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Entrevista do Ministro Ernesto Araújo concedida à Brasil Paralelo
Entrevista do Ministro das Relações Exteriores, Embaixador Ernesto Araújo, concedida à Brasil Paralelo, em Brasília (17/03/2019)*
Brasil Paralelo – Primeiramente, Ministro, obrigado por nos receber aqui e nos prestigiar com a entrevista e com o seu tempo. Para que as próximas perguntas e respostas façam sentido para quem está nos assistindo, para começar, eu gostaria que o senhor dissesse a sua opinião sobre o que é o “ser político brasileiro”.
Ministro Ernesto Araújo – Acho que o brasileiro, durante muito tempo, foi fundamentalmente alguém que não se sentiu representado, que se sentiu alijado da política e alguém que tinha talvez até vergonha da política. No Brasil, política virou um sinônimo de coisas ruins, virou um sinônimo de coisas pouco afeitas aos valores dos brasileiros. O que é uma tragédia do ponto de vista de uma sociedade, porque “política” vem, evidentemente, de polis, quer dizer, a cidade, a comunidade. Política é a discussão dos destinos da comunidade. Então, um ambiente onde a política é considerada um ofício ruim, um campo ruim do saber ou do agir, significa uma sociedade que não discute o seu destino.
Então, acho que o “ser político brasileiro” era um ser alijado de si mesmo, por causa dessa desidentificação com a política, portanto desidentificação com o próprio Estado, mas, sobretudo, essa ausência da discussão do seu destino. E hoje, o que nós vemos, uma das coisas mais positivas de todo o fenômeno que está acontecendo no Brasil com a vitória do Presidente Bolsonaro, é que as pessoas se reconectam com a política e com a discussão dos destinos da polis. E isso muito claramente no caso da política externa, que é nossa área de atuação, aqui. Acho que talvez fosse uma área onde esse afastamento do brasileiro com relação à política mais se manifestava. Durante muito tempo se pensava e se observava que o brasileiro não se interessava por política externa, era algo que não motivava as pessoas, e hoje motiva. Hoje voltou a motivar, com a eleição do Presidente, com as coisas que ele falou sobre política externa na campanha, e depois, já desde o período de transição, com as coisas que eu, depois da minha nomeação, tentei começar a colocar, de projetos nossos, e agora, sobretudo, depois do início do governo, com as iniciativas e as ideias que a gente está transmitindo. Voltou-se a falar de política externa. Às vezes mal, com críticas, muitas vezes a grande imprensa criticando o que a gente faz, mas se falando.
Então, isso é política. Ou seja, a inserção da nossa comunidade histórica no mundo é uma coisa fundamental. Então, estamos voltando a discutir isso; estamos voltando a discutir o futuro da polis. O ser político brasileiro está voltando a existir. Em política externa, isso é muito claro. Claro que eu preferia que alguns comentários fossem mais positivos, talvez, mas isso não tem problema. O problema é a discussão.
A gente está incomodando algumas pessoas porque a gente está colocando em discussão algo que era considerado que não se discutia. Por quê? Porque havia esse alijamento. As pessoas não se interessavam por política externa porque política externa era apresentada como algo pouco relevante para as pessoas. Política externa entrava na discussão um pouco pelo lado da política comercial, uma coisa muito imediata; da questão consular, que é importante também, mas muito compartimentada. E agora se está discutindo a questão de valores, nossos grandes relacionamentos, a nossa inserção no mundo, onde fica o Brasil diante desse debate entre nacionalismo e globalismo, etc. Então, no Brasil, a política voltou a ser política, e a política externa voltou a ser parte disso.
Brasil Paralelo – E no seu entendimento isso é um traço histórico no Brasil? Desde sempre foi assim, ou em algum momento houve uma ruptura e os brasileiros passaram a se desinteressar pela polis?
Ministro Ernesto Araújo – Não, eu acho que não é de sempre, não. Eu acho que naquele início do século XIX e tudo o que leva até a Independência, e no começo da vida independente do Brasil, dentro de uma elite letrada, havia uma discussão. Olhando os documentos dessa época, é uma coisa extraordinária a profundidade do debate dentro de uma sociedade que, aparentemente, era tão precária do ponto de vista social, de desigualdade. Havia um debate muito intenso. Depois, já no final do período do Império, também, talvez no começo da República. Depois, já no final do período do Império, também, talvez no começo da República, houve, talvez, alguns momentos mais intensos desse tipo de discussão de política nesse sentido.
Acho que, sobretudo, no período do Império, um período muito pouco estudado – eu não sou especialista, mas acho que sei o suficiente para ver que há alguma coisa ali, muito mais do que normalmente se estuda, em termos de riqueza do debate. Acho, também, toda aquela época dos anos trinta, a partir do movimento modernista, de 1922, essa rediscussão de Brasil, da brasilidade.
Acho que nós nos acostumamos também, nesse período aí desse deserto intelectual, a vivermos no presente, e isso também é um enorme empobrecimento do ser humano, e do ser brasileiro, no caso. Acho que, tanto o Itamaraty como outras instituições, nós temos, muito claramente, o dever de contribuir para voltar a abrir esse poço da memória, e ver o que tem ali e trazer água do fundo desse poço. Nossa atividade não faz sentido sem essa dimensão histórica. Nós fazemos parte de uma aventura.
Hoje, é um pouco como se você tivesse um romance que começa na página 460. Não, você tem que ver tudo, reconhecer os personagens, para começar a entender. Não ver isso é um desperdício gigantesco, porque as coisas ficam mais vivas, as coisas ficam mais interessantes quando têm essa dimensão. Então, realmente, eu procurei trazer essa ideia da aletheia [verdade, desvelamento, desesquecimento] para o Itamaraty. Também usando a ideia do Ministério do Tempo, de que nós temos que ser um Ministério do Tempo – inclusive, no seriado, há aquela imagem do poço, em que a pessoa desce e tem várias portas para diferentes épocas.
Sem isso, claro, você pode fazer uma certa política externa. Pode fazer um acordo aqui, outro ali. Mas é algo muito pobre. E as coisas podem fazer sentido dentro de uma história, de uma aventura. Fica mais interessante, você se engaja. Eu quero passar essa imagem para as pessoas aqui, do Itamaraty. Porque as coisas ficam mais vivas. Você vai trabalhar com mais eficiência, também, mas com mais prazer, se você vê que faz parte de um romance, de uma aventura.
Outra coisa é tentar pensar a realidade como um todo, e não a compartimentação da realidade – que é uma tendência de toda a pós-modernidade, de tudo que, no fundo, acho que vem desde os anos 60, que é a compartimentação. Então, dizer que isso aqui é comércio, isso aqui é política, isso aqui é tecnologia, isso aqui é direitos humanos… E isso, claro, é útil, mas a realidade é um todo. Eu acredito muito nisso.
E procurar ver as conexões, fazer as analogias. Pensar filosoficamente, no sentido de perguntar, de perguntar para a realidade. E ouvir a resposta. Saber ouvir. Não achar que a gente já sabe; a atitude filosófica fundamental: não achar que você já sabe. E questionar-se a si mesmo. E questionar-se dentro desse conceito de uma realidade integral, onde a política externa também não é algo isolado. A política externa é parte da vida social, porque o país está no mundo, e cada vez mais, evidentemente, isso é decisivo.
Uma terceira coisa é não ter medo. Acho que existe muito medo. As pessoas hoje estão nascendo com medo. Acho que isso é plantando muito pela mídia, pela grande mídia – não pela mídia alternativa, que é tão importante por isso. Se você disser qualquer coisa que esteja fora do mainstream, vão começar a dizer que você é maluco. Então, claro, isso vai implantando medo na cabeça das pessoas. E o medo paralisa, o medo limita. Então, eu faço muito esse esforço para que as pessoas não tenham medo de falar e de pensar. Basicamente isso.
Brasil Paralelo – Existe algum país que o senhor tem como case e gostaria que nós entendêssemos melhor, a sua história ou a sua política diplomática, e aprendêssemos com isso?
Ministro Ernesto Araújo – Certamente. Por exemplo, um país que tem uma história riquíssima e que a gente conhece pouco são os Estados Unidos. Eu tive a possibilidade de morar lá e sempre me interessei muito por história americana. Muitas das referências que a gente precisa e que enriquecem a nossa percepção de hoje, você pode enriquecer muito com o conhecimento da história americana, que tem momentos tão únicos, como a Guerra Civil Americana, por exemplo, como todo o processo dos anos 30 e 40, com o New Deal, depois o pós-guerra, as correntes intelectuais e políticas americanas... Porque os Estados Unidos são isso. Acho que – assim como nós temos o potencial de ser – é um país onde a história está viva.
É diferente da percepção que se tem na Europa. Na Europa, a história está renascendo. Mas acho que, no período destes últimos trinta anos, nos países europeus, grandes centros de civilização, a história de certa forma morreu. As pessoas deixaram de pensar política (um pouco como no Brasil), deixaram de conectar-se com o seu passado.
Nos Estados Unidos, isso nunca aconteceu. Lá as pessoas vivem a história, vivem a sua aventura nacional de uma maneira muito presente. O debate político americano é extremamente vívido e rico. As pessoas estão sempre citando exemplos do século XIX, do Roosevelt, etc., conhecendo e explorando a história, pelo ensinamento, pelo exemplo, pela inspiração, como eu dizia.
E eu acho que o Brasil pode também ser isso, esse país de uma história viva, onde as pessoas se conectam. Isso nos Estados Unidos é muito frequente: “Ah, como dizia o Calvin Coolidge, lá nos anos 1920…” Entre a gente, isso é muito raro; é raro você ver alguém citar um político do passado, embora haja um cabedal enorme de referências, desde o século XIX, que poderia e deveria ser usado.
Eu acho que é interessante, então, comparar, dentro de nossa esfera ocidental, os Estados Unidos com a Europa. Porque a Europa, com toda aquela sensação de superioridade cultural que tem em relação aos Estados Unidos (e muito mais em relação a nós), durante muito tempo estava jogando fora esse patrimônio histórico e vivendo muito encaixotada no presente; um presente muito limitado. E hoje, vários países europeus estão tentando recuperar isso. O ser político europeu está renascendo também. Não só no Brasil. A gente vê isso na Itália, a gente vê isso na Polônia, na Hungria, na Áustria, na Espanha, e em toda parte, mas esses são os países, talvez, onde isso esteja mais presente.
Então, acho interessante olhar para esses países e notar essa reconexão das pessoas com a sua realidade, com a realidade política, também. É a impressão de que você pode influenciar no seu destino. Foi-nos dado, aqui, e em muitos países, também durante esse período recente, a ideia de que você não pode influir, porque está tudo construído, está tudo dado, vai ser assim. O máximo que você pode discutir é se a taxa de juros vai ser um pouco mais alta ou um pouco mais baixa; discutir algum detalhe de política de privatização ou não. Mas não é só isso – é isso também, mas não é só isso.
Durante muito tempo, falavam que não se pode discutir nada. E agora, essa rediscussão vem junto com a recuperação do passado histórico, a recuperação dos heróis – herói é um conceito extraordinário que se perdeu, entre tantos outros. E eles estão reconectando-se com isso de maneira muito interessante. Então, acho que é importante olhar para lá nesse sentido. A Europa é um caso interessante de sociedades que estavam completamente adormecidas do ponto de vista histórico e político e que estão renascendo.
E cada vez mais, podem olhar para o Brasil como algo que as espelha, de certa maneira. É um espelho que alguém quebrou, em algum momento resolveu quebrar, e nós estamos recompondo esse espelho. Então, a recuperação de uma identidade tem tudo a ver com esse olhar, para outros países também, mas os Estados Unidos é um caso especial nessa questão da identificação e do espelhamento. Então, a aproximação com eles e a aproximação conosco mesmo, no fundo, são parte do mesmo fenômeno.
Brasil Paralelo – Agora há pouco, o senhor comentou sobre o nacionalismo ter ganho uma acepção negativa na sociedade. Em um artigo recente, o senhor também colocou que o Bolsonaro seria o primeiro Presidente verdadeiramente nacionalista nos últimos cem anos. Gostaria que o senhor explicasse por que e qual o entendimento dessa palavra.
Ministro Ernesto Araújo – Eu acho que o nacionalismo, nesse sentido mais profundo que deve ser dado, é a concepção da nação no seu sentido, inclusive, etimológico. Nação como uma comunidade de nascimento. Ou seja, não é dizer que todo mundo tenha que ter nascido ali, mas dizer que você tem um corpo de pessoas que estão unidas no tempo, também. Tem a questão das gerações: não são só indivíduos que estão por acaso num determinado espaço físico. São pessoas que estão ali, que convivem, cujos ancestrais conviveram ali. Claro que há a imigração, mas você precisa ter um certo núcleo que faça sentido para que você possa falar de nação.
Nacionalismo é reconceber a sociedade como nação, e não simplesmente como uma coleção de indivíduos; e também não simplesmente como indivíduos unidos pelo Estado. Porque hoje é muito isso: a concepção de país pós-nacional ou de comunidade pós-nacional – que existe, mas eu acho que é muito deletéria para a vida humana – é essa concepção de que você tem indivíduos que, por acaso, estão ali, e o que assegura a coesão deles é o Estado.
A meu ver, não deve ser assim. A meu ver, a coesão deve ser dada pela nacionalidade, ou seja, pelo fato de que isso faz parte de um processo histórico, que vem do fundo do tempo, que atravessa gerações, e onde as pessoas têm algo em comum que vá além do fato de pertencerem ao [Estado] – até a palavra “pertencer” é curiosa, “pertencerem ao Estado”; acho que ninguém deveria pertencer ao Estado; deveria ser o contrário. Então, eu acho que essa concepção do que deve ser a sociedade é que é o cerne do nacionalismo.
Outra coisa que o meu pai falava muito: a sociedade não deveria funcionar baseada nas leis; ela deveria funcionar baseada na confiança. As leis, claro, são fundamentais, mas elas existem para o caso excepcional, para disciplinar a sociedade. Mas você não pode ter leis para tudo, para dizer como as pessoas têm que se relacionar. É preciso que haja uma confiança entre as pessoas para elas saberem que, se alguém quebrar essa confiança, aí você aplica a lei.
Mas o que acontece com a fragmentação social dessa pós‑modernidade? A sociedade deixa de funcionar baseada na confiança, porque, por uma programação consciente, eu acho, de certas forças, as pessoas já não sentem que têm muito em comum, que têm confiança umas nas outras, e aí você quer apelar para o Estado. Aí fica só a lei como a interconexão entre as pessoas.
As pessoas não deveriam conectar-se umas com as outras baseadas na lei. Deveriam conectar-se baseadas em toda uma série de afinidades que só a nação orgânica pode proporcionar.
Então, isso é a visão de nacionalismo, quer dizer, é o anseio, que acho natural no ser humano (“natural”, “nação”, mesma raiz: nação é algo natural do ser humano), de viver numa comunidade orgânica; e não simplesmente num lugar que seja uma coleção de indivíduos.
Brasil Paralelo – Creio que o receio com o termo, principalmente, vem pela associação da palavra “nacionalista” com os regimes totalitários do século XX. Então, qual a diferença que o senhor traça desse nacionalismo de que estamos conversando aqui para os do regime italiano, alemão e até da Rússia, que teve uma forte proposta apresentada como nacionalista também?
Ministro Ernesto Araújo – Eu acho que esses regimes totalitários, no fundo, apelaram para uma força muito profunda, que é o sentimento nacional, para chegar ao poder e se manter no poder, e distorceram esse sentimento. Eles, de certa forma, sequestraram esse sentimento, coisa que eu falo muito, que é muito uma tendência da esquerda: ela pega uma coisa boa, sequestra e perverte, transforma numa coisa ruim. Acho que foi mais ou menos o que aconteceu sempre com esses regimes totalitários.
Isso tem a ver com o que eu digo de que fascismo e nazismo são fenômenos de esquerda. É a mesma lógica que preside. E isso, realmente, deu um mau nome ao nacionalismo. E aí, claro, com o repúdio evidente, que tem de haver, contra esse totalitarismo, as pessoas jogaram fora tudo, e jogaram fora o nacionalismo. Essa é parte da grande tragédia: que nossa cultura, desde o pós-guerra, não tenha desassociado a ideia de nação dos totalitarismos tão trágicos da metade do século XX.
Então, o nosso esforço, hoje (acho que o esforço, talvez, de outros países, mas o nosso, certamente), é mostrar que você pode ter um nacionalismo democrático. Estou certo de que podemos ter, porque isso, também, eu acho que é natural. Porque essa sociedade orgânica e coesa que o nacionalismo prega é naturalmente democrática, porque é uma democracia que não é imposta; é uma democracia que vem de baixo para cima. Um povo que gosta de estar junto e de viver junto vai ser naturalmente um povo democrático. Por isso que também o conceito lá atrás de polis tem a ver com o nascimento da democracia.
Então é isso. Acho que é preciso recuperar o nacionalismo dessa associação perversa com os regimes totalitários.
Brasil Paralelo – Eu queria saber como o senhor enxerga o Brasil no mundo, ou melhor, como o mundo enxerga o Brasil. O que o Brasil significa no mapa de todo o globo? Qual é a sua visão?
Ministro Ernesto Araújo – Eu estou me dando conta de algo que eu já devia saber. A gente já intuía, mas nesse período muito intenso que a gente está vivendo neste início de governo, eu me dou conta de como o Brasil importa no mundo. É impressionante. Coisa que a gente, abstratamente, podia imaginar, mas em que muita gente já não acreditava.
Em todos os contatos que eu tenho feito, eu tenho visto como há uma expectativa enorme pelo que o Brasil vai dizer, a partir de agora; pelo que o Brasil vai fazer. Uma expectativa enorme que nós coloquemos o nosso peso a favor, por exemplo, da democracia na Venezuela; em todas as áreas, a favor de uma revisão da OMC, por exemplo, de uma reforma da maneira de atuar da OMC, para dar exemplos de áreas completamente diferentes. Mas sempre, na hora do Brasil: “o que o Brasil vai fazer?”
Nós vivemos um período em que não nos dávamos conta do nosso peso; em que achávamos que o Brasil não tinha capacidade de influenciar. Então, era só, no máximo, copiar um pouco, fazer certas variações nas posições globais; no máximo, isso.
O mundo vê o Brasil com uma importância gigantesca. Inclusive, acho que isso tem a ver com críticas que se fazem ao governo Bolsonaro em certos países europeus, na imprensa, de maneira totalmente deturpada, mas que partem de uma percepção do peso do Brasil. Porque eles estão vendo que o Brasil está colocando o seu peso a favor de coisas que eles não gostam: a favor da nação, a favor de valores que, no caso, a esquerda europeia detesta. Por isso que o governo Bolsonaro aparece de maneira tão negativa em tantos órgãos da imprensa europeia: porque eles estão assustados; porque o Brasil assusta.
O Brasil chega lá, o Brasil fala muito mais grosso do que a gente imagina que fala. A gente tem condições de influir. Na nossa região, evidentemente. Mas fora da nossa região, também: contatos em relação ao Oriente Médio, ao que está acontecendo na própria Europa, na Ásia, enfim, em toda a parte.
Brasil Paralelo – Um termo que surgiu no debate público a partir de alguns influenciadores americanos e, aqui no Brasil, através do Professor Olavo de Carvalho, é “globalismo”; a denúncia do que seria o globalismo, que basicamente se resume em agentes de representação notável com interesses de organizar órgãos supranacionais que intentassem um governo global. O senhor concorda com essa interpretação? O que o senhor entende por isso? E que agentes são esses?
Ministro Ernesto Araújo – Eu acho que isso é parte do globalismo. Acho que essa maneira de ver o globalismo é um pouco limitada. Ela leva a ver o globalismo apenas como a tentativa de criação de instituições globais, ou de usar as instituições globais para influenciar nos países. Isso é parte da coisa.
Eu acho que o mais grave do globalismo está na mente e no pensamento. Acho que o globalismo é perigoso porque é, sobretudo, um sistema de pensamento, ou de antipensamento. Eu vejo o globalismo muito como o processo pelo qual a ideologia marxista, a partir do começo dos anos 90, e, sobretudo, mais ou menos a partir do ano 2000, penetra na globalização econômica e faz dela o veículo da sua propagação. Então, justamente, através da globalização, começa a entrar com a sua agenda em temas como ideologia de gênero, em temas como o ambientalismo distorcido, e outros. E começa, sobretudo, a controlar o discurso, a dizer o que você pode dizer e o que você não pode dizer; e cada vez o que você pode dizer é menos, ocupa um menor espaço.
Então, eu vejo mais o globalismo assim: aquela ideia de que o marxismo descobriu que ele não precisa controlar os meios de produção econômica, quando ele pode controlar os meios de produção de ideias, que é o que vinha acontecendo. E é através desse controle das ideias que essa corrente começa a capturar instituições e, a partir dessas instituições, começa a tentar agir para diminuir as identidades nacionais; e as identidades pessoais também.
Porque, no fundo, é isso: só parte do problema é a diluição das identidades nacionais. O fundamental é a diluição da identidade do indivíduo, do ser humano, e o achatamento do ser humano; que, a meu ver, é o projeto marxista. Por isso que é um problema.
Então, não se trata de uma questão de dominação mundial, de querer que a ONU domine. Não é isso; eu acho que não é isso. É a utilização de todos os instrumentos para a diluição da nação e para o achatamento do ser humano. Isso é o que eu acho realmente o grave do globalismo.
É claro que a palavra “globalismo” remete a essa questão dos organismos multilaterais, mas acho que isso é um instrumento. Por isso que as pessoas perguntam: “onde é que está o globalismo?” Claro, ele não está em um lugar, porque ele é um sistema; é um sistema, como eu digo, de antipensamento, que começou como que a se replicar sozinho na cabeça das pessoas. Por isso acho que ele é tão difícil de combater. Porque se fosse uma instituição, uma “Central Mundial do Globalismo”, você vai lá e você toma, ou tenta tomar. Mas o problema é que é como se fosse um vírus de computador que se espalhou na cabeça das pessoas.
Como eu digo, eu enxergo o globalismo como o pensamento marxista capturando a globalização. Então, nossa ideia é libertar a globalização dessa captura. A globalização é uma coisa extraordinária, que permite tanta coisa, permite a interação superdemocrática entre as pessoas, e isso tem que ser preservado, graças à abertura de mercados, à abertura de conexões de toda ordem.
O que aconteceu foi que o marxismo sentou na cadeira de piloto da globalização. Temos que tirá-lo daí, e nós vamos sentar na cadeira de piloto. Isso é o que a gente precisa fazer. Nós, eu digo, quem tenta representar essa linha que vê o ser humano com uma dimensão mais rica, vê a nação como algo que tem que ser uma comunidade orgânica. Então, nada contra a globalização. Ao contrário: trata-se de libertar a globalização, para que ela sirva ao ser humano.
Isso tem a ver, evidentemente – no caso do Brasil, muito claramente –, com a necessidade de uma economia liberal, de abertura econômica. Porque uma economia fechada, sufocada e sufocante foi parte do projeto de um país sufocado, de um país que deixava de ser nação. Então, acho que isso é fundamental.
Acho que a esperança para nós, e para o mundo, é a conexão de um pensamento nacionalista, conservador, na base, com uma economia liberal aberta: uma filosofia humanista, liberal, que tenha lugar também para a fé. Que essa filosofia, essa visão de mundo esteja no comando da globalização, e permita que a globalização seja algo para ampliar os horizontes do ser humano.
Então, nós temos que quebrar o amálgama marxista-liberal, que é o globalismo, e transformar isso num amálgama conservador‑liberal. Essa é grande tarefa.
Brasil Paralelo – É interessante notar na sociedade o desaparecimento e surgimento de determinadas palavras. Nos anos 90, foi sumindo a palavra “moral”, e dando espaço à “ética”. Agora eu vejo que palavras que têm reaparecido bastante no debate são “verdade” e “realidade”. Eu queria que o senhor expusesse um pouco a sua interpretação do que está por trás dessas palavras que são tão usadas pelo senhor e outras pessoas que têm feito um pensamento contemporâneo.
Ministro Ernesto Araújo – Ótimo! Acho que isso tem a ver com algo que eu procuro estudar muito e que tem muito a ver com esse debate que a gente está tendo aqui, que é a questão nominalismo versus realismo.
Eu acho que o projeto globalista é, em grande parte, um projeto nominalista. Aqui estou usando esses termos de maneira um pouco diferente da que era usada na filosofia medieval. Nominalismo no sentido de pegar as palavras e isolá-las, justamente, da realidade, e transformá-las em instrumentos de dominação. No fundo, é isso.
Então, para pegar um conceito que eu questiono muito, por exemplo: “tolerância”. Em si mesmo, o que é tolerância? Tolerância é você, diante de determinada realidade negativa, fazer uma avaliação de valor e falar: “eu posso tolerar essa realidade em nome de um bem maior”, digamos. Isso é que é tolerar. Durante um certo tempo, você convive com uma determinada coisa negativa porque há um contexto onde isso é necessário para um resultado positivo, digamos. Isso é o realismo, a meu ver: você ter o diálogo entre a palavra e a realidade.
O nominalismo é o quê? Pegar a palavra “tolerância” e transformá-la em algo absoluto. Por exemplo, você tem uma realidade de crime e dizer: “ah, não, você tem que mostrar tolerância com o criminoso.” Ou você tem uma realidade onde, em determinado conflito, se essa ideologia quer defender um dos lados: “não, você tem que ter tolerância.” Isso para dar um exemplo de palavras que deixam de dialogar com a realidade.
Então, parte do nosso esforço é isso, de trazer de volta essa realidade. Porque o pensamento humano é isso: precisa da linguagem, mas precisa da realidade. Essa coisa do achatamento do ser humano tem a ver com o nominalismo, que é você isolar as palavras, e as palavras passam a ser coisas que estão no ar e que se chocam, que ficam num éter, onde nada faz sentido. Acho que é por isso que o conceito de “realidade” precisa voltar. E o conceito de “verdade”. Porque verdade também é isso: no fundo, é o diálogo entre a linguagem e a não linguagem.
Então, acho que é absolutamente essencial tentar ter essa visão “realista” nesse sentido de realismo; que não é também o absolutismo da realidade concreta. Você precisa ter a linguagem e o pensamento humano questionando isso. Mas, hoje, você realmente tem toda uma série de correntes que vivem num mundo puramente de palavras, e de jogos de palavras. Por isso que eu não gosto de Wittgenstein, por exemplo, como eu falei em um artigo meu. Wittgenstein é muito isso; para ele tudo é jogo de palavras – estou exagerando; é um pensamento muito rico –, mas ele vê a realidade como um jogo de palavras. Por isso acho que uma das fontes desse nominalismo atual é Wittgenstein.
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* Vídeo disponível em: https://youtu.be/2Y1Nn6ZopMQ