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Discurso do Ministro Ernesto Araújo no seminário internacional “Novos anseios da política externa brasileira: renovar para avançar”
Discurso do Ministro das Relações Exteriores, Embaixador Ernesto Araújo, no seminário internacional “Novos anseios da política externa brasileira: renovar para avançar”, em Brasília (21/11/2019)*
Muito bom dia!
Excelentíssimo Senhor Senador Nelsinho Trad, Presidente da Comissão de Relações Exteriores do Senado;
Excelentíssimo Senhor Deputado Eduardo Bolsonaro, Presidente da Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional da Câmara, cuja iniciativa de organizar esse evento muito enalteço;
Senhores Ministros; Ministro da Defesa, General Fernando Azevedo e Silva; Ministro-Chefe da Secretaria de Governo, General Ramos; Ministro-Chefe da Secretaria-Geral da Presidência, Jorge Oliveira; Presidente da Apex, Sérgio Segovia;
Senhores Embaixadores; Oficiais Generais; colegas e amigos.
É realmente um momento muito interessante para nós tentarmos fazer um pequeno balanço do que tem sido o nosso esforço de renovação, de reestruturação da nossa política externa.
Para tentar sintetizar isso – eu acho que vai haver debates muito mais profundos ao longo do dia; eu não quero entrar muito nos detalhes –, tentei, talvez, começar por uma imagem para sintetizar o que tem sido o nosso desafio.
A gente pode imaginar assim: algumas décadas atrás, um Presidente brasileiro chegou ao Itamaraty (vamos imaginar que o Itamaraty é uma loja, digamos, de vários produtos) e diz “Eu quero um fogão.” E o Itamaraty fez um fogão, um excelente fogão, com todas as melhores características e funcionando muito bem. Aí passou um tempo e outro Presidente chegou e falou: “Eu queria uma geladeira.” Aí o Itamaraty disse: “O senhor tem certeza que não quer um fogão?” “Não, eu quero uma geladeira.” “É, mas olha só, nós temos uma tradição de fazer fogão, um fogão excelente, com padrões internacionais da melhor qualidade...” “Ah, então tá; eu levo o fogão.” Aí, daqui a pouco, um novo Presidente chega e diz: “Eu queria um vaso de planta”, por exemplo. “É? Mas o senhor não quer um fogão?” “Não, quero um vaso de planta.” “Mas, olha só, o nosso fogão é internacionalmente respeitado, nosso fogão é da melhor qualidade...” E, no final, levava o fogão. Daqui a pouco: “Ah, eu quero um par de sapatos”, e acabava levando o fogão, e assim por diante.
Bem, no ano passado foi eleito um Presidente que chegou ao Itamaraty e disse: “Eu quero uma motocicleta”, para dar um exemplo. E o pessoal já estava pronto para dizer: “Mas o senhor não quer um fogão?” “Não, quero uma motocicleta.” E tinha um cara lá atrás que disse: “Olha, eu sei fazer uma motocicleta. Posso tentar fazer uma motocicleta, eu gosto de motocicleta.” E muita gente falou: “Não, Senhor Presidente, a tradição é o fogão, nosso fogão é internacionalmente respeitado...” Mas o Presidente não quis. Ele não quis um fogão; ele quis uma motocicleta.
E nós estamos tentando construir e entregar essa motocicleta. Por quê? Porque é o que esse Presidente prometeu na sua campanha. Ele prometeu ao povo brasileiro. O povo brasileiro não queria um fogão; queria uma motocicleta. E nós estamos tentando fazer. Nós temos, portanto, esse desafio, que por vezes é interpretado como um desmantelamento da política externa, um apagamento de tradições. E não é! É uma tentativa de responder aos desejos, aos anseios do povo brasileiro. Acho interessante ver aqui no título desse seminário a palavra “anseios”, porque é isso com o que a gente está lidando.
Parte do problema, para também dar um exemplo, é o seguinte: uma vez, há alguns anos, falando com um cientista político americano, ele dizia que se sentia mais identificado com cientistas políticos europeus ou japoneses do que com o seu próprio povo. Ele falou isso com uma certa tristeza, mas eu vi que era isso. E, infelizmente, no Itamaraty, não pessoas individuais, mas um pouco a cultura institucional era um pouco essa de se identificar mais com diplomacias de outros países ao redor do mundo do que com o próprio povo brasileiro, com as pessoas do nosso país. Então, a mentalidade de fazer sempre um fogão era um pouco essa.
Para dar um outro exemplo concreto, durante a campanha presidencial do ano passado, um diplomata brasileiro aposentado, muito respeitado, durante a campanha do segundo turno, declarou apoio ao candidato Haddad, com a seguinte rationale: de que não concordava com aquilo que o Presidente (então candidato) Jair Bolsonaro apresentava como ideias de política externa, por exemplo, questionar o Acordo de Paris, no qual nós acabamos continuando, ou questionar também, por exemplo, o Pacto Global de Migração, do qual nós acabamos saindo.
Isso me impressionou muito, porque ficava claro que, para esse diplomata específico – e eu acho que representa uma mentalidade –, a decisão sobre os destinos da nação dava-se, em última instância, pela adesão ou não a determinados dogmas do chamado multilateralismo. Que, na verdade, nada tem de multilateralismo, pelo menos da maneira como é praticado. Porque, nesse multilateralismo, as ideias não fluem de muitos lados, elas fluem de um lado só e dirigem-se sempre a um único propósito. Isso é uma das coisas que nós estamos mudando.
Mas, de novo, isso me impressionou, porque é como se as questões que afetam o povo brasileiro, o problema da corrupção, da recessão, do atraso econômico, do modelo econômico falido não importassem, não importassem tanto. O que importava era poder dizer: “Olha, o Brasil é um país comprometido com o multilateralismo”, ou algo desse tipo. Por quê? Porque, nessa mentalidade, que se identifica mais com os seus pares ao redor do mundo do que com seu próprio povo, se você chega e diz “Olha, meu país está combatendo a corrupção, meu país está tentando mudar seu modelo econômico...”, isso não causa muito frisson, digamos. O que realmente te valoriza, o que vai-te fazer ser convidado para as festas, é dizer: “Olha, meu país está comprometido com os dogmas do multilateralismo, está comprometido com todos esses instrumentos globais.” Então, eu acho que, infelizmente, durante muito tempo, a nossa diplomacia esteve muito dominada por isso, por diplomatas querendo ser aceitos em círculos de diplomatas ao redor do mundo, e não tanto preocupados com o povo brasileiro.
Nessa questão de povo brasileiro, uma coisa que insisto muito, que é importante ter como algo extremamente presente, existe um problema conceitual. Por quê? Porque, claro, não existe um consenso do povo brasileiro. As pessoas têm pensamentos diferentes, ideias diferentes. Você pode perguntar: “Bem, então nós seguimos a maioria, mas e as minorias?” Então, nesse raciocínio, de a gente imaginar que não existe um povo, porque os indivíduos têm ideias diferentes, acaba-se não fazendo nada.
Então, nesse ponto, como em tantos outros, é sempre importante recorrer à Constituição, que diz logo no artigo primeiro: “Todo o poder emana do povo.” Não diz que todo poder emana da maioria do povo, ou que emana do consenso do povo, nem nada deste tipo; mas do povo, como unidade. Existe algo um pouco místico nesse conceito da emanação do poder a partir do povo. Eu acho que é algo que nós devemos enxergar com reverência e com enorme respeito. Como podem 200 milhões de indivíduos formar uma unidade? Mas formam. E esse é, chamemos assim, talvez, o mistério da democracia. Então, perceber o povo brasileiro como uma unidade viva e palpitante, isso é o que retira a nossa política externa da paralisia. É a tentativa de escutar esse povo como unidade.
Bem, fogão e motocicleta. Nós também estamos fazendo fogão. Isso eu queria dizer também. Estamos tentando fazer, acho que estamos entregando alguns fogões. Pode-se dizer que o acordo MERCOSUL-União Europeia é um deles; o acordo com a EFTA; o encaminhamento do ingresso na OCDE; os investimentos provenientes de países árabes, da China, do Japão, de tantos outros destinos; os novos instrumentos com os Estados Unidos, como o Acordo de Salvaguardas Tecnológicas, que já foi mencionado aqui; a busca de novos mercados na Índia, na ASEAN, na África, e assim por diante. Mas isso não é tudo. Eu acho que nós temos que trabalhar para continuar com essas entregas. Estamos trabalhando, evidentemente, para continuar com essas entregas, mas não podemos esquecer da parte da motocicleta.
Nós estamos saindo do indiferentismo em relação aos nossos vizinhos, por exemplo. Aquele indiferentismo moral, que partia de uma dessas concepções um pouco atrasadas de que “Bom, somos vizinhos, então não podemos de nenhuma maneira tentar contribuir para que a região caminhe para um ou outro lado”. Não! Nisso nós não acreditamos. Nós acreditamos que o Brasil tem o compromisso, tem a obrigação de contribuir para que a região caminhe para o lado da democracia, para o lado da liberdade política e da liberdade econômica. O “socialismo do século XXI” foi repudiado pelo povo brasileiro, e não podemos fechar os olhos para a tentativa de reinstalá-lo ao redor da região.
Também nessa dimensão, nós estamos trabalhando para devolver os organismos internacionais à preeminência das nações. Isso às vezes já foi confundido (agora acho que um pouco menos) com uma retração do Brasil em relação ao sistema multilateral. Já falei do sistema multilateral: não é que nós sejamos contra, mas nós somos contra a concepção de um sistema que se torna, na verdade, supranacional e tenta impor suas ideias às nações.
Nós estamos trabalhando para que haja um ambiente de racionalidade econômica e de racionalidade tout court no tema ambiental, por exemplo. Isso também foi tocado aqui. O desafio (o Senador Trad mencionava) da nossa imagem ambiental, digamos assim. Aqui também, como em tantos outros domínios, nós precisamos limpar esse domínio da questão ideológica. Precisamos trabalhar a partir de fatos. Precisamos mostrar que o Brasil é um país que cumpre, por exemplo, seus compromissos do Acordo de Paris; quem não tem cumprido são, em grande medida, os países desenvolvidos, em termos das contribuições que eles se obrigaram a si mesmos a dar a países em desenvolvimento nessa esfera. Então, essa é uma das nossas dimensões.
Estamos trabalhando muito intensamente, algo de que se tem falado pouco, mas que é fundamental para nós, que é a liberdade religiosa ao redor do mundo. Isso é um anseio, certamente, do povo brasileiro. Isso escuto muito em conversas que venho tendo. As pessoas, no Brasil, preocupam-se não só a liberdade religiosa, mas muito especialmente que esse tema seja algo que o Brasil abrace na sua participação ao redor do mundo, em organismos multilaterais e em outras esferas.
A questão da soberania. Temos insistido muito nessa pauta da soberania como um eixo fundamental da nossa atuação. Atuar no mundo sempre para resguardar o nosso espaço soberano (e nas outras nações também); não deixar que a contestação da soberania se infiltre de maneira sub-reptícia, velada, através de resoluções, de programas, de pactos que existem ao redor do mundo.
Bem, então essa agenda de valores, chamemos assim, nessa imagem simples que chamei da agenda da motocicleta, é fundamental, junto com a agenda do fogão, a agenda das entregas econômicas, sobretudo. Lembrando que nem só de pão viverá o homem, como diz o Evangelho. Eu acho que isso é um dos pilares, talvez, da nossa atuação, ter essa dupla dimensão, que, de certa forma está expressa nesse lema que usamos muito: “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos!”
Eu acho fundamental que essas duas dimensões corram juntas. Corram juntas porque, se nós perdermos essa dimensão da verticalidade, essa dimensão da espiritualidade nos negócios humanos, que é uma tendência muito séria, de décadas, ao redor do mundo, não só no Brasil, nós perdemos também a dimensão da nacionalidade, ou nos arriscamos a perdê-la.
Quando, nesse lema, a gente fala só “Brasil acima de tudo!”, e para, e não fala a segunda parte, “Deus acima de todos!” – claro, muitos não acreditam –, mas eu acho que, quando a gente acredita e se policia para não falar essa segunda parte do lema, na verdade a gente está-se limitando e, daqui a pouco, quando a gente fala só “Brasil acima de tudo”, daqui a pouco nós vamos estar falando “É, acima de tudo é meio exagero, não é? Brasil ali na metade, Brasil ali na média.” Isso se a gente perder essa dimensão da verticalidade.
Bem, esse trabalho na vertente, digamos, motocicleta, muitas vezes tem sido qualificado de ideológico. Isso é, talvez, a crítica mais recorrente que se faz à nossa atuação, é de que seria uma atuação ideológica. Acho que estamos provando que não é, em nenhuma definição. Mas estamos provando isso não fugindo do debate de ideias. Isso é uma coisa que eu tenho insistido muito. Uma coisa são as ideias; outra coisa é a ideologia. Quando você apresenta ideias, é claro que as pessoas vão dizer que você é ideológico. Se você se retrair, você acaba ficando nesse plano sem uma dimensão superior, sem um guia, sem uma concatenação com uma esfera superior.
Bem, esse, portanto, é um governo que tenta fazer uma política externa que se associa aos anseios do povo brasileiro, sem medo de receber esse tipo de crítica, de ser chamado de ideológico, de ser chamado de rompedor de tradições, ou de algo que está desmantelando a política externa brasileira, como se houvesse uma política externa brasileira fixa, consagrada, na qual não se pudesse mexer.
Esse é o grande desafio que nós temos, porque existe todo um peso acumulado, um peso de décadas, de algumas coisas boas, mas de uma mentalidade que se desvinculava do povo brasileiro, e que nós estamos tentando reverter.
É isso. Muito obrigado!
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* Vídeo disponível no canal do Itamaraty no YouTube.