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Conferência "A nova projeção internacional do Brasil" proferida pelo Ministro Ernesto Araújo no ciclo de conferências virtuais sobre a nova política externa brasileira
Conferência "A nova projeção internacional do Brasil" proferida pelo Ministro de Estado das Relações Exteriores, Embaixador Ernesto Araújo, no ciclo de conferências virtuais sobre a nova política externa brasileira (22/09/2020)*
Obrigado, Ministro Roberto Goidanich, querido amigo. Parabéns por todo o trabalho que tem feito na Fundação Alexandre de Gusmão, do qual este ciclo é mais um capítulo, juntamente com uma instituição fundamental para a indústria brasileira, para a economia brasileira, que é a Federação das Indústrias do Estado de Minas Gerais (FIEMG). Saúdo, especialmente, o Presidente da FIEMG, Flávio Roscoe Nogueira, bem como o Dr. Fabiano Soares Nogueira [Presidente do Conselho de Política e Mercado Internacional da FIEMG]. Agradeço e enalteço a parceria com o Itamaraty, com a Fundação Alexandre de Gusmão, na organização desta conferência. É uma honra, para mim, estar com os senhores virtualmente. Gostaria de estar em Belo Horizonte, uma cidade muito querida, com os senhores.
Eu acho que a iniciativa deste ciclo demonstra, por si, o enorme interesse que existe hoje pela política externa brasileira. Claro que, às vezes, padecemos do lado, digamos, negativo desse interesse, com críticas – o que é normal – e, também, com o apoio de muitas pessoas, mas, sobretudo, com o engajamento de grande parte da opinião pública brasileira com a nossa política externa. E isso é ótimo, porque significa que nós estamos conseguindo fazer a primeira coisa que nós nunca fizemos, que é mudar a política externa brasileira em grande medida. Por isso o adjetivo novo – a nova projeção internacional do Brasil – é muito importante. Realmente temos esse propósito, esse dever, eu diria, de fazer uma nova política externa.
Desde o começo do governo do Presidente Bolsonaro, tem-me chamado atenção, por parte daqueles que nos criticam, que criticam o nosso programa e as nossas ações, a seguinte coisa: se perguntarmos para a maioria dessas pessoas se o Brasil precisava de uma nova política educacional, diriam que sim; se precisava de uma nova política de saúde, diriam que sim; se precisava de uma nova política tributária, diriam que sim; de uma nova política econômica, diriam sim. Mas, depois de tantos anos de problema, de estagnação, de tudo que conhecemos em termos do que o Brasil padeceu, perguntando para muitas pessoas se o Brasil precisa de uma nova política externa, as pessoas falam: “Não, nós queremos uma política externa exatamente igual a como ela vinha sendo, como sempre foi”, mesmo para aqueles que reconhecem que o Brasil tinha problemas graves.
Esse tipo de enfoque, consciente ou inconsciente, é muito preocupante para quem trabalha na política externa, porque parece que ela é irrelevante, parece que a política externa não tinha nada a ver com aquilo de ruim que acontecia no Brasil e, por consequência, que ela também não pode ter nada a ver com aquilo de bom que nos programamos para fazer no Brasil. Pareceria que a política externa é uma coisa indiferente, que seria uma espécie de teatro kabuki, onde você simplesmente repete aqueles mesmos gestos estereotipados num teatro, num desempenho eterno. Claro que o kabuki está justamente ali para significar a permanência dentro da mudança, mas, acho que, em um país como o Brasil, não cabe uma política externa “teatro kabuki”. Precisamos de uma política externa que faça a diferença, esperamos que para melhor. É o que nós pretendemos.
Essa má percepção reflete-se, muitas vezes, naquilo que se diz sobre o que queremos que o Brasil seja no mundo, o que se espera que a política externa nos traga. Muitos falam assim: “O objetivo da política externa é trazer prestígio para o país”, isso se refletindo em louvores de um certo establishment de política internacional, que é um pouco parte da mídia, parte de organismos internacionais, academia e tal. Eu acho muito bom para os diplomatas quando ouvem: “a diplomacia brasileira é ótima”, mas qual diferença isso faz para o Brasil? O nosso objetivo não é o prestígio da nossa diplomacia; o nosso objetivo é ajudar a transformar o Brasil. E, se tivermos prestígio, que isso decorra do nosso êxito em ajudar a transformar o Brasil. O prestígio que nós queremos ter, sobretudo, é diante do povo brasileiro. Não nos interessa tanto o prestígio, ou a falta dele, junto a um establishment de política externa que vive em uma bolha, que vive em um círculo fechado há décadas, seja no Brasil, seja no exterior. Nós queremos fazer a diferença para o povo brasileiro. Queremos fazer a diferença dentro de um processo de transformação do Brasil, que é um processo no qual o povo brasileiro está engajado desde a eleição do Presidente Bolsonaro.
Como é que nós podemos conceituar a nossa atividade nesse processo de transformação? Há várias maneiras. Eu tenho procurado caracterizá-la em torno de quatro eixos, que são o eixo da promoção da democracia; o eixo da abertura econômica ou da projeção econômica; o eixo da soberania; e o eixo dos valores. São quatro eixos de uma política externa que quer ser um eixo de uma transformação nacional em que há outros eixos – economia, educação, direitos humanos, etc. – e com a integração de várias áreas de atuação externa dentro de um projeto nacional de governo. Claro que, aqui, o que nos atrairia mais atenção seria o eixo da economia, do comércio, da abertura comercial. Então, eu vou começar falando dos outros, porque senão nós não teremos tempo de abordá-los.
O eixo de valores, por exemplo. Do que nós estamos falando? Estamos falando de defender, no cenário internacional, com nossos parceiros, bilateralmente ou multilateralmente, princípios e ideais que são caros, que estão no coração do povo brasileiro – como a liberdade religiosa, a liberdade de expressão, o direito à vida, por exemplo. Hoje, no discurso do Presidente da República na abertura da Assembleia Geral das Nações Unidas, ele terminou dizendo que o Brasil é um país cristão e conservador – isso nos remete, claro, diretamente a essa dimensão dos valores. O Presidente caracteriza (a meu ver corretamente, claro; é aquilo em que eu acredito profundamente) o Brasil como um país cristão e conservador. Isso tem um significado que vai além, porém, da esfera dos valores. Por quê? Porque, por exemplo, quando caracterizamos o Brasil como um país conservador, um país que se assume como cristão e conservador, ao mesmo tempo, e voltando ao discurso do Presidente na Assembleia Geral das Nações Unidas, ele disse também que o Brasil é um país que finalmente abandonou o protecionismo na sua atitude diante do mundo na prática comercial. Abandonou esse protecionismo que não deu certo, nós sabemos; que levou à estagnação, levou à perda de empregos; levou, inclusive, a uma política comercial e econômica que acarretou a perda da nossa própria capacidade industrial; um protecionismo que, curiosamente, não protegeu. Pergunto, então, se é coincidência que esse momento em que abandonamos o protecionismo é o mesmo momento em que nos assumimos como um país cristão e conservador. Não é; a meu ver, não é uma coincidência.
Isso faz parte desse mesmo projeto, porque, em parte, o que o conservadorismo significa? Conservadorismo significa não só valores de família, por exemplo, mas também menos Estado, mais liberdade econômica, acreditar no indivíduo, acreditar numa sociedade construída de baixo para cima e não de cima para baixo, não do Estado para a sociedade. Um conjunto, uma nação que sai da sociedade, da capacidade individual de criação das pessoas, que quer justamente liberar as energias criativas da sua população. Uma sociedade que se concebe também como (um conceito do qual gosto muito) uma sociedade de confiança – uma sociedade de confiança é onde as pessoas confiam umas nas outras, sentem-se bem umas com as outras, de um modo geral, porque há uma base cultural comum, uma história comum, porque interagem em uma trama de relacionamento que não depende do Estado, que não depende da lei.
Existem estudos que mostram que o capitalismo surgiu e foi eficiente não apenas por determinadas técnicas econômicas, lá nos séculos XIV, XV, XVI, mas, justamente onde havia a sociedade de confiança, onde havia, no século XVII, sobretudo, a emergência, a consolidação de sociedades que permitiam, que valorizavam a propriedade, onde as pessoas não estavam com medo de serem assaltadas ali na esquina, onde as pessoas não eram inimigas umas das outras dentro daquela sociedade. Isso que é uma visão conservadora. Conservadorismo não é manter tudo igual. Muitas vezes, é o contrário. É o que nós estamos vivendo hoje. É mudar o Brasil para que o Brasil se pareça mais consigo mesmo.
Nisso está também a questão da fé cristã. Isso não é acessório, porque o país não pode ser ele mesmo e viver como uma sociedade de confiança onde as pessoas estão bem umas com as outras se ele renegar uma dimensão tão fundamental como a fé, no caso, de 90% dos brasileiros. Essa identificação cristã e conservadora nos dá uma alma, nos dá uma identidade, e a partir dessa identidade é que podemos construir, finalmente, acredito, uma economia próspera e aberta, eficiente.
É uma ilusão acreditar que se pode construir uma economia eficiente apenas com medidas econômicas na base de uma sociedade dispersa e fragmentada. Isso nós temos falado muito. Eu falo disso frequentemente com o Ministro Paulo Guedes, por exemplo. Concordamos inteiramente na necessidade de que tenhamos – e temos – uma aliança liberal-conservadora, uma coesão entre a visão do mundo liberal, economicamente liberal – na qual eu também acredito profundamente; acho que não há um outro caminho sustentável a longo prazo para a sociedade evoluir economicamente senão o liberalismo –, mas, também, com uma base conservadora.
Essa base conservadora não é simplesmente, como eu dizia, os chamados valores conservadores de família. É uma visão de mundo, uma visão de sociedade – da qual, aliás, a família faz parte, porque é ao valorizar a família que nós valorizamos essa sociedade criada de baixo para cima, onde você tem o indivíduo, mas você também tem a família, que é a primeira sociedade, onde a pessoa se sente bem. É a família que educa, no fundo; é a família que transmite valores, que transmite, digamos, o drive, o impulso de criar, o impulso de prosperar. Isso tem muito a ver com a família. O indivíduo, muitas vezes, é levado às inovações, aos avanços, pela necessidade de criar o melhor para sua família.
Todas essas coisas normalmente são ignoradas em parte das teorias sobre como uma sociedade pode evoluir, mas são absolutamente fundamentais. São ignorados por alguns. Por outro lado, são odiadas por aqueles que são contra o funcionamento de uma sociedade capitalista, de uma economia de mercado. Não é à toa que Karl Marx dizia que o grande inimigo é a família: destruindo a família, destrói-se o capitalismo, e enquanto não se conseguisse destruir a família, não se conseguiria destruir o capitalismo. É preciso trazer de volta esse tipo de coisa, e é o que estamos tentando.
Aqui já vemos uma ligação entre o eixo dos valores e o eixo do comércio. O eixo dos valores, no fundo, é o que dá essa solidez ao eixo comercial, liberal, na economia e vice-versa, porque também, claro, se não houver a prosperidade que apenas uma economia liberal pode proporcionar a longo prazo, a sociedade não se sustenta.
Eu tenho dito também que o Brasil é talvez, hoje, o único dos grandes países e economias do mundo, onde você tem uma sociedade que, justamente por ser predominantemente conservadora, quer reformas liberais autenticamente. A Reforma da Previdência no ano passado, por exemplo. Em qualquer lugar do mundo onde se tenta uma reforma da Previdência, a população geralmente é contra, porque as pessoas vão perder privilégio, etc. Qualquer reforma liberalizante que tira subsídios daqui e dali, que tira poder de grupos de pressão, tende a ser rejeitada pelo grosso da população na maioria dos países. No Brasil, foi e está sendo o contrário: a população apoia as reformas liberalizantes. Então, nós temos essa janela de oportunidade, que acho que é intrínseca do brasileiro, uma janela ampla, de um povo que quer reformas liberais, justamente por ser um povo conservador. E isso é que tem produzido, finalmente, eu acho, o sucesso de ideias liberais.
Nos anos 1990, houve tentativas de determinadas reformas liberais, mas eram reformas sem alma, que não reconheciam esse lado conservador, essa questão da identidade do povo brasileiro. Foram reformas que tiveram algum sucesso aqui e ali, mas que, de um modo geral, não transformaram o Brasil, não conseguiram mudar o sistema. Acho que não tentaram mudar o sistema. Foi, talvez, um verniz passado em cima do sistema. Estou falando, sobretudo, dos anos 1990, de algumas privatizações aqui e ali que deram certo, mas que ficaram dentro do sistema. Agora, nós temos a oportunidade de mudar o sistema, esse sistema de patrimonialismo, de clientelismo e de corrupção que acarretou, para o Brasil, décadas de estagnação e atraso. Por quê? Porque existe um engajamento popular. Não é simplesmente porque existe uma vontade governamental, é porque existe um engajamento popular e porque a população se identifica com o seu governo, se identifica com as pautas do seu governo, independentemente de serem pautas econômicas ou as pautas conservadoras. Quando falamos de conservador, geralmente falamos de questão de costumes, mas acho que é bem mais que isso, como estou tentando mencionar aqui.
Temos os outros dois eixos. O eixo da soberania é onde nós colocamos toda a parte da segurança e da defesa, por exemplo. É toda uma revalorização dessa dimensão, que tem também uma importância decisiva para a dimensão econômico-comercial. Segurança, obviamente, é uma parte da infraestrutura social que precisa existir para que uma sociedade prospere. E a segurança, do ponto de vista da ação internacional, é, evidentemente, a questão das fronteiras com nossos vizinhos, é a cooperação internacional e é, também, ter uma visão mais ampla de quais são as reais ameaças hoje à nossa segurança. Essas ameaças estão, sobremaneira, nessa articulação, nessa rede criminoso-política que existe na nossa região, que é essa associação de determinadas correntes políticas com o crime organizado, com o narcotráfico, com o terrorismo e com a corrupção. É esse tecido que domina a Venezuela, através do regime de lesa-humanidade de Maduro, e que está presente pela região, sempre tentando chegar ao poder em todos os lugares de maneira articulada. É uma rede, não é uma unidade em cada país. Precisamos enxergar isso, porque é algo que nos ameaça permanentemente. Porque esses movimentos têm suas raízes no Brasil também através do crime organizado, etc.
Aí vem o quarto eixo, que é o da promoção da democracia, que está intimamente ligado com o eixo anterior. É uma dimensão que não é abstrata, que é fundamental para o nosso desenvolvimento econômico. Vamos usar aqui o conceito de “paz” (que é muito mal utilizado, às vezes). Um dos princípios constitucionais para as relações internacionais do Brasil é a busca da paz. Ótimo. E o que isso significa? Algumas pessoas acham que isso significa fechar os olhos e dizer: “vamos fazer de conta que está tudo bem, que não há nada acontecendo na Venezuela, nem em lugar nenhum. Vamos ficar quietinhos, esperar esse vendaval passar e torcer para que não nos atinja”. Isso na melhor das hipóteses; tem gente que realmente quer promover o caos em outros países, mas, aqui, eu estou falando das pessoas de boa-fé, levadas por falsos conceitos, que acham que a busca da paz é não fazer nada na nossa região, que não querem se preocupar.
Quem acha isso, está colocando em risco a segurança e a soberania nacional, porque o Brasil tem um peso na América do Sul. Ele pode, pela sua ação, contribuir para uma América do Sul democrática, livre e favorável à economia de mercado, praticando a economia de mercado. Mas ele também pode contribuir, seja ativamente (como se tentou fazer nos governos do PT), seja passivamente (por ignorância ou por deliberada desídia), de alguma maneira, para gerar regimes hostis, regimes ligados ao tráfico, regimes ligados ao terrorismo, que, se não nos cuidarmos, um dia acordaremos e eles estarão dominando aqui dentro também. Isso tudo não é uma questão abstrata, muito menos uma questão ideológica; é uma questão essencial de soberania e de um projeto onde as coisas estão ligadas. Como eu falei, a questão de valores está ligada à questão da prosperidade material, que está ligada à questão da segurança, que está ligada à promoção da democracia.
Então é isso que temos de ver: na política externa, não existe apenas uma dimensão, que se chama, normalmente, de diplomática, no sentido das negociações. Esse termo às vezes é mal utilizado, como se fosse simplesmente um “rolar a bola”, um “adiar soluções” e uma autossatisfação em dizer “olha, o Brasil é um país pacífico, o Brasil é um país do diálogo”. Está bem, mas de que isso adianta se há uma tempestade se armando aqui do outro lado da fronteira? Em várias fronteiras, às vezes. Então, é uma política também de olhos abertos. Esses quatro eixos são todos eixos de olhos abertos.
Muitas pessoas gostariam que nós não tivéssemos esses problemas, mas eu acho que isso é, às vezes, um pouco de pensamento mágico: “Olha, eu não vou olhar para o problema e ele vai desaparecer. Eu não vou dizer que a Venezuela é uma ditadura genocida, e ela vai deixar de ser, e vai ficar uma coisa normal lá.” Não vai. Ao contrário. Ao dizer, ao chamar a atenção e ao agir em função dessa conceitualização nova é que nós podemos ajudar no processo de transformação. O Brasil tem a capacidade e a responsabilidade, inclusive, de ser parte do processo de transformação na sua região. E no mundo também.
Por exemplo, o tema da liberdade de expressão, que é um tema fundamental hoje no mundo todo. Por que ela é tão importante? E por que ela é tão importante para todos os outros eixos? Porque hoje existe, por parte daqueles setores de poder mundiais e nacionais (a mídia, etc.) que há muito tempo controlavam o discurso público, o discurso que aparece, uma tentativa de sufocar as vozes independentes, no Brasil e no resto do mundo. O Brasil é um dos países em que temos, talvez, a cena mais dinâmica em termos de novas vozes em todas as áreas, inclusive na política externa, como, aliás, os seminários da FUNAG têm mostrado. Nós temos procurado mostrar novas vozes, e não essas vozes do teatro kabuki, que repetem as mesmas coisas. Na realidade, no teatro kabuki não se fala; mas no caso dessas pessoas do pensamento antigo, falar ou não falar tanto faz, porque sempre sabemos o que elas vão dizer; são sempre os mesmos gestos. Não é à toa que essas iniciativas da FUNAG, por exemplo, têm sido tão criticadas. Essas pessoas querem que continue o teatro kabuki. Se surgem novas vozes, elas têm de ser sufocadas. E, para fazer isso, passam a caracterizá-las como “ideológicas”.
Isso é outra coisa curiosa. Eu tenho visto que, para muitas pessoas, a definição de ideológico é “tudo que eu não entendo, eu chamo de ideológico, porque daí eu não preciso entender”. Isso realmente é uma preguiça intelectual que viceja em muitas áreas e em muitas pessoas. É complicado entender as coisas da realidade muitas vezes. Então, quando se diz “isso é ideológico”, você se exime de ter de entender e você se passa por inteligente, por prudente, por muito sofisticado, por alguém que não se envolve com ideologia. Enfim, eu nunca dei aula, mas acho que é uma coisa que professor vê quando o aluno está querendo enrolar. Eu acho que quando as pessoas começam a dizer “não vou falar isso porque é ideológico”, isso é enrolação de quem não quer estudar a matéria.
Mas eu dizia da liberdade de expressão. A ameaça à liberdade de expressão não é simplesmente uma violação aos direitos humanos. Ela prejudica cada vez mais a competitividade econômica porque, em uma sociedade cada vez mais tecnológica (e a pandemia acelerou a emergência da sociedade tecnológica, da sociedade digital, está acelerando de maneira brutal), o intercâmbio de ideias e de informações nos meios não controlados, nos meios independentes, é absolutamente fundamental para a competitividade. É ali que surgem as ideias corretas sobre a realidade. É ali que você pode interpretar corretamente a realidade, justamente de maneira não ideológica, e gerar inovação. O conceito de inovação, aliás, é muito bom, porque ele pode ser a invenção mecânica e, ao mesmo tempo, a inovação de ideias, a maneira de ver as coisas. Isso tudo é sufocado quando se sufoca a liberdade de expressão. Sufocar a liberdade de expressão, hoje, é a tentativa de todo um esquema de poder para manter o seu domínio, tanto em nível nacional (esse velho sistema que nós estamos ameaçando, do patrimonialismo, do clientelismo, da corrupção) quanto em nível mundial (uma dominação das ideias por uma certa elite).
Falando agora da contribuição que nós estamos tentando dar, mais especificamente, à dimensão econômica. Eu estava vendo os últimos dados de recuperação econômica entre os principais países emergentes e o Brasil é o que tem os melhores índices de recuperação econômica. Está acima da média dos países emergentes. E isso tem a ver com muitos fatores, mas eu pergunto: será que não tem nada a ver com a nossa política externa, com essa nova política externa? Bom, vocês sabem que a resposta que darei é “sim”. Eu acho que sim, acho que nós temos elementos para mostrar que sim. Claro que tem a ver com a nossa política externa.
A consecução de uma nova maneira de se relacionar com o mundo, de se relacionar com nossos parceiros, sem determinados vícios contribui para a recuperação econômica brasileira. Por exemplo, atuamos sem aquele vício de separar o mundo entre países em desenvolvimento e países desenvolvidos, norte e sul, que não é mais um conceito que nos pareça muito útil. Foi uma série de novos enfoques, de novas maneiras de atuar, que nos levou à condição de poder concluir a negociação do acordo MERCOSUL-União Europeia – que agora está na fase de revisão jurídica.
Aliás, um parêntese: tenho certeza de que esse acordo será muito útil para a nossa agenda ambiental e para a transmissão da visão correta da nossa política ambiental e da nossa situação ambiental, porque, quando o acordo for assinado (esperamos que seja assinado no final deste ano ou um pouco depois), o acordo terá de ser submetido aos parlamentos, claro, daqui e dos países europeus. E eu acho que, ao ser submetido aos parlamentos europeus, ele vai exigir uma discussão racional. Imagino que nos parlamentos europeus, assim como aqui também, quando alguma coisa chega no parlamento, ela tenha de ser discutida não com base em slogans (“O Brasil está queimando a floresta”), mas, sim, com base em dados, mapas de onde está a produção agrícola brasileira, em entender como a nossa produção tem crescido por aumento da produtividade e não por aumento da área plantada, por exemplo, e assim por diante. Então, o acordo – que alguns consideram, hoje, uma liability ao meio ambiente, quando, exatamente ao contrário, ele tem cláusulas de reforço da proteção ambiental – será um instrumento de transmissão da mensagem e de compreensão da realidade ambiental brasileira por parte dos europeus.
A nossa perspectiva de entrada na OCDE não é simplesmente um movimento econômico. É um movimento geopolítico. Anteriormente, houve a tentativa de entrada na OCDE. Foi um movimento iniciado no governo anterior (a meu ver, corretamente), mas esbarrou em um padrão muito clássico da atuação externa do Brasil no passado: achar que bastava cumprir os critério técnicos para entrar, que os outros países da OCDE tinham a obrigação de deixar o Brasil entrar, simplesmente por termos cumprido os requisitos técnicos. O mundo não se movimenta assim. Uma organização como a OCDE não é simplesmente uma entidade técnica; ela tem uma dimensão política e geopolítica. Então, quando nós damos uma sinalização de que nós queremos fazer parte dessa comunidade democrática de nações identificadas com a economia de mercado, a coisa muda de figura.
Havia a ideia de que a OCDE, nesse exemplo, tinha a obrigação de nos aceitar. Quando não nos aceitava, quando os Estados Unidos demoravam a nos dar apoio, diziam: “Por quê? Não entendo”. Porque tudo é uma questão de geração de confiança. Não é uma questão de alinhamento com esse ou aquele país, é uma questão de nós sermos coerentes com aquilo que nós queremos. Queremos uma sociedade democrática baseada em uma economia de mercado (que é o único tipo de economia que garante uma sociedade democrática)? Queremos. Está bem, então vamos agir de acordo com esse objetivo. Antes, nós queríamos simplesmente uma ficção de reconhecimento do Brasil, sem esse empenho de conjunto da nossa configuração internacional. A adesão às ideias de economia de mercado (que nós traduzimos de várias maneiras) e à democracia, e o fato de nos assumirmos como um país ocidental – o que não tem a ver apenas com uma dimensão puramente cultural (tem a ver com uma dimensão cultural também, porque a cultura é tudo; a cultura inclusive é a economia, e economia é cultura) – significa assumirmos os valores com os quais os brasileiros se identificam. Isso faz diferença. Está fazendo diferença para os mercados. Os mercados olham para nós diferentemente hoje.
Falarei um pouco da criação de novas parcerias, de novos relacionamentos com grandes países. Claro, com os Estados Unidos, de maneira muito óbvia, uma relação que foi totalmente sufocada durante muito tempo. Com Israel, a mesma coisa. Mas também, talvez de maneira menos visível, com o Japão, uma relação na qual o Brasil perdeu imensas oportunidades nos governos anteriores por não saber como lidar com o Japão. Ou mesmo com um país como a Índia, ao qual foi dada alguma atenção em governos anteriores, mas de maneira totalmente equivocada e sem nenhum resultado concreto. Nós fomos à Índia com o Presidente da República e assinamos quinze acordos na área comercial, tecnológica, etc. Há um interesse indiano em ampliar o acordo comercial com o MERCOSUL, chegando, idealmente, até a um acordo de livre comércio. Temos de ver como fazer isso, ainda é uma ideia inicial. Discutiremos tudo isso com o pessoal da indústria quando chegar o momento; espero que esse momento chegue. Há um interesse por nós, e estamos gerando resultados em áreas em que não eram gerados resultados. Por quê? Porque nós temos uma atitude em que as pessoas estão confiando, estão vendo o que está acontecendo. Isso ajuda nesse cenário de recuperação.
Nós estamos dando sinal de que o Brasil está se posicionando nas novas cadeias globais de valor, nas cadeias de suprimentos, justamente em um momento em que essas cadeias estão sendo reformatadas. Isso é óbvio, em todo lugar em que você fala hoje, você fala da reformatação das cadeias de suprimento. O Brasil está se reposicionando na OMC, para a reforma da OMC, para sair justamente dessa dialética de países desenvolvidos contra países em desenvolvimento. Temos de falar de novos temas independentemente. Em alguns temas, nós estamos mais próximos de países considerados desenvolvidos. Em outros temas, estamos mais próximos de países considerados em desenvolvimento. Não temos de estar presos a nenhum dos dois. Essa é a nossa atitude.
Nesse conjunto muito breve de coisas que eu estou falando aqui, vou dar um exemplo de um caso específico: o dos Estados Unidos, país com que nós já conseguimos mudar a relação por causa de uma nova atitude, por causa de uma geração de confiança, por causa de uma parceria que vem do nível presidencial e que se repercute em todos os níveis. Firmamos o acordo de salvaguardas tecnológicas e o acordo de pesquisa e desenvolvimento de produtos de defesa. Conseguimos a abertura do mercado de carne. Em relação ao aço, que eu acho que interessa muito a tantos da FIEMG, pretendemos ter resultados positivos, melhores, mas conseguimos evitar um resultado negativo, que seria a imposição de tarifas pelos Estados Unidos. Estamos terminando a negociação de um acordo de facilitação de comércio e de um acordo anticorrupção com os Estados Unidos. Isso tudo são resultados que não existiriam antes, que existem hoje, e que, além do ganho imediato, transmitem essa nova imagem do Brasil e contribuem para os investimentos, para a visão positiva do Brasil por parte dos investidores e, portanto, para o cenário de recuperação econômica.
Procurei falar um pouco desses quatro eixos, mas, sobretudo, a mensagem que eu queria deixar é essa: tudo funciona em conjunto. Quando falamos de valores, ao mesmo tempo estamos reforçando a nossa base de transformação econômica. A economia reforça a nossa capacidade de segurança e de prover segurança contra o crime organizado, etc., o que requer uma articulação diferente, uma visão do que realmente está acontecendo na nossa região, e não daquilo que gostaríamos que acontecesse. E requer a permanente promoção da democracia, também na percepção de que é impossível viver fechado em uma democracia no Brasil se o resto da região tem a sua democracia ameaçada. Mais uma vez, com essa concepção de que democracia e uma economia liberal, uma economia livre, são mutuamente necessárias.
Então é isso. Agradeço muito a atenção. Muito obrigado.
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