometria muito mais complexa, e eu acho que muito mais favorável. Então, também é importante ver isso – não só Israel, mas o conjunto da nossa relação com toda aquela região, das oportunidades que nós estamos criando tanto com Israel quanto com os vizinhos árabes de Israel. Tudo isso está dentro dessa equação em relação à mudança da embaixada.
Paulo Eneas – Perfeito. Ministro, eu vou agradecer ao senhor. Eu também, da minha parte, tenho interesse em continuar a nossa conversa aqui, excelente, mas eu entendo que o senhor tem compromissos e o seu assessor está aqui me alertando. Agradeço à assessoria, que nos deu todo o suporte para viabilizar essa entrevista, mas, obviamente, também sabendo dos seus compromissos. Eu vou deixar o senhor à vontade para deixar uma mensagem para o nosso público, para então partimos para o encerramento.
Ministro Ernesto Araújo – Ótimo. Eu queria, antes de mais nada, agradecer a atenção de todo mundo que terá visto esta entrevista e dizer, fundamentalmente, o seguinte: nós estamos tentando, desde o primeiro dia, fazer uma política externa para povo brasileiro. Isso não é puramente retórico, isso é a maneira como eu tento expressar um sentimento, e uma determinação. Não é simplesmente falar do povo brasileiro por falar; é realmente uma convicção que eu tenho, que vem do Presidente Bolsonaro – eu estou aqui para executar a política externa do Presidente Bolsonaro, assim como do Itamaraty todo. Pensar no povo brasileiro, ter uma política que não seja uma política de fora para dentro, que seja uma política pensada a partir daquilo que nós somos, que nós queremos ser como nação, e não como nós vamos aparecer na “fita”, digamos, desde um ponto de vista multilateral ou não multilateral.
Eu falo muito disso, uso muito essa ideia do povo porque eu, fundamentalmente, acredito que é por aí que nós temos que fazer. E isso envolve toda uma quebra de estereótipo, isso envolve uma nova maneira de pensar, como falamos aqui. Eu acho que uma nova política externa é também uma nova maneira de pensar, e não só uma maneira de fazer determinadas coisas; isso é uma convicção muito profunda que eu tenho. E eu acho que as pessoas estão entendendo. Claro, estou sempre pronto a receber críticas, mas acho que o importante é que se entenda aquilo que nós estamos tentando fazer e aquilo que nós estamos conseguindo fazer na nossa política externa, que é essa política direcionada para o povo brasileiro.
Paulo Eneas – Perfeito. Ministro, eu quero agradecer ao senhor. Como eu disse, há a tentação de continuar conversando contigo, mas seu assessor está me lembrando aqui de seu próximo compromisso. Então eu quero agradecer enormemente ao Chanceler Ernesto Araújo, por ter tirado um tempo em sua agenda (só para dizer aqui ao público: o combinado era de 40 minutos, mas nós ficamos aqui quase uma hora e 40 minutos). Então, quero agradecer enormemente a sua disposição, quero agradecer à equipe da Assessoria de Imprensa do Ministério das Relações Exteriores, que nos atendeu de maneira muito profissional, com muita atenção, com muito cuidado, agradeço enormemente. Quero agradecer também ao público que nos acompanhou nessa entrevista e dizer que estaremos de volta às 22 horas, com nosso jornal, no qual inclusive exibiremos trechos desta entrevista, que está sendo transmitida ao vivo e que também ficará disponível no nosso canal.
Senhor Ministro, mais uma vez, muito obrigado. Boa sorte no seu trabalho. Espero que tenhamos a oportunidade de voltarmos a nos falar em breve, mais uma vez.
Ministro Ernesto Araújo – Muito obrigado, Paulo. Era um sonho que eu tinha desde o começo de te conceder uma entrevista, então finalmente consegui realizá-lo. Eu te agradeço muito, e agradeço a quem nos acompanha aqui.
Paulo Eneas – Perfeito. Muito obrigado, mais uma vez, um abraço a todos e muito obrigado, Chanceler. Mais uma vez, muito obrigado.
Ministro Ernesto Araújo – Abraço. Muito obrigado.