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Aula magna do Ministro Ernesto Araújo no Instituto Rio Branco
Aula magna do Ministro Ernesto Araújo no Instituto Rio Branco (IRBr), em Brasília (06/03/2020)*
Bom dia a todos. É uma alegria estar aqui no nosso querido Instituto Rio Branco.
Embaixadora Stela Frota, Senhor Secretário-Geral, Secretários, colegas, Maria Eduarda, Chefe do Gabinete,
Eu gostaria de falar um pouco primeiro, depois, como é uma aula, gostaria que, no formato de aula, houvesse uma interação, abrir para perguntas. Aliás, eu queria que fosse até a parte principal, para a gente conversar sobre diferentes temas da nossa política externa.
Mas, para começar, eu queria introduzir com algumas ideias. Antes de mais nada, é uma alegria renovada de estar aqui no Rio Branco (Presidente da FUNAG, eu não o tinha visto ainda). Eu estive aqui há poucos dias para o início das atividades da nova turma e, como eu disse naquele dia (reitero, porque os colegas da turma anterior não estavam), para mim, sempre um dos pontos fundamentais dessa gestão é o contato e a inteiração, que eu quero que seja sempre muito frequente, muito próxima com o Instituto Rio Branco, com os alunos do Instituto Rio Branco.
Bem, ontem, na audiência que eu tive no Senado, eu falei um pouco sobre a questão dos princípios da política externa, que estão expressos na Constituição, no artigo 4º da Constituição. Eu queria começar falando um pouco sobre isso. O artigo 4º elenca os princípios que devem reger as relações internacionais do Brasil.
O primeiro princípio que aparece ali é o da independência nacional. E eu acho que não é por acaso que está colocado em primeiro lugar, e não é banal esse lugar em que os constituintes colocam esse princípio. Esse conceito já não é tão moderno; “independência nacional” soa um pouco arcaico; eu acho bom isso, porque ele nos remete à continuidade histórica e à continuidade, no fundo, com a nossa fundação, da nação brasileira. Lembrar também que nascemos não só com a independência, mas com a palavra “independência”, com conceito independência, com grito de independência. Então, é muito fundacional, é muito profunda, eu acho, essa colocação da independência nacional como o primeiro princípio que deve nortear o relacionamento internacional do Brasil. E temos que explorar um pouco esse conceito.
Nesse conceito, nós temos implícita a questão da soberania, a questão da liberdade – independência está nesse universo semântico e sentimental da soberania e da liberdade – e, ao mesmo tempo, aqui já tem a ideia de nação, independência nacional, independência da nação brasileira. Claro que isso, na superfície, significa a independência frente a potências estrangeiras, o primeiro sentido, o sentido mais básico de independência desde o começo. Mas me parece que precisa significar também, e cada vez mais, independência frente a uma nebulosa, um magma difuso de conceitos, de práticas, que, cada vez mais, no mundo, afetam as soberanias, afetam, contestam as nações, a existência das nações, a vitalidade das nações.
Então, independência; independência, portanto, da nação. E para que a nação seja independente, e atue, é preciso que ela se identifique como nação, que se sinta, que se experimente, que viva como nação. Esse tema do nacionalismo, do sentimento nacional, isso, hoje é, a meu ver, absolutamente fundamental, e é interessante que a gente possa discutir isso a partir da Constituição.
Eu estava lendo o penúltimo livro, talvez, do Cardeal Robert Sarah, oriundo da Guiné, que é talvez um dos maiores pensadores católicos contemporâneos. Eu estou lendo em inglês, chama The Day is Now Far Spent (O dia está chegando ao fim). Num certo trecho, ele fala da globalização, e fala das nações, ele diz uma coisa que eu vou ler já traduzindo, então desculpem a má tradução, ele diz assim: “A riqueza do homem é a terra que o viu nascer e crescer. Ele tira recursos incalculáveis desse lugar geográfico específico. A terra, o mundo, não pode ser um oceano sem fronteiras. Este planeta se tornaria um pesadelo.” Logo depois ele fala: “as nações são grandes famílias”.
É uma defesa da nação. E é interessante ver essa defesa da nação no coração, nesse caso, da Igreja Católica, porque isso já chama atenção para uma certa tensão estrutural que existe nesse pensamento católico a respeito do nacionalismo cristão, que é tão imbricado na nossa civilização. Por quê? Católico, em grego, katholikós, significa universal. Então, existe no próprio coração, no fundo, dessa instituição que é tão importante na nossa civilização, essa tensão entre o universal e o nacional.
Muitas vezes se fala que uma coisa é incompatível com a outra, e que o cristianismo é antinacional; e não é. Eu concordo com o que diz o Cardeal Sarah. Hoje em dia, muitas vezes se interpreta, se coloca, às vezes, setores, no caso – eu não quero só falar de Igreja Católica, mas acho que é um exemplo interessante –, setores da Igreja se colocam como antinacionais, como antifronteiras, como antiexistência de povos identificados consigo mesmos. E isso não é necessariamente assim. Temos uma grande figura da Igreja que respeita e louva, e vê essa essência, esse caráter tão essencial da nação e da nacionalidade.
Eu também sempre recordo, eu tenho falado disso, a gente pega também a raiz da palavra nação, natureza, é a mesma raiz, raiz de nascimento, é algo muito profundo. Às vezes, a gente ouve falar no “Estado-nação”; isso é outro problema, a questão do Estado-nação. A gente começa sempre a falar de Estado-nação quando se quer falar de nação. Eu também já escrevi sobre isso. É interessante, Estado normalmente se escreve com maiúscula e nação com minúscula, não é? Por quê? Enfim. Mas existe um pouco no ar essa teoria de que a nação é algo que surgiu por volta do século XVII e que está acabando. Talvez esse seja o dia que está acabando, segundo o Cardeal, e que não deveria, talvez, acabar, no título do livro dele.
Bem, continuando com alguns desses princípios do artigo 4º, nós vemos também o da autodeterminação dos povos, muito relacionado com o anterior, também, com independência, com soberania, com nacionalidade. A gente tende a pensar autodeterminação dos povos no abstrato, mas, vem cá, primeiro, autodeterminação começando pelo nosso, não é? Autodeterminação do povo brasileiro.
Então, é interessante, porque a mesma Constituição que, logo antes, no artigo 1º, se não me engano, diz que todo poder emana do povo, nesse artigo deixa claro que a política externa também precisa emanar do povo. Eu acho que isso é uma interpretação bastante clara desse artigo 4º, quando fala da autodeterminação dos povos, como, também, um princípio basilar da atuação externa.
E é interessante também porque o caput do artigo não fala de política externa, fala dos princípios que orientarão as “relações internacionais do Brasil”, que é algo que eu acho que vai além do nosso conceito de política externa como algo um pouco técnico (depois vamos falar um pouco disso), como uma série de posições sobre determinados temas. Então, esse artigo já começa a colocar um desafio maior do que o que a gente imagina quando a gente normalmente fala de política externa. Quando fala de relações internacionais, inter nacionais, então, a nossa presença no mundo se dá através de relações entre nações. A Constituição não fala de relações interestatais, não fala de relações multilaterais, ou o que quer que seja. Fala em relações internacionais.
Fazendo um parêntese – eu queria falar disso depois, mas para não esquecer: eu tenho procurado evitar o uso da palavra “global”. A gente começou a usar muito a palavra global quando quer falar de internacional. Isso é uma tendência, hoje: os “grandes temas globais”, o “tratamento global”, um “enfoque global”, porque embutido nessa substituição do internacional pelo global está, certamente, uma contestação, uma relativização da nação, da identidade, dessa profundidade do sentimento da nação.
Então, é um desafio, é um desafio maior do que a gente imagina, porque é difícil fazer uma política, conduzir um relacionamento internacional que parta da nação, que parta do povo. Acho que a gente pode usar, claro que não são sinônimos exatos, mas também fazem parte da mesma aliança semântica, povo e nação. Fazer uma politica que emane do povo exige um tipo de atenção, de interação, de pensamento, talvez mais complexo, mais profundo, mais desafiador do que normalmente se imagina.
É mais fácil fazer uma política do Estado, porque o Estado é uma forma, o Estado é algo formal, é mais ou menos evidente onde está, o que diz. O Estado tem uma presença mais simples do que a nação, do que o povo. Fazer uma política do povo é mais difícil, porque o povo é uma entidade viva, orgânica, pulsante.
Eu não sei se vocês viram o discurso da Regina Duarte na posse dela como Secretária da Cultura, anteontem. Ela disse uma coisa muito interessante, usou uma imagem muito interessante, que até já tinha me ocorrido, mas ela falou muito melhor do que eu falaria, e do que eu falarei aqui, mas a ideia de que o povo é um corpo com muitos braços, com muitas mãos, eu acho que foi a imagem que ela usou. Então, claro, existe toda uma diversidade, existe toda uma riqueza e, às vezes, um conflito, de mãos diferentes. Mas existe um corpo, existe um corpo central, e isso é que dá concretude a essa ideia de povo. Se a gente não imaginar o povo como algo individual, por mais complexo que ele seja, não faz sentido falar de povo, não faz sentido falar de nação se nós não imaginarmos que existe uma unidade profunda de sentimentos e algo que vai além da ação e da opção cotidianas. Então, essa organicidade do povo cria também a sua complexidade, faz parte dessa complexidade.
Mais adiante, outro princípio do artigo 4º da Constituição fala em “cooperação entre os povos”. Não é cooperação entre os países, cooperação entre os Estados; é “cooperação entre os povos para o progresso da humanidade”. É outro princípio basilar. É mais difícil, também: quando a gente leva o Brasil ao mundo, a gente está levando o povo brasileiro para cooperar com outros povos, pelo progresso da humanidade. Isso é interessante também: progresso da humanidade é algo mais amplo do que o desenvolvimento, do que uma ordem internacional justa, ou o que quer que seja. “Progresso da humanidade”, esse conceito também é fundamental, essa ideia dos povos como os atores principais do drama, digamos, da humanidade.
Eu acho que isso é fundamental: nós temos o povo como sujeito da vida internacional, de acordo com a Constituição, e o Estado é um instrumento desse povo. A gente poderia dizer que isso não é o que existe hoje; isso é, como eu dizia, talvez, arcaico. É interessante, porque a Constituição não é tão antiga assim, tem 32 anos. Mas aquele conceito, também, de que “todo poder emana do povo”, que é tão essencial, vem de um passado muito profundo, é uma ideia que não é de hoje; acho que é uma sobrevivência de algo que as pessoas sentiram que precisavam colocar aí. O que é emanar? Emanar é uma coisa metafísica; não é simplesmente a questão do voto, ou simplesmente a questão da expressão eleitoral. O poder emana do povo, é algo bem mais profundo e quase misterioso.
Mas eu acho que o Brasil não está sozinho nisso; e também, se estivesse, não teria problema. Isso é outra coisa que a gente precisa começar a pensar. “Ah, o Brasil, está sozinho, o Brasil está isolado.” Não está, mas também, nós temos que pensar a partir de nós. Ontem eu também falei disso lá no Senado. Deixar de ser esse país que está sempre olhando para o lado: “Quem está comigo? Quem não está?” Vamos olhar para frente; quem vier junto, vem. Claro, de preferência, composições, mas sem que o primeiro reflexo seja pensar em quem está junto e quem não está, e sim que o primeiro reflexo seja o que nós queremos, o que nós somos, a partir dessa emanação que vem do povo.
Mas não estamos sozinhos. Eu acho que hoje, alguns, talvez a grande maioria dos principais atores internacionais, nessa perspectiva um pouco clássica de países, são nações fortes e nações autoafirmativas, ou que pretendem uma autoafirmação. Estados Unidos, China, Rússia, Índia, Japão colocam-se no mundo como uma nação, não como uma pós-nação. Eu acho que nenhuma região, pelo menos do mundo emergente, digamos assim, está buscando essa emergência pela via pós-nacional. Certamente não é o caso da Ásia, do Sudeste Asiático, ou da Ásia do Sul; não é o caso da África, acredito (os colegas africanos, aqui, me digam se eu estiver errado ou não).
Nas viagens que eu tenho feito à África, eu tenho visto que ali existe, claro, além de uma preocupação com o desenvolvimento econômico, que também é um desafio muito comum nosso, existe igualmente um sentimento de soberania, uma vontade de exercício de soberania muito profundo. Falei disso em vários países africanos, e sempre que eu falava disso, eu acho que isso ecoava muito, e ouvi muito, também, isso de colegas em países africanos. É muito interessante, essas nações jovens, como nós, na América Latina, na África, na Ásia, querem, digamos, penetrar no mundo sendo o que elas são, pela via da soberania da nação e não pela via já do pós-nacionalismo. Eu acho que o Brasil vem se somar a esse grupo.
Nesse contexto, é interessante observar o que está acontecendo na Europa, em alguns países Europeus, impulsos e movimentos como o gilets jaunes, na França, ou a própria saída do Reino Unido da União Europeia, com o Brexit. Não digo que eu seja a favor ou contra nenhum desses movimentos, mas eu acho que é importante que eles sejam estudados a fundo, e não simplesmente desmerecidos, assim, de saída. Isso é o que muitas vezes tem acontecido, não é? Qualquer movimento que fala um pouco de povo, de nação, na Europa (no mundo também, mas na Europa isso é muito claro), é imediatamente taxado de populista, de xenófobo.
Eu acho que hoje uma grande parte da mídia internacional (e nacional, certamente, aqui no Brasil) é uma indústria de rotulagem. É simplesmente pegar dois ou três rótulos e pregá-los em qualquer fenômeno. O gilets jaunes, particularmente, é um movimento – chamemos assim, porque é uma coisa muito espontânea (isso que também é interessante, nele; não é direcionado) – que tem elementos considerados de esquerda, elementos considerados de direita; de toda forma, é um movimento seguramente antissistema, que se furta a esses rótulos. E eu estava pensando uma coisa: por que esse movimento é tão vilipendiado na mídia, no establishment? Comparando com o Maio de 68, também, na França, por que esse movimento, hoje, não ganha aquele glamour que ganhou o Maio de 68? Por causa da mídia, estou convencido disso.
Eu acho que naquela época, de 1968, a grande mídia reportava a realidade, de alguma maneira, talvez com alguma distorção, com algum partidarismo, mas dizia o que estava acontecendo. Claro que reportar, narrar, sempre é uma seleção, nunca é perfeito, mas havia essa preocupação e esse ethos, na mídia, de, de alguma maneira, reportar, registrar a realidade. Hoje, isso não existe. E por isso hoje a mídia é essa empresa de rotulagem, a mídia é essa empresa de direcionamento, e por isso esse movimento, nesse caso, não encontra eco no establishment, na sociedade como um todo. Ele é considerado sempre sob uma luz negativa.
Só para dar um exemplo que me chamou muito a atenção, nessa questão de distorção da mídia – e aqui também sem nenhuma crítica ou tomar partido –, outro dia eu vi uma manchete sobre aquele evento lá no Ceará, que todo mundo acompanhou, e a manchete era assim: “Cid Gomes baleado enquanto dirigia trator”. Todo mundo viu a cena, não é? Por sorte, foi filmada. Então, quem viu, me dirá se essa manchete reproduz a realidade. É isso que nós estamos vivendo hoje, também. Isso é um parêntese. A gente tem que estar atento para isso. Nesse caso, há o filme e há a manchete, e ainda assim as pessoas preferem acreditar na manchete, não é? Mas pelo menos há o filme para poder comparar. Caso não haja o filme, que ninguém tenha filmado (e ninguém consegue ver todos os vídeos do YouTube do mundo; e vídeo também não deixa de ser uma seleção), você tem a manchete, e depois, a notícia (que também não corresponde muitas vezes à manchete) que nos direciona para coisas que são completamente diferentes da realidade.
Outro exemplo (só mais um), que tem mais a ver conosco, aqui: a visita presidencial à Índia. Eu acho que foi uma excelente visita; conseguimos muita coisa; um destaque imenso para o Brasil, dado pela Índia, grande potência, nos tratando como uma grande potência, querendo aprofundar a relação conosco em todas as áreas. Aí uma das manchetes era assim: “Primeiro-Ministro da Índia assina quinze acordos com o Brasil” (eu acho que tinha “com o Brasil”; agora não me lembro tão bem, mas acho que o Brasil estava ali, pequeninho). “Primeiro-Ministro da Índia assina quinze acordos”. Chegou lá e: “ah, eu quero assinar um acordo”. Não, assinou com o Presidente Jair Bolsonaro. Mas a imprensa não nos dá crédito, geralmente, por nada. Então vamos ficar atentos para essas coisas.
Ainda nessa questão dos princípios de política externa, e não especificamente um ou outro, mas isso é algo que nós trabalhamos diariamente: a tensão entre princípios e interesses, ou entre valores e interesses, se você quiser, entre ideais e interesses. Essa tensão existe; essa tensão sempre vai existir. Eu acho que é impossível fazer uma política externa, ou qualquer atividade humana, simplesmente baseada em princípios, mas também é impossível, e talvez contraproducente, que seja baseada simplesmente em interesses. Essa tensão tem que existir. Uma política baseada unicamente no que se chama de interesses é uma coisa disforme, que não faz sentido e que se desfaz no primeiro sopro. Por outro lado, claro que uma política baseada simplesmente em princípios se trava, porque o princípio nunca vai esgotar a realidade.
Então, é preciso que a gente trabalhe e que aceite essa tensão, que muitas vezes é uma tensão contraditória, porque não só existe uma tensão entre princípios e interesses. Também existe uma tensão entre os próprios princípios, entre quaisquer princípios entre si. O ser humano é contraditório; a vida humana é contraditória, e ela vive nessa tensão. Só para dar um exemplo dentro dos princípios do artigo 4º da Constituição, há o princípio da prevalência dos direitos humanos, e há o princípio da não intervenção. Então, como você exerce a prevalência dos direitos humanos em casos em que exista um país, um Estado, onde eles são sistematicamente violados, sem intervenção? Bom, tem que se virar.
Eu me lembro de um filme francês que eu vi uma vez, acho que se chama Lagardère, que retrata um homem do povo, lá na França, no século XVII ou XVIII, que fica amigo de um nobre; um dia eles estão almoçando e esse homem popular, sem educação, sem refinamento, digamos, está comendo com a boca aberta, falando com a boca aberta, e o nobre fala: “Olha, a gente não mastiga falando.” Aí ele pergunta: “Mas como é que eu vou falar e comer ao mesmo tempo?” E o nobre responde: “C’est comme ça, débrouillez vous.” É assim, se vira. Então é isso, existe uma tensão, eu acho que a gente está para isso, para viver e agir nessa tensão.
A própria tensão entre defesa da paz e solução pacífica de controvérsias, que são dois princípios, e o da autodeterminação. Muitas vezes, esses princípios podem estar em conflito, porque muitas vezes a autodeterminação se exerce em algum tipo de conflito, e aí, se você vai defender sistematicamente a paz, você então vai dizer “não, não pode defender essa autodeterminação”. Então, existe uma tensão aí. Eu não digo que sejam incompatíveis, esses princípios; eu digo que existe uma geometria que é complexa, uma geometria fractal, ou tridimensional, ou de múltipla dimensão, e não uma coisa plana, linear, fácil de equacionar.
Parêntese, em relação à paz. O meu convencimento, claro, paz, está lá. Agora, voltando ao tema da nação, formou-se um pouco a ideia de que a paz se atingirá pelo apagamento das nações, e eu acho que essa paz não serve. Em primeiro lugar, porque eu não sei se é verdade. Pode-se argumentar que na Europa foi mais ou menos assim, tem sido mais ou menos assim, mas eu acho que é um pouco jogar fora um dos lados da tensão. Aí não adianta, você não resolveu nada. É aquele negócio, você está jogando xadrez, você jogou fora o tabuleiro, você virou o tabuleiro. Não é esse o jogo. Acabar com o conflito entre as nações acabando com as nações não vale; eu acho que não vale. Mesmo porque, aí voltando às coisas que estão acontecendo na Europa, isso de negar a nação, negar a nacionalidade, acaba criando conflito e tensão dentro das nações.
A partir dessas considerações, eu queria discutir, não de maneira exaustiva, alguns clichês que surgem frequentemente quando a gente fala de política externa, sobretudo, aqui, de política externa brasileira. Por exemplo, a questão de “posições de Estado”. Eu já ouvi essa expressão mais de uma vez. Isso se falou logo depois que o Presidente Bolsonaro foi eleito, sobre suas ideias de política externa, que hoje a gente está tentando implementar, se falava: “não, não pode mudar isso, não pode mudar aquilo, porque o Brasil tem posições de Estado, que não podem ser mudadas”. Bem, eu acho que isso não existe; acho que não existe “posição de Estado”.
Há dois problemas nessa posição, primeiro em “posições”, depois, “de Estado”. Eu acho que o que existe, em cada momento, um país tem que, voltando lá, ouvir o seu povo e ver quais são as atitudes, posições, ações que ele deseja tomar naquele momento; sempre dentro dessa tensão estrutural, sempre dentro dessa complexidade de interpretação do que é a vontade do povo. Mas não adianta dizer, assim: “ah, o povo é uma porção de gente, eu não sei o que é.” Não. Isso também é jogar fora o tabuleiro, isso também é jogar fora a tensão, que é a tensão estrutural da vida. Às vezes, isso se consolida e dura durante um certo tempo, mas às vezes se cristaliza, e se petrifica, e vira o que se chama de uma “posição de Estado”, mas não existe isso. Há interesses permanentes do Brasil? Claro que há, mas como você interpreta esses interesses em cada momento? Em determinados momentos, eles vão ter que resultar em posições diferentes, em posições que contrariam posições anteriores, ou que modificam posições anteriores.
Mas aí se pode dizer: “ah, é difícil interpretar, como é que eu vou saber?” É, é difícil; tem que tentar; é o que a gente está fazendo. Senão não se está cumprindo a sua função. Porque é fácil a tentação da facilidade, e a tentação de fugir à tensão, de fugir à contradição, sempre é muito grande. Então, essa tentação se revela muitas vezes nesse tipo de petrificação: “ah, é uma posição de Estado, então eu não vou mudar, então eu não preciso pensar”. Não preciso pensar se ela se adapta à vontade do povo brasileiro de hoje. Está aqui, “posição de Estado!” Não. A gente tem que dissolver essa pedra e ver se ali dentro ainda tem alguma coisa que é válida ou não. E essa ideia de que você tem posições de Estado permanentes parte também dessa idolatria do Estado, em detrimento da nação. Ela esquece que a nação é que dá vida ao Estado, e o Estado é um instrumento da nação, como nós estávamos falando antes.
Outra coisa também, nesse sentido, é o discurso de que as relações são entre Estados, e não entre governos. Não existe; isso também não existe. Os governos são o ator, o instrumento da nação, nesse sentido de que, claro, alguém precisa ir lá fazer as coisas, e isso é o governo, que tem o mandato constitucional para fazer isso. Então, o que significa dizer “é um relacionamento entre Estados, e não entre governos?” Significa a petrificação. Isso defende quem quer a petrificação: você não pode expressar nada diferente de um determinado governo, quando o governo muda, porque o relacionamento é entre Estados.
Isso tem vários problemas. Tem o problema, por exemplo, de você não aproveitar as oportunidades que você tem quando existe uma afinidade entre governos; isso é uma coisa que a gente tem falado muito em relação a determinados países. Se hoje existe uma afinidade com determinado país, então nós vamos fazer determinadas coisas; estamos fazendo determinadas coisas com vários países com quem nós temos afinidades. Se amanhã mudar o governo no outro país, ou se mudar aqui (na democracia, sempre pode mudar), aí a gente fará coisas diferentes. Mas não é porque pode sempre mudar o governo e trazer posições diferentes que você vai chegar num mínimo denominador comum, com base nessa ideia de que a política se faz entre Estados e não entre governos. Porque o governo é que representa aquele momento daquele povo, daquela nação. Com todas as imperfeições que isso possa ocasionar, mas é o mandato, é assim que está previsto, é assim que as coisas têm que ser encaixadas, da maneira que for possível; portanto, com as imperfeições. Mas dizer que não existe política entre governos, só entre Estados, isso é se recusar a fazer política, isso é essa coisa: “não, eu quero o negócio bonitinho, aqui, numa folha de papel, bidimensional, que eu consiga fazer.” Não. É uma realidade tetra, penta dimensional, muito mais complexa.
Outra coisa: “posições”. A gente se acostumou muito a ver política externa como uma coleção de posições. Para cada tema, o Brasil tem uma posição. Está bem, mas essa visão é um pouco o resultado de uma petrificação, ela é uma fragmentação. Isso vinha sendo, a meu ver, o caso da nossa política externa, há muitas décadas: a progressiva tematização e fragmentação da nossa atuação. Então, você tem um tema, “ah, o Brasil tem uma posição”. Uma posição bonitinha, que todo mundo gosta, mas ninguém pensava se essas posições fazem sentido em conjunto e para onde elas levam, e se elas correspondem à vontade original e determinante do povo brasileiro.
Então, essa coisa de que o objetivo da política externa tem uma posição sobre cada coisa, as pessoas perguntam: “qual é a posição do Brasil? Qual é a posição do Itamaraty sobre tal coisa?” Está bem, em cada momento, qual é a nossa posição dentro de um contexto, dentro de um objetivo, dentro de uma negociação, dentro de uma estratégia. Mas essa ideia de que “ah, anunciou a posição, está certo, acabou, pode ir para casa, descansar”. Volta também a esse tema de buscar o conforto, de buscar escapar da contradição, escapar da tensão. Criou uma posição, está bem, e descansou. A gente está tentando diluir um pouco isso.
Multilateralismo. O Brasil como um país multilateralista. Isso também não significa nada. Dizer que um país é multilateralista não significa absolutamente nada, porque os órgãos multilaterais não são um conteúdo. Você não está dizendo nada sobre conteúdo; está dizendo, talvez, sobre o método, mas não está dizendo nada sobre o conteúdo da sua política ao dizer que é um país multilateralista. A rigor, os organismos multilaterais estão lá para os países chegarem e dizerem o que cada um acha, e ver se sai alguma coisa dali, e não como um conteúdo, como um determinante.
Aí é que está, na prática, começa a ser assim: como é que você direciona a sua atuação? Tem que ver o que está dizendo a ONU, tem que ver o que está dizendo a organização X, Y, Z. Não. Isso, mais uma vez, é voltar à zona de conforto e evitar a ideia de ter que pensar, a necessidade de pensar qual é a vontade do povo, qual é a vontade do país. Porque está pronto, lá. Hoje em dia, é engraçado, porque os organismos internacionais hoje têm posição. Não é para ter. Não é verdade? Os organismos internacionais são para os países chegarem, e a posição é a posição que, de alguma maneira, se formar de consenso entre os países. Claro que com todo respeito ao caráter, à função que esses organismos têm. A legitimidade, o prestígio que eles têm, muitas vezes, pode ser utilizado de maneira muito positiva; quando há boas lideranças nesses organismos, seus secretariados, pode ser usado de maneira positiva. Mas sem esquecer esse caráter fundamental do que é um organismo multilateral. Então, isso de dizer que o Brasil é um país multilateralista é, mais uma vez, mais a busca do conforto e do não pensar.
Já falei um pouco dessa questão dos “temas globais”. Hoje em dia, basta dizer que um tema é global e você começa a contestar as soberanias dos países, a soberania das nações. Então, clima: “ah, é um tema global.” O que isso significa? Na prática, significa que você quer fazer coisas contra a vontade desses países individuais. “Migração é um tema global.” Não sei. Pode dizer que sim ou que não. O que significa? Significa que determinadas correntes de pensamento, determinadas correntes políticas querem usar o tema da migração para limitar, para contestar a soberania dos países. Então, a gente tem que estar atento para isso. Não é dizer que os temas não tenham um caráter mundial, mas o adjetivo “global” é um rótulo que leva a uma determinada coisa. Quando você vê o rótulo na garrafa, você vê que vai estar tomando algo contra a soberania.
Outra coisa: a ideia de que existe um “deslocamento de eixos de poder”. Isso tem-se falado muito; há vinte anos se fala; sobretudo para dizer que: “não, tem um deslocamento de eixo do poder do Atlântico Norte para a Ásia”, alguma coisa assim. Bem, não sei. Quer dizer, existe, claro, uma emergência de países asiáticos, em termos de aumento de importância, diminuição de importância relativa de outros, mas, quando geralmente se fala disso, o que está por trás, também? Está por trás a ideia de que o Brasil não tem condição de atuar em nada; a gente tem que simplesmente embarcar em quem está na frente. E não é isso. Eu acho que nós temos que fazer um deslocamento dos eixos globais para nós, quer dizer, eu acho que essa é uma das ambições, hoje, do povo brasileiro, é ser mais influente, é ser mais presente no mundo. Então, essa coisa meio passiva, assim, “ah, o eixo está se deslocando, está sempre de um lado ou do outro”, não interessa se está de um lado ou do outro se nós não estamos nesse eixo. Interessa num sentido, claro, cada coisa tem uma dimensão, mas eu digo isso não por ser a favor ou contra um lado ou outro de um eixo, mas para dizer que essa ideia de que “ah, existe um deslocamento dos eixos globais, e o Brasil tem que seguir isso” é um reflexo de passividade, é um reflexo de não querer pensar, de não querer agir, é um reflexo de ter posições automáticas, de querer ficar na zona de conforto, e de não achar que nós possamos influir.
Aí vem outro clichê, também, do “não é conosco”: “Oriente Médio, Israel, Palestina não é conosco.” Tudo é conosco, tudo é conosco, porque a gente está nesse mundo; não é porque o Brasil é grande, é maior, mas acho que tudo é com todo mundo. Mas, no nosso caso, certamente. E essa ambição de sermos um país, uma nação influente no mundo passa por a gente acabar com essa coisa de que não é conosco. Ou então, o que é conosco? É somente a nossa região? É somente o comércio? É somente o quê? As ideias que estão aí em choque, em fluxo no mundo são determinantes para a nossa região também, são determinantes para a estrutura do nosso comércio, são determinantes para a capacidade de crescimento econômico. Então, se a gente não participa disso, porque “não é conosco”, não digo nem só das questões geopolíticas, mas, sobretudo, dos grandes debates de ideias, sobretudo do debate entre nacionalismo e antinacionalismo, se a gente não se coloca, não participa disso, nós estamos nos deixando influir, estamos renunciando à nossa responsabilidade de tentar influir no mundo a favor dos nossos interesses e dos nossos princípios.
Também a questão do “prestígio internacional”, falam assim: “ah, o Brasil está perdendo prestígio internacional”. Não está; não está mesmo. Eu tenho visto isso claramente ao redor do mundo, o Brasil hoje é olhado com muito mais interesse, com muito mais atenção do que era no passado, porque a gente tem hoje, eu acho, essa tentativa de se afirmar como alguém que está dizendo algo, como alguém que não está simplesmente reproduzindo o funcionamento do sistema.
Na teoria da informação, pelo pouco que eu sei, sobretudo no início da teoria da informação, com Alan Turing, ali nos anos 40, discutindo como é que você faz um computador, como é que você faz uma máquina, eu acho que é o Turing que diz o seguinte: você tem um computador que realiza determinadas operações na medida em que você vai dando capacidade de memória e de funcionamento, ele vai conseguindo realizar operações cada vez mais complexas. Mas ele precisa do que Turing chama de oráculo. O oráculo, no caso, é o ser humano. A máquina nunca vai conseguir se programar. Basicamente, eu acho que é isso (se houver algum matemático aqui, me diga se estou errado). Tem a ver com o famoso teorema da incompletude, do Gödel: um sistema matemático nunca vai ser capaz de se esgotar; sempre haverá uma incompletude, sempre haverá algo que necessita de algum tipo de agente externo. Mas, sobretudo, na questão da máquina, ela precisa de um oráculo.
Então, você tem um sistema internacional, que é, nesse sentido, uma máquina que funciona de determinada maneira, mas eu acho que o Brasil tem condições de ser um oráculo, entre outros, desse sistema. Eu acho que cada nação tem e precisa ser um oráculo, algo que influi na programação. Você não pode deixar o sistema se autoprogramar, porque se você deixa o sistema se autoprogramar, na verdade ele não está se autprogramando, é um outro oráculo que está programando esse sistema. E você não sabe se é a favor dos seus interesses ou contra, provavelmente vai ser contra. Então, esse antinacionalismo é um pouco isso hoje, é deixar que o sistema se autoprograme. E isso não existe. Tem um interesse por trás, sempre. Tem um oráculo. Não sei se é bom ou ruim. Então, nós temos que ser um desses oráculos, nós temos que influir na programação da máquina.
Basicamente, é isso. Eu queria abrir para perguntas. Obrigado.
Pergunta – Bom dia, Ministro. Meu nome é Diógenes, da turma de 2019. A minha pergunta é sobre, na sua visão, quais seriam as características fundamentais do povo brasileiro que hoje influenciam nossa política externa. Obrigado.
Ministro Ernesto Araújo – Obrigado, Diógenes. Pois é, tem aquela dificuldade de interpretar, e toda a interpretação será falha, não é? Quem sou eu, quem é qualquer pessoa para interpretar? Mas acho que é necessário. Eu acho que um grande elemento é o que você pode chamar de sentimento conservador, lato sensu, do povo brasileiro, ou seja, toda a esfera da fé, da família, da preocupação com a segurança, com a capacidade dos pais de determinar, digamos, a educação de seus filhos. Essa esfera do sentimento conservador eu acho que é muito determinante e foi muito negada ao povo brasileiro.
Eu acho que o povo brasileiro, muitas vezes, pela nossa elite, é visto de fora para dentro – eu tenho falado sobre isso –, sempre com a preocupação de “como eu vou apresentar esse povo lá fora?” Se nesses âmbitos internacionais, multilaterais, esses tipos de sentimentos não são bem vistos, então “não, eu vou dizer que o povo brasileiro é outra coisa”. Não é. Você tem que trabalhar a partir do que ele é, eu acho.
Então, eu acho que o povo brasileiro tem, basicamente, esse coração conservador. É uma palavra que, durante muito tempo, foi pejorativa; não tem porque ser. Você conserva o que é bom. Eu acho que todo mundo tem que ser conservador com o que é bom e revolucionário com o que é ruim. E tem a ver, portanto, com essa esfera da nacionalidade, do sentimento de que o Cardeal Robert Sarah fala, de apego à terra, apego às raízes.
E como você traduz isso em atuação? Claro que é difícil, mas acho que é importante que a gente tente captar esse tipo de sentimento. Por exemplo, a ideia de que o Brasil é um país multicultural. Eu acho isso totalmente equivocado, um jargão proveniente da máquina; isso não é o oráculo falando, não. O Brasil é um país profundamente monocultural. É multiétnico, claro. Mas dizer que o país é multicultural é, um pouco, querer fragmentar, querer quebrar essa unidade do povo brasileiro, que existe, eu acho que existe, profundamente. Então, a gente, às vezes, sem se dar conta, acaba repetindo lá fora coisas que são contra essa unidade do povo.
Não só o conteúdo, mas o próprio fato de o povo brasileiro se sentir como um povo, como uma unidade, que é algo bastante profundo, na história, mas cuja expressão é, ao mesmo tempo, recente. Eu acho que essa expressão de nacionalidade, de querer ser uma unidade, querer ser um povo, acho que é absolutamente determinante no que a gente está vivendo, é absolutamente determinante na eleição do Presidente Jair Bolsonaro, que é o único líder brasileiro que tem esse tipo de visão. E eu acho que é por isso que ele é tão querido pelo povo como é, porque ele é sentido como uma expressão não de posições políticas X, Y ou Z, de opções econômicas X, Y ou Z, mas da própria identidade do povo brasileiro.
Então é isso. Eu acho que respondi muito parcialmente, mas pelo menos tentei apontar num certo sentido. Obrigado.
Pergunta – Bom dia, Ministro. Mais uma vez, muito obrigado pela sua presença. O meu nome é Francisco, sou aluno aqui do Instituto Rio Branco. O senhor mencionou a independência nacional, sobre a qual versa o artigo 4º da nossa Constituição. Nos casos limites é até muito fácil determinar o que é essa independência; uma nação completamente subjugada certamente não é independente. Mas, no mundo, hoje, em que as interações (até facilitadas pelos meios técnicos, científicos e informacionais) são cada vez mais densas, mais constantes, eu gostaria de saber qual que seria o signo distintivo dessa independência nacional na atuação brasileira. Obrigado.
Ministro Ernesto Araújo – Pois é, obrigado, Francisco. Isso é uma imensa discussão, porque, como você falou, é fácil apontar a independência nesse sentido institucional, que é um dos aspectos essenciais. Claro, sobretudo nesse mundo virtual, das comunicações, fica muito mais complicado. Por outro lado, não; por outro lado – eu acho que isso é interessante –, com toda a emergência da Internet, do mundo virtual, das comunicações transfronteiriças, imaginava-se que isso seria mais um prego no caixão da nação, e está sendo o contrário, não é? Nesses últimos vinte anos, mais ou menos, depois que acabou a Internet discada, todo o crescimento das redes, que se falava que seria uma coisa que iria fragmentar as pessoas, o Facebook, etc., na verdade, o que está acontecendo é que esse universo virou um campo em que reviveu o sentimento nacional, em que reviveu a ideia da identidade, a ideia do povo. É por aí que vai; não é na grande mídia tradicional, como vocês sabem; não é no establishment; é nesse, aí nessa selva da Internet. Claro que tem perigos, como qualquer selva, mas não é porque tem perigo que você vai derrubar a selva, voltando à questão do conforto e da necessidade de conviver com as contradições, com os riscos e com os perigos. Quem não quer risco não sai da cama de manhã. Então, ali é que está, eu acho, a pujança do sentimento nacional, como de muitos outros sentimentos.
E pelo fato de que existem sentimentos negativos expressos na Internet, muita gente quer, hoje, usar isso como desculpa para cercear tudo isso. Todo esse complexo de correntes políticas e intelectuais que são contra a nação, que são contra o sentimento conservador, quer acabar com a liberdade de expressão na Internet, sob o pretexto de que tem coisa ruim na Internet. Tem, claro. Mas, por quê? Porque ali é que vive, hoje, de maneira complexa, de maneira inesperada, a questão da identidade nacional, a questão dos sentimentos conservadores.
Isso me faz lembrar também uma outra dessas questões de rotulagem. Lá atrás, em 2018 ainda, eu escrevi um texto no meu blog em que eu falava dessa questão de fake news, e eu tentava colocar o que me parece ser o fato de que justamente por causa dessa emergência conservadora, digamos, na Internet, o establishment começou então a rotular isso de fake news, justamente para denegrir isso e para conseguir manter o seu controle, que estava sendo perdido. Aí um artigo sobre mim, depois, em algum periódico, dizia que eu estava defendendo as fake news: “o Ernesto defende as fake news”. Não é. Claro que não é. Você tem que ler o texto. Mas aí parece que eu quero, sim, que as pessoas coloquem coisas falsas na Internet. O que, na verdade, provava o que eu estava falando, que é o fato de que esse universo das redes, etc., é algo que dá medo no sistema, digamos.
Também não sei se eu respondi completamente, mas dentro dessa complexidade toda que a gente está falando, e multidimensionalidade, eu tentei apontar no sentido que você perguntou.
Pergunta – Bom dia, Ministro. Muito obrigado pela aula magna. Sou o Ângelo Santos, também da turma de 2019. O senhor bem lembrou que a convergência de governos com visões próximas muitas vezes nos dá uma possibilidade de aproveitar oportunidades, mas nem sempre as circunstâncias nos levam a entreter relações com governos com os quais tenhamos alguma proximidade, alguma afinidade. A minha pergunta, então, é: nesses casos, existem oportunidades? E como nós podemos fazer para aproveitar essas oportunidades?
Ministro Ernesto Araújo – Obrigado, Ângelo. É, aí a gente teria que ver, evidentemente, caso a caso, não é? Tudo o que eu falei aqui foi, de uma maneira geral, muito em sentido abstrato, e eu reconheço que você sempre precisa descer da abstração para a concretude, de alguma maneira, e aí também sempre começam os problemas. Aí vem o problema de como você traduzir princípios e interesses uns dos outros, e como conjugar, digamos, princípios e interesses, que vai ser sempre uma coisa que de alguma maneira não encaixa.
Enfim, eu acho que é isso, tem que ver caso a caso e tentar sempre identificar, em cada relação, aquilo que é possível fazer naquele momento, aquilo que é a prioridade da outra parte, aquilo que é a prioridade sua, e ver onde você encontra um plano construtivo em comum. Quando é possível, não é? Quando a outra parte quer matar de fome o seu próprio povo, como é o caso da Venezuela, é meio difícil achar um terreno comum. Isso é outro problema, outro chavão, de: “ah, temos que achar um meio termo sempre, achar um equilíbrio.” Depende. O equilíbrio entre o genocídio e a liberdade seria um pouco de genocídio? Meio complicado.
Mas em situações normais, quando você tem menos afinidades, você tem às vezes um certo teto numa determinada relação, mas você tenta usar aquele espaço e construir uma coisa comum. Quando você tem um teto bem mais alto, você tenta aproveitar aquele teto, sem esse reflexo de que você não pode aproveitar esse teto mais alto porque o outro está mais baixo, ou que esse teto pode, depois, mudar. Não. Eu acho que tem essa questão da adaptação ao momento. Com essa visão de que a gente tem que maximizar as oportunidades dentro de uma ideia de país grande, dentro da ideia de país que quer falar com o mundo, essa ideia de país oráculo que eu acabei de falar.
Aí vem, de novo, essa tensão entre princípio e realidade. Vai ter casos em que é mais difícil, vai ter casos em que é mais fácil. Descer à realidade, no caso concreto, sempre envolve, de alguma maneira, uma aposta, um risco, assumir um determinado risco. Se você não quer correr risco, não vai fazer nada, vai-se limitar muito naquilo que você pode fazer.
Obrigado.
Pergunta – Bom dia, Ministro. Meu nome é Bruna Veríssimo, eu sou da turma agora de 2020 e eu acredito que uma das tensões que o senhor vislumbra é aquela entre a necessidade de resgatar os nossos valores, as nossas tradições e de adaptar o aparelhamento de Estado às novas demandas da sociedade brasileira. Eu queria saber, na opinião do senhor, qual seria o papel do Itamaraty na harmonização dessa tensão, ou seja, na promoção dos nossos valores e na necessária adaptação do Estado às demandas do Brasil em 2020.
Ministro Ernesto Araújo – Muito obrigado, Bruna. Eu acho que, antes de mais nada, reconhecendo que esses valores existem, e que nós, o Itamaraty, somos parte desses valores, desse povo que tem esses valores complexos, difíceis de definir, mas que somos parte. Porque eu acho que é isso, de o Itamaraty ser parte desse oceano nacional, e não como se nós fossemos uma ilha. Isso é uma coisa que, para mim, é fundamental. E eu acho que era um pouco a tendência: diante da dificuldade, justamente, de interpretar o que são os valores e de promover esses valores, a ideia de que vamos ficar de fora, como que dizendo “olha, que interessante o povo brasileiro, olha como ele é”. Não. Somos parte disso.
Antes de tudo, essa ideia do Itamaraty aberto, o Itamaraty dentro do governo. Também isso é outra coisa, como se o Itamaraty fosse uma espécie de Banco Central independente – nem o Banco Central ainda é totalmente independente; muito menos o Itamaraty. Era como se disséssemos: “O governo fala algumas coisas aqui, mas eu vou fazer as minhas posições de Estado, tradicionais, e o governo que se vire.” Isso era a ideia anterior. Então, o Itamaraty faz parte do governo, a gente senta lá, todo dia, e tem que se coordenar e estar dentro desse processo. Ainda mais um governo que tem um projeto de transformação, um projeto de regeneração do país.
Então, como você sabe, eu tenho tentado colocar essas esferas dos valores como um dos eixos fundamentais. Eu tenho procurado dividir, racionalizar um pouco tudo isso em quatro eixos, e esse eixo dos valores, que é o mais difuso, o mais difícil de administrar, como um dos eixos fundamentais. Mas isso é um desafio enorme, um desafio que vai ser de vocês, de todos nós, não é só nosso aqui, digamos, meu, do Secretário-Geral, dos secretários; é um trabalho de todos nós. E estar atentos a isso, o que as pessoas estão falando, o que as pessoas estão querendo. Eu digo: é difícil, porque a imprensa não é uma fonte para saber o que as pessoas estão querendo, o que as pessoas estão pensando; é preciso tentar absorver e traduzir isso em ações concretas. É uma questão de escuta permanente.
Por isso eu também falei aqui, outro dia, na turma que estava tomando posse, como é importante que vocês não entrem aqui deixando de ser o que vocês são lá fora, cada um de nós. Eu sei, eu passei por isso, a experiência de entrar na diplomacia, entrar no Itamaraty é algo muito denso, muito pesado; é bacana, mas é pesado na vida de cada um, e a gente tende a dizer: “não, agora eu sou diplomata”. Não, está bem, você é diplomata, mas você continua sendo você, a gente continua sendo a gente. A tendência é essa, porque é outra maneira de fugir de tensões, de fugir de contradições, ao dizer: “não, agora eu sou isso aqui”. Não. Vocês e o pessoal... eu não quero falar jovem, porque aí parece que eu não sou, mas os mais jovens têm um papel absolutamente fundamental nisso. Eu quero muito, todos nós queremos isso, que haja um fluxo maior, isso é uma coisa que eu sempre quis, desde que a gente assumiu (e é difícil, também, de fazer), que haja um fluxo grande, maior, mais profundo de ideias aqui dentro, sem tanta preocupação com qual é a posição, qual é a percepção. Eu posso estar completamente equivocado, às vezes, em coisas que eu falo, mas tudo eu faço por convicção.
Mas essa coisa de interpretar o povo, de traduzir os valores brasileiros em ação internacional, isso é complicado e exige essa tensão permanente.
Pergunta – Bom dia, Ministro. Meu nome é Bernardo, eu sou da turma de 2019 também. Eu queria agradecer a sua aula magna, em que o senhor destacou a tensão que surge do conflito aparente entre princípios constitucionais do artigo 4º. Eu queria perguntar sobre uma outra tensão que também surge, que o senhor falou, sobre, de um lado, a democracia, a soberania do povo, em que o poder emana, até metafisicamente, do povo, e, de outro lado, a estruturação da nossa democracia liberal, baseada na rigidez constitucional. Então, eu queria perguntar se, na sua visão, a gente pode considerar que os princípios constitucionais consagrados no artigo 4º, das relações internacionais, podem ser considerados posições de Estado, pelas quais a gente teria que realmente se guiar, e, no limite, se a gente interpretar que o povo, hoje, ou em qualquer período de tempo constitucional, tiver, em sua maioria, desejando, aspirando algo que não está inscrito na Constituição, a quem a gente deveria ouvir: o povo, que talvez não queira mais prevalência de direitos humanos, soberania, independência nacional, ou cooperação entre os povos, ou o constituinte de 88, que se manifestou há mais de 30 anos? Obrigado.
Ministro Ernesto Araújo – Interessante. Obrigado, Bernardo. Tem várias coisas aqui. Bom, a questão dos princípios como posições de Estado, bom, eu acho que é uma maneira de ver; eles representam uma certa rigidez; eles são um parâmetro. Mas eu acho que eles não são necessariamente as posições, eu acho que os princípios são, justamente, um balizamento e um desafio para fazer as posições.
Uma discussão, em teoria literária, é o papel das antigas regras, sobretudo em poesia, não é? E a gente vê, por exemplo, a poesia clássica, grega e latina, durante muito tempo considerada superior a tudo que se fez depois, sujeita a regras muito estritas; a poesia francesa do século XVI, do século XVII, também, regras muito estritas, não podia ter hiatos, coisas desse tipo. Depois, houve toda uma coisa de liberdade, verso livre, etc. Por que eu digo isso? Porque muita gente sustenta que a imposição de regras estimula a criatividade. Então, nesse caso eu diria que a necessidade de você se balizar num conjunto pequeno de princípios deve ser visto não como uma limitação, mas como um desafio à criatividade diplomática, no caso – pode-se dizer que não existe criatividade diplomática, mas eu acho que existe; tem que existir. As regras – o verso tem que ter dez sílabas, tem que rimar, não pode ter hiato, etc. – dão o parâmetro para criar, enquanto que, às vezes, a liberdade te colocaria num magma que não seria tão propenso. Mais uma vez, a questão da contradição; conviver com a contradição, conviver com a tensão. O balizamento por princípios é necessário para manter essa tensão criativa. Se a gente pudesse fazer qualquer coisa, não teria esse desafio da criatividade. Isso em tudo, e eu acho que se aplica nesse caso específico.
Talvez extrapolando, talvez toda a Constituição (eu não quero teorizar demais aqui), mas uma Constituição é necessária para isso, para permitir a atuação livre e criativa da sociedade dentro dessa tensão dialética, de alguma maneira. Se você tivesse uma Constituição que muda a cada momento, isso talvez não fosse, não geraria essa necessidade de um repensar. É a necessidade da sociedade de se adaptar a cada momento à sua Constituição que gera o dinamismo. É claro que, num caso limite, você pode imaginar uma reforma constitucional, um plebiscito, como os países às vezes fazem, como o Chile está fazendo, que modifique tudo por causa de uma vontade específica, mas essa vontade, no dia seguinte, já vai estar antiquada, então já vai precisar fazer uma nova Constituição.
Quando eu morei nos Estados Unidos, que é um país que vive muito a questão da Constituição no debate político, a cada dia, justamente porque é uma Constituição antiga, pouco modificada, muita gente discute, por exemplo, a questão do Colégio Eleitoral – que é, praticamente, o único grande elemento da Constituição americana que a nossa Constituição republicana não pegou –; dizem: “ah, o Colégio Eleitoral é uma coisa antiquada, uma coisa que foi criada por aquelas elites do final do século XVIII.” Está bem, eu não quero defender ou não, mas eu acho que é um exemplo muito claro, porque é uma Constituição que é, talvez, uma das mais antigas, e é tão influente sobre a nossa. Então, a ideia de que cada geração vai reescrever a Constituição, porque são coisas que são antiquadas, acho que esse ser antiquado é que muitas vezes nos joga para frente. Como a ideia de independência nacional, que está na nossa Constituição, que é uma ideia antiquada, de certa forma, como eu falei no começo. Como a ideia do poder que emana do povo. Hoje, ninguém escreveria isso, se fossem fazer a Constituição hoje, com as nossas ideias de hoje. Existe porque, na Constituição anterior, já se falava que o poder emana do povo; eu não sei de quando vem essa expressão, mas isso é uma sobrevivência. Hoje, se fossem fazer uma Constituição, assim, “politicamente correta”, não iam falar de poder que emana do povo.
Claro, isso é um debate muito vivo hoje, no Brasil, toda a questão entre o Executivo e o Congresso, todo esse impulso popular de mudança, de transformação nacional, que às vezes sente que determinadas atuações são contra; mas acho que mesmo esse impulso não se queixa das regras existentes, no caso, da Constituição; ele se queixa da aplicação dessas regras, mas não das regras em si. É um impulso muito vivo que a gente está tendo hoje, no Brasil, e as pessoas estão realmente lendo a Constituição, falando: “vem cá, onde diz isso? Onde diz aquilo?” Claro que é uma questão muito longa, portanto, cria ainda mais complexidade.
Mas eu acho que o nosso governo é muito isso, é um esforço, uma transformação nacional muito profunda, muito grande, sem absolutamente nenhuma, zero contestação do nosso quadro constitucional; vive inteiramente dentro do nosso quadro constitucional. Isso de dizerem, às vezes, “ah, ameaça à democracia”, de jeito nenhum! De jeito nenhum! Não existe nenhum elemento no nosso governo que questione qualquer regra ou elemento constitucional, absolutamente!
Então, é isso, é tentar fazer dar sentido dentro das regras existentes, nessa ideia de que a criatividade vem, justamente, do respeito às regras. Acho que é um pouco isso. Obrigado.
Embaixadora Maria Stela Pompeu Brasil Frota – Ministro, eu acho que o senhor hoje já nos deu uma aula excelente. Eu queria agradecer ao senhor, não como Diretora do Instituto, mas como uma aluna, hoje. Hoje, eu me sentei, aqui, como uma aluna. E queria agradecer ao senhor, que já esteve aqui esse tempo longo, que deu para os outros alunos essa aula magnífica. Achei interessantíssima essa redução que o senhor fez ao chegar à máquina do oráculo, e até me lembrei de que existe uma empresa americana exatamente dessa área que se chama Oracle. Então, realmente levou a compreendermos tudo que o senhor colocou, e eu acho que o seu tempo, que obviamente é muito mais importante do que o de qualquer um de nós que estamos aqui, o senhor já nos deu uma enorme parte do seu tempo de hoje. Então, em nome de todos os alunos, de todos os colegas, de todos que estamos aqui, e como aluna, repito, eu queria agradecer muito a sua presença e dizer que, obviamente, a casa toda é do senhor, mas essa aqui é sua quando o senhor desejar vir nos dar mais uma dessas suas apresentações que só engrandecem a todos nós. Muito obrigada.
Ministro Ernesto Araújo – Eu fico muito feliz com as suas palavras, realmente me tocam muito. Muito obrigado. Obrigado a todos também. Eu queria dizer que guardem as perguntas que tiverem para, na próxima oportunidade, que espero que seja em breve, de vir aqui e poder continuar. Obrigado por destacar esse ponto. Eu acho que é isso, se pudesse resumir assim, eu acho que o povo brasileiro tem que ser o oráculo da nossa política externa, basicamente é isso.
Muito obrigado, Embaixadora. Obrigado a todos.
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* Transcrição da aula magna do ministro das Relações Exteriores, embaixador Ernesto Araújo, para as turmas de alunos do Instituto Rio Branco de 2019-2020 e 2020-2021, realizada em 6 de março de 2020. O vídeo da aula e do debate estão disponíveis no canal da FUNAG no YouTube.