Relatos e Historias
RELATOS DE QUEM CUIDA
Minha experiência no HU-Furg durante as enchentes que assolaram o Rio Grande do Sul
Sou Daniele Mesquita, médica obstetra da Rede Ebserh, lotada no HU-Furg em Rio Grande, extremo sul do Rio Grande do Sul. Quero compartilhar como foi trabalhar na situação de calamidade ocasionada pelas inundações que ocorreram quando a Lagoa dos Patos invadiu parte da cidade, obrigando o HU-Furg a fechar suas portas e transferir os cerca de 100 pacientes, bem como suspender todos os atendimentos, consultas, exames e cirurgias.
A Dra. Tânia, chefe da Unidade da Mulher, tentava trazer calma para a equipe, antecipando os acontecimentos e colocando novas escalas para que houvesse um mínimo de previsibilidade. Porém, em uma situação de emergência, tudo mudava todo dia. Mas a Dra. Tânia sempre forte (ou ao menos parecendo ser) resolvia problemas burocráticos, escalas, agendas e ainda cuidava da nossa saúde mental. Lembro, no início de maio, num dos primeiros plantões em que a água estava subindo, de ligar para ela em meio a uma crise de ansiedade. Ela me disse, com firmeza na voz: “Todos os colaboradores vão sair na troca de plantão e em segurança”. Acalmei-me.
Já tínhamos vivenciado situação parecida na pandemia, em que não havia muitas incertezas, mas agora era algo nunca visto, porque poderíamos ter que deixar o HU para trás. No primeiro momento, houve um pânico generalizado. Faço parte da equipe que atende o Alto Risco e eu sabia que várias gestantes estavam espalhadas na cidade, sem assistência.
Então veio a ideia de montar o Ambulatório de Pré-Natal de Alto Risco (PNAR) no Campus Carreiros da Universidade, distante 10 quilômetros do HU, em uma área sem risco de inundações. Quando cheguei lá, confirmei o que eu já sabia: nossa equipe é tudo. Passei na casa de duas residentes e fomos abaixo de chuva. Chegamos e à nossa espera estava a sempre atuante enfermeira Jeane, organizando e resolvendo toda a burocracia do pré-natal. Nossas técnicas de Enfermagem, triando e fazendo o primeiro atendimento das gestantes; a assistente social, Gabriela, amparando-nos e, inclusive, orientando as pacientes sobre os fluxos e até sobre os benefícios governamentais; as secretárias do HU, computadores à disposição, nossos formulários, receituários, prontuários, um aparelho de MAP para monitorização dos bebês e todo um fluxo montado para pedido de exames.
Além disso, a Dra. Tânia, que fez questão de estar lá para verificar que tudo estava andando, improvisado sim, mas um improviso tão bom, que me deu gás para uma agenda inteira de pré-natal. Até café quentinho tinha para a equipe. Aqueceu também o coração. Estávamos ali para ajudar e realmente iríamos conseguir fazer acontecer.
Desafios e Solidariedade
Mais mudanças. A equipe do Centro Obstétrico do HU-Furg iria se separar, para somar em outras frentes. A chefia do HU uniu-se à chefia da Santa Casa de Rio Grande para tornar a Maternidade mais forte, que foi deslocada para o Hospital de Cardiologia, ligado à Santa Casa.
Com apenas seis leitos disponíveis em comparação aos mais de 40 que a cidade costumava oferecer, a equipe enfrentou momentos de caos. Foi difícil para nós e para as pacientes. Estamos acostumados a trabalhar num Hospital de referência, com uma UTI Neonatal ao nosso lado, transferências só em último caso e, durante o mês de maio, transferências foram a nossa rotina. Nunca foi uma opção assistir à calamidade sem fazer nada. As gestantes são sempre nossa prioridade.
Fiz plantão na Santa Casa, no Hospital de Cardiologia, numa madrugada muito fria e encontrei uma equipe de Enfermagem engajada, comprometida e trabalhamos em conjunto em prol das pacientes, com superlotação, e eu nunca ouvi que não daria. Tinha que dar. Também tivemos colegas no Hospital Escola da UFPel, gerido pela Ebserh. Eu não fui para lá, mas foi muito importante saber que tinha um de nós atuando em Pelotas para receber várias das nossas muitas transferências. Colegas pelotenses, obrigada.
Experiência na UPA Junção
Estive escalada também na Unidade de Pronto Atendimento (UPA) Junção. Confesso agora que fui no primeiro dia sem acreditar que eu estava indo trabalhar como obstetra numa UPA. O que eu iria fazer lá? Que estrutura tem uma UPA para a Obstetrícia? Eram algumas das perguntas que eu me fazia. Logo nas primeiras horas entendi o que precisávamos fazer. As gestantes estavam sem ter para onde correr e com a Santa Casa lotada, a UPA era uma esperança de encontrar um obstetra e ter uma avaliação especializada do caso.
A equipe de Enfermagem da UPA, representada pelo chefe Marcelo Gouvea, é surreal. Não tive só ajuda e apoio para suporte e transferência de gestantes, tive escuta, acolhimento, tive trabalho lado a lado. Encontrei uma legião de médicos formados pela nossa Furg como plantonistas, chamando-me de “Prof” e atuando em emergências clínicas brilhantemente.
No segundo dia, ganhamos um parto na UPA. Uma gestante do PNAR chegou sem tempo de transferir. Foi lindo ver a emoção da equipe da UPA em participar de um parto, claramente não é a rotina deles. Foi lindo ver que, em meio ao completo caos, tivemos um carimbo de placenta para essa gestante levar de recordação e mais lindo ainda ouvir, após o choro do bebê, palmas atrás das cortinas em que estávamos. Nunca tinha visto um parto aplaudido. Foi um grande e emocionante acontecimento. Um por todos e todos pelos pacientes.
E assim, concluo essa minha experiência agradecendo tantos exemplos de competência, empatia, resiliência e paciência. A união do HU-Furg/Ebserh, Secretaria de Município da Saúde (SMS) e Santa Casa do Rio Grande em prol dos pacientes foi inesquecível. Meu maior desejo é voltar para o HU, minha zona de conforto. Dizem que todo progresso ocorre fora da zona de conforto, mas, em 2024, a equipe obstétrica já passou por bastante progresso. Que voltemos agora à nossa casa - o que está acontecendo aos poucos, nesse início de junho -, trazendo conosco a certeza de que a união faz a força e que juntos novamente, seremos ainda mais fortes.
Sobre a Ebserh
O HU-Furg faz parte da Rede Ebserh desde 2015. Vinculada ao Ministério da Educação (MEC), a Ebserh foi criada em 2011 e, atualmente, administra 45 hospitais universitários federais, apoiando e impulsionando suas atividades por meio de uma gestão de excelência. Como hospitais vinculados a universidades federais, essas unidades têm características específicas: atendem pacientes do Sistema Único de Saúde (SUS) ao mesmo tempo que apoiam a formação de profissionais de saúde e o desenvolvimento de pesquisas e inovação.