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GESTÃO PÚBLICA
Os tempos demandam uma nova administração pública
“Hoje, a única constante é a mudança, e o ritmo da mudança está aumentando”, afirma Peter H. Diamandis, no prefácio do livro Organizações
Exponenciais. A sentença acima, formulada por uma das maiores lideranças da atualidade, destaca uma característica marcante do nosso
tempo. Vivemos em uma sociedade global que atravessa um processo de evolução tecnológica sem precedentes, o que traz grandes desafios para indivíduos e organizações públicas e privadas ao redor do mundo.
Nas duas últimas décadas, impulsionadas pelo avanço de novas tecnologias, mudanças profundas aconteceram na dinâmica social, impactando diretamente a maneira como vivemos, interagimos, trabalhamos, aprendemos e nos divertimos. Diante desse cenário, toda e qualquer organização que quiser ter sucesso e atingir seus objetivos precisará acompanhar essas rápidas transformações e ser capaz de se reinventar.
Não é diferente com a administração pública. Chegou a hora da sociedade brasileira refletir sobre o tema e se questionar: a administração pública brasileira, enquanto organização, está preparada para enfrentar esse mundo cambiante e acelerado? É possível projetar que o sistema desenhado na Constituição de 1988 dará conta dos desafios que teremos nos próximos anos? O modelo de gestão de pessoas que temos hoje traz as características necessárias para acompanhar essas mudanças e entregar um serviço público de qualidade para a população brasileira?
O tema é complexo e, bem por isso, não há pretensão de esgotá-lo neste artigo. Assim, optou-se por fazer um recorte e tratar de um ponto central, que representa um grande desafio para a administração pública brasileira de hoje e de amanhã, a saber, o tipo de vínculo que o Estado estabelece com os servidores públicos. O modelo de vínculo aplicado ao servidor público brasileiro foi estabelecido em 1988, com a promulgação da Constituição Federal. Desta forma, o padrão de contratação, a natureza jurídica do vínculo, as hipóteses de desligamento e outras regras relacionadas foram definidas trinta e dois anos atrás. À exceção da EC nº 19 de 1998, que trouxe alterações pontuais como a ampliação do estágio probatório e a inclusão da insuficiência de desempenho como hipótese de desligamento do servidor público, o sistema proposto permanece o mesmo até os dias de hoje.
Em seu art. 39, caput, a Constituição Federal estabeleceu que cada um dos entes da federação terá regime jurídico único para os servidores públicos permanentes. Com isso, a regra foi a instituição do regime estatutário para todos os servidores públicos, independentemente das funções ou atividades por eles desempenhadas. Tal regime se caracteriza especialmente pelo seguinte:
I. conjunto de regras próprias que regulam a relação jurídica funcional entre servidor e Estado;
II. investidura no cargo através de concurso público de provas ou de provas
e títulos;
III. estabilidade após 3 anos de estágio probatório;
IV. desligamento apenas em duas hipóteses: sentença judicial transitada
em julgado e processo administrativo (a terceira hipótese, procedimento de avaliação periódica de desempenho, jamais foi regulamentada e,
portanto, não é aplicada).
Nesse modelo, todos os servidores possuem o mesmo vínculo e são, de maneira geral, regidos pelas mesmas regras. Apenas uma fração residual da força de trabalho, constituída pelos ocupantes de cargos em comissão de livre nomeação e exoneração e pelos contratados temporários, nas limitadas hipóteses de excepcional interesse público, foge desse padrão. Hoje, no Governo Federal, os servidores efetivos regidos pelo regime jurídico único representam 84,3% da força de trabalho; os cargos em comissão de livre nomeação e exoneração 0,92%; os temporários 13,05% e os celetistas 1,73% (este último grupo, um resíduo de casos excepcionais).
Das características do atual modelo, a que mais preocupa e se mostra dissonante do momento histórico que vivemos é o longo, inflexível e inalterável
compromisso que a administração firma com o servidor a cada nomeação que é realizada. Levantamento feito no executivo civil federal revela que, em média, um servidor público (considerando período de atividade, inatividade e pensão) permanece na folha de pagamento da União durante 59 anos. São quase seis décadas de vínculo, em que a população brasileira, geração após geração, arca com os custos.
Mesmo que a atividade desempenhada por aquele servidor se torne obsoleta, mesmo que as demandas da sociedade mudem, não há espaço para ajustes, o vínculo é perene e indissolúvel. A situação é especialmente dramática, pois o gestor que autoriza hoje uma nomeação em cargo efetivo estabelece um compromisso de décadas, que não pode ser alterado, a não ser no caso de o servidor cometer um crime ou uma infração disciplinar grave. O pior é que, em um mundo que muda cada vez mais rápido, o gestor está contratando um perfil profissional que talvez não seja mais relevante daqui a 5 ou 10 anos. Em outras palavras, União, Estados e Municípios estão firmando compromissos indissolúveis por décadas sem saber se precisarão daqueles perfis profissionais nos próximos anos.
A estabilidade no serviço público tem uma função relevante, especialmente para aquelas posições que são típicas da atuação estatal, como fiscalização
e segurança, em que a natureza da atividade demanda autonomia e proteção. Nesses casos, a estabilidade se mostra verdadeira salvaguarda e peça importante para a proteção do Estado e da população. E isso deve ser preservado. É importante destacar, porém, que a estabilidade não pode ser um escudo para pessoas descomprometidas e que o grau de estabilidade pode e deve variar, dependendo da natureza da atividade desempenhada pelo servidor. Mais, quando a estabilidade mantém nos quadros públicos perfis profissionais que se tornaram obsoletos ou que não atendem mais às demandas da população, ela deixa de atender aos interesses da sociedade e passa a atender apenas a interesses individuais. E isso deve ser alterado.
Ainda mais em uma sociedade que muda cada vez mais rápido. Em artigo publicado pela Harvard Business Review, com o título Tours of Duty: The
New Employer-Employee Compact, Reid Hoffmann, Ben Casnocha e Chris Yeh destacam que, com a globalização e a chegada da era da informação, o padrão antigo de estabilidade que caracterizava as relações de trabalho no século XX foi substituído por mudanças rápidas e imprevisíveis. A estabilidade de décadas passadas, presente inclusive na iniciativa privada, não se mostra mais adequada na dinâmica atual de transformações aceleradas. Agora, as palavras de ordem são adaptabilidade, agilidade e empreendedorismo. Nesse sentido, os autores afirmam: “O tempo chegou, nós acreditamos, para um novo contrato entre empregador e empregado. Você não pode ter uma companhia ágil se você dá aos empregados contratos de uma vida toda”.
De fato, a literatura contemporânea de gestão já alerta, há alguns anos, que organizações rígidas, com estruturas pesadas e pouca capacidade de adaptação estão destinadas a ter muitas dificuldades para alcançar seus objetivos, a perder relevância ou deixar de existir. Nessa linha, Sandro Magaldi e José Salibi Neto afirmam, em “Gestão do Amanhã: tudo o que você precisa saber sobre gestão, inovação e liderança para vencer na 4ª revolução industrial”, que “qualquer companhia desenhada para ter sucesso no século XX está destinada a fracassar no século XXI”.
Falamos do setor privado, mas o princípio serve para o setor público. Sim, é verdade que possuem características distintas, mas também é verdade que a dinâmica social e os parâmetros de gestão, com os devidos ajustes, impactam e se aplicam tanto ao setor privado quanto ao púbico. É a constatação de Peter H. Diamandis e Steven Kotler, no seu mais recente livro “The Future Is Faster Than You Think”: “Infelizmente, as organizações estabelecidas terão dificuldade em acompanhar o ritmo. Nossas maiores empresas e agências governamentais foram projetadas em outro século, para fins de segurança e estabilidade. Feito para durar, como diz o ditado. Elas não foram construídas para resistir a mudanças radicais e rápidas.
É por isso que, de acordo com Richard Foster, de Yale, 40 por cento das empresas Fortune 500 de hoje terão desaparecido em dez anos, substituídas, na maior parte, por novas empresas de quem ainda não ouvimos falar.” É certo que diversas características do sistema são positivas e merecem ser
mantidas, como o ingresso por processo competitivo, meritocrático e impessoal (concurso público). Mas também é certo que outras características do sistema estão defasadas e merecem ser revisadas. Não para desconstruir ou enfraquecer o serviço público, mas sim para atualizá-lo, aperfeiçoá-lo e fortalecê-lo. Enganam-se aqueles que acham que manter o sistema como está, insistindo que é desnecessária qualquer revisão, é valorizá-lo.
Pelo contrário, quanto mais tempo passa, quanto mais o sistema se torna anacrônico e ultrapassado, mais problemas vão surgindo e maior é a dificuldade de atender às expectativas da população. O resultado é inevitável, o serviço público se desgasta, gera frustração e, por consequência, se enfraquece.
É com esse espírito e com olhar para o futuro que precisamos de uma ampla e profunda reforma administrativa. É com a compreensão dos movimentos
que estão acontecendo em todo o mundo e nas mudanças tecnológicas e de gestão pelas quais estamos passando que precisamos construir juntos uma nova administração pública. O serviço público brasileiro, a organização responsável pelo atendimento das demandas mais sensíveis da população, precisa ser revisitado, em especial no tocante ao sistema de vínculo.
Hoje, organizações que almejam ter sucesso, sejam públicas ou privadas, precisam de agilidade, flexibilidade, simplicidade, capacidade de adaptação e inovação, características que infelizmente não representam o modelo atual da administração pública brasileira. É preciso acelerar o passo e preparar nossa gestão pública para o futuro. A proposta de emenda à constituição (PEC 32) apresentada pelo Governo Federal neste ano é o primeiro grande passo nesse sentido. Com ela, o país começa uma jornada de modernização do serviço público, alterando a sua estrutura geral e substituindo o regime jurídico único, anacrônico e disfuncional, por um sistema de vínculos múltiplos, atual e flexível. No lugar de um único tipo de vínculo, aplicado a toda e qualquer atividade, a proposta traz cinco vínculos distintos (cargo típico de Estado, cargo com vínculo por prazo indeterminado, cargo de liderança e assessoramento, vínculo por prazo determinado e vínculo de experiência) que respeitarão a natureza das atividades desempenhadas pelo servidor e
trarão a necessária capacidade de adaptação para a administração.
A PEC também traz outras mudanças estruturais importantes e propõe a extinção de vantagens distorcidas e distantes da realidade dos demais brasileiros. No entanto, como referido anteriormente, ela representa apenas o primeiro passo. Depois dele, outros deverão ser dados. É preciso regulamentar a nova administração pública, detalhando seus contornos, e o desligamento por insuficiência de desempenho, pendente desde 1998. Também é preciso conduzir outros ajustes legais e infralegais, bem como implementar diversos aprimoramentos gerenciais.
Realizar esse trabalho não é tarefa singela. Reformas administrativas são projetos de fôlego, que demandam muito esforço e comprometimento. Poucas pautas, no entanto, são mais importantes e necessárias para o país. Se queremos ter um serviço público melhor, capaz de atender às necessidades da população, especialmente aquela mais vulnerável, precisamos de uma nova administração pública. Se queremos ter um serviço público que caiba no bolso dos brasileiros e não comprometa as contas públicas, precisamos de uma nova administração pública.
Os tempos demandam mudança. Está em nossas mãos realizar esse movimento. Temos excelentes profissionais no serviço público, basta construir um sistema melhor e os resultados virão rapidamente. A realidade está posta. Devemos ser capazes de encará-la de frente, pois como dizia a escritora russo-americana Ayn Rand “Você pode ignorar a realidade, mas não pode evitar as consequências de ignorar a realidade”. Não vamos ignorar a realidade, vamos encontrar convergências, dialogar e construir uma nova administração pública, alinhada com nosso tempo, preparada para o futuro, ágil, eficiente e justa para todos.
Artigo do secretário de Gestão de Pessoas do Ministério da Economia, Wagner Lenhart, publicado originalmente na revista Dom Contexto, publicação da Fundação Dom Cabral (FDC).