Notícias
DESAFIOS INVISÍVEIS
Mais que altos e baixos
O tratamento para o transtorno bipolar envolve uma abordagem multiprofissional, buscando o equilíbrio e a qualidade de vida dos pacientes. Imagem ilustrativa: Canva
Nesta reportagem, você vai ver:
Quando o diagnóstico muda tudo
Brasília (DF) - O ano era 2012. Valney Mello trabalhava como corretor de imóveis em uma imobiliária recém-instalada na cidade quando passou por uma reviravolta inesperada. “De uma hora para outra, passei a ter uma atividade cerebral bastante intensa. Muito falante, sem sono e sem limite de horário de trabalho”, lembra. A princípio, tudo parecia fruto do estresse, mas os sinais pioraram e chamaram a atenção da esposa, que, com apoio de amigos, o levou até uma urgência psiquiátrica do Sistema Único de Saúde (SUS). Lá, após avaliação de uma médica que ele descreve como “competente e humana”, veio o diagnóstico: transtorno bipolar. Internado por 60 dias no Hospital Universitário Onofre Lopes (Huol-UFRN), Valney iniciou o tratamento que mudaria sua relação com a vida.
Para que mais pessoas compreendam o que é essa condição, que afeta milhões de pessoas em todo o mundo, foi criado o Dia Mundial do Transtorno Bipolar, celebrado em 30 de março. A data marca o nascimento do pintor Vincent van Gogh, diagnosticado postumamente com o transtorno, e visa ampliar o conhecimento, combater o estigma e promover o acesso ao cuidado. A Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (Ebserh) – estatal vinculada ao Ministério da Educação que administra 45 hospitais universitários federais – oferece, em diversas unidades, serviços especializados no acompanhamento de pessoas com o transtorno. Especialistas da Rede comentam os avanços, os desafios e as possibilidades de cuidado.

Quando o diagnóstico muda tudo
A história de Valney não é incomum. Segundo Emerson Arcoverde, psiquiatra do Huol, um dos principais entraves no diagnóstico é a semelhança com outras condições psiquiátricas. “Nos casos de maior gravidade, podem ocorrer sintomas psicóticos, o que pode confundir com esquizofrenia. Isso atrasa o diagnóstico e, consequentemente, o início do tratamento adequado”, afirma. Para ele, a suspeita diagnóstica deve ser considerada em pacientes jovens com depressão grave, especialmente se houver histórico familiar de transtorno mental grave ou sintomas anteriores de euforia. Emerson explica que os primeiros sinais costumam surgir entre a adolescência e o início da vida adulta, mas o diagnóstico pode demorar até dez anos para ser feito.
A origem do transtorno bipolar envolve uma combinação de fatores. “É um dos transtornos mais relacionados com genética, tendo um risco muito alto da doença de se manifestar em pessoas com histórico familiar de bipolaridade ou de suicídio”, explica Emerson. Ele também aponta que traumas precoces, negligência ou vivências de violência na infância aumentam consideravelmente o risco.
“Levo o tratamento muito a sério”, afirma Valney, que desde 2012 segue com acompanhamento trimestral no Huol. Ele também participou de terapia em grupo, conduzida por profissionais de diferentes especialidades. Segundo ele, essa rotina de cuidado foi fundamental para manter a estabilidade e evitar novas crises.
Para a psiquiatra Paula Dione, do Hospital Universitário Professor Edgard Santos (Hupes-UFBA), a adesão ao tratamento ao longo da vida depende de uma boa relação terapêutica. “Nosso investimento é em fazer um bom vínculo com o paciente, uma boa aliança terapêutica com a família, educar sobre a condição e seu tratamento para aumentar a motivação”, explica. Ela ressalta que, com muita frequência, recaídas estão associadas a conflitos interpessoais e o envolvimento dos familiares é essencial.
“Hoje tenho mais responsabilidade comigo mesmo. Evito situações que podem me levar ao estresse novamente. Curto muito minha família, pratico atividades esportivas, ainda trabalho no mercado imobiliário e participo de atividades religiosas em minha paróquia”, conta Valney.
O peso do preconceito
Apesar de sua vivência positiva, Valney reconhece que parte de sua tranquilidade em relação ao preconceito decorre do fato de nem todos saberem sobre seu diagnóstico. “Não apresentei mais nenhum episódio de crise depois disso”, diz. No entanto, para muitas pessoas com o transtorno, a realidade é marcada por estigmas e desinformação.
Segundo Francisco Pascoal Jr., psiquiatra do Hospital Universitário Gaffrée e Guinle (HUGG-Unirio), um dos maiores mitos é a ideia de que pessoas com transtorno bipolar são agressivas ou perigosas. “A maioria não tem comportamento violento. Quando estão em crise, podem agir de forma impulsiva, mas isso não significa que representam risco para os outros”, afirma. Ele também alerta para a confusão comum entre bipolaridade e mudanças rápidas de humor: os episódios são duradouros e intensos, podendo comprometer o trabalho, os relacionamentos e a vida social.
Com o tema da campanha deste ano sendo #BipolarStrong, a proposta é dar visibilidade à força e à resiliência das pessoas que convivem com o transtorno. Paula reforça que a chave para isso está na forma como a sociedade trata o assunto. “Falar de maneira qualificada sobre o assunto, ampliar o debate de qualidade”, resume.
Caminhos para o equilíbrio
O tratamento evoluiu muito nos últimos anos, com novas opções farmacológicas e terapias complementares. Francisco explica que, além do tradicional lítio, outros estabilizadores de humor como lamotrigina e valproato de sódio estão em uso, assim como antipsicóticos de segunda geração e técnicas como estimulação magnética transcraniana. A psicoterapia também tem papel essencial, ajudando o paciente a identificar gatilhos emocionais e manter a adesão ao tratamento.
No Huol, onde Valney segue seu acompanhamento, há dois ambulatórios voltados especificamente para o transtorno bipolar: um para casos mais instáveis, outro para pacientes estáveis há mais de seis meses. São cerca de 250 pacientes acompanhados por equipes multiprofissionais, incluindo psiquiatras, psicólogos, farmacêuticos e enfermeiros. Atualmente, o Hospital também conduz uma pesquisa que investiga o uso de toxina botulínica como tratamento adjuvante para depressão bipolar. O acesso é feito por meio de encaminhamento via unidade de saúde ou interconsulta interna.
Além do Huol-UFRN, a Rede Ebserh oferece assistência especializada em diferentes regiões do país. No HUGG-Unirio, o atendimento é ambulatorial, com foco em prevenção de crises, suporte psicossocial e monitoramento clínico. Já no Hupes-UFBA, o Centro de Estudos e Tratamento do Humor e Afetividade (CETHA), funciona com enfoque exclusivo nos transtornos do humor. O acesso se dá por meio de triagens agendadas no Ambulatório Magalhães Neto.
Sobre a Ebserh
Vinculada ao Ministério da Educação (MEC), a Ebserh foi criada em 2011 e, atualmente, administra 45 hospitais universitários federais, apoiando e impulsionando suas atividades por meio de uma gestão de excelência. Como hospitais vinculados a universidades federais, essas unidades têm características específicas: atendem pacientes do Sistema Único de Saúde (SUS) ao mesmo tempo que apoiam a formação de profissionais de saúde e o desenvolvimento de pesquisas e inovação.
Por Felipe Monteiro, com revisão de Andreia Pires
Coordenadoria de Comunicação Social da Rede Ebserh