Psicologia das florestas: Saúde mental na perspectiva kanhgág
Por Rejane Paféj kanhgág, neta de Domingas, filha de Maria Kairu, mãe de Kafág e filha da floresta.
Psicóloga, mestre em psicologia social e institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Doutoranda em Antropologia pela UFRGS
Moradora da aldeia indígena Sede Nonoai/RS.
Apresentamos a seguir trecho do livro inédito de Rejane Paféj kanhgág, a ser lançado pela Revista Pihhy.
Não deixe de ler e conhecer esta reflexão fundamental sobre saúde!
Não deixe de acessar o conteúdo integral no livro Psicologia das Florestas, em breve!
Enquanto mulher indígena, corpo-ciência, redijo nossa história, agora contada e escrita a partir dos nossos saberes, contendo temas de saúde e de educação.
Não somos da floresta, somos a floresta, pedindo socorro.
Trago a importância dos nossos modos de ser e viver para uma saúde mental, espiritual e do corpo-território.
Trago também problemas que importam na cosmopercepção kanhgág para o espaço acadêmico, como forma de também trazer à tona mundos, saberes e modos de existir pouco percebidos nesse espaço, ameaçados pela lógica colonial, promovendo, assim, uma ruptura política-ética-estética-cognitiva no cotidiano acadêmico e buscando articular relações de apoio às lutas Kanhgág por seus territórios ancestrais em processo de retomada.
Os velhos, nossos kofá, têm uma visão simples e certeira a respeito do que acontece com a humanidade, sobre o motivo de reexistir a tanta violência, brutalidade, indiferença um com o outro e ausência de fraternidade.
Os anciãos dizem que o ser humano se afastou do próprio coração!
A civilização seguiu por um caminho errado, sem coração, o caminho do ego, da competição, da hierarquia e não da compaixão.
Levando as pessoas a estarem cada vez mais distantes do próprio coração e apartadas da natureza. Esse afastamento fez com que as pessoas esquecessem quem, essencialmente, elas são.
Quando olhamos para uma floresta, muitas vezes vemos apenas o que está à superfície: troncos, folhas, galhos entrelaçados. No entanto, por trás dessa aparente simplicidade, há um mundo complexo e interconectado que merece nossa atenção.
O colapso climático está aí, estamos, literalmente, a lutar pelas nossas vidas e a pandemia nos mostrou o total desequilíbrio onde estamos vivendo.
As populações tradicionais são essenciais para deter a mudança climática, as demarcações de terras é a saída para barrar a crise climática.
Povos indígenas representam menos de 1% da população brasileira e 5% da população mundial, mas são responsáveis pela preservação de 80% da biodiversidade presente em seus territórios.
Nossos corpos se tornam instrumentos de luta e resistência!
Ao redor do fogo vivenciamos saúde e educação, ao redor do fogo lembramos do nosso território-umbilical, onde tudo está conectado, corpo, mente, território e espiritualidade, a floresta é nosso corpo, nosso corpo é território.
Nossa saúde depende da saúde das florestas, ouvimos as vozes dos jagrês (guias da floresta).
Não somos da floresta, somos a floresta, pedindo socorro.
Quando nossas crianças nascem, enterramos o umbigo na porta da nossa casa, para que os espíritos dos nossos filhos não sejam capturados pelos vênh-kuprîg kórég (espíritos ruins).
O vínculo com o território é tão forte que quando a pessoa morre, ela precisa voltar para sua terra de origem, por isso o território para nós é onde estão enterrados nossos umbigos.
A quebra desse princípio pode causar sofrimento patológico, como dizem os não indígenas. (Carvalho, 2020).
O aquecimento global vai nos matar, “desastres naturais” não são naturais, pois nós estamos ouvindo todo esse grito de socorro da mãe sagrada, nossa mãe nãn gâ (Mãe Terra) está adoecendo dia a dia.
Nossos territórios sofrem, diretamente e indiretamente, com os impactos, nossas comidas tradicionais submersas pelo barro, minério e agrotóxico, nossos animais morrendo pelas queimadas e de fome, e os espíritos das florestas, nossos jagrês, segurando o céu para não cair em nossas cabeças.
Alguns impactos desse desequilíbrio climático já podem ser vistos no Brasil todo.
A região Sul e parte do Nordeste sofrem com chuvas intensas, que deixam mortos e desabrigados.
No Sudeste, secas históricas causam desabastecimento de água em centenas de municípios.
No Norte, a bacia amazônica tem enchentes históricas e o processo de transformação de uma vegetação natural da floresta pode aumentar as temperaturas a níveis fatais.
Desconsiderar os biomas e os direitos originários é deixar os povos indígenas à mercê de governos nacionais como o de Jair Bolsonaro, que implementou uma agenda anti-indígena no Brasil e nos atacou constantemente nas mídias (índio com banana/ índio come grama/ índio quer ser igual a nós) foram algumas das falas disparatadas do ex-presidente.
Nós, povos originários, somos os verdadeiros guardiões das florestas.
A proteção e preservação dos biomas não pode esperar mais tempo, isso é urgente, é agora. Sem água potável, sem ar, não vivemos. Nossa saúde depende da saúde das florestas, ouvimos as vozes dos jagrês (guias da floresta) pedindo misericórdia, a cada raiz, a cada rio que seca, morremos um pouquinho, enquanto povos da floresta, sentimos em nossos corpos a natureza.
“O território é muito importante para os Kanhgág (como nós kaingang nos denominamos). É da terra, dos parentes e de todo o cosmos que a territorialidade se compõe para produzir a saúde.” (Carvalho 2023, p. 223).
Quando Davi Kopenawa fala da queda do céu e da paixão do povo branco pela mercadoria (Kopenawa & Albert, 2015), está também denunciando as consequências da colonialidade sobre os modos de vida dos povos originários e tradicionais e sobre o próprio mundo dos fóg (não indígena), que ameaça ruir diante de uma sobreposição de crises: política, econômica, tecnológica, epistemológica, ecológica e imaginativa.
As preocupações dos povos originários demandam ações, como a formação de profissionais em saúde mental, para discutir os problemas de sofrimento das aldeias indígenas, em conjunto com os líderes espirituais, assim como a comunidade como um todo, visto que é imprescindível considerar os modos de ser e viver de cada etnia e seus territórios, além da riqueza cultural que temos, que ainda é muito desconhecida por profissionais da selva de pedra.
Acabam perpetuando a invisibilidade dos modos de ser e viver indígena na cidade. Estar em contato com a natureza é sinônimo de saúde, assim como tomar um banho de rio se refere a um momento terapêutico em nossos corpos-território.
Na selva de pedras adoecemos mais.
A psicologia das florestas envolve todos esses aspectos, muito mais amplos, corpo, mente, espiritualidade, saberes ancestrais e os modos de ser e viver indígena, tudo está conectado.
Pensamentos e sonhos ruins, compartilhe com a parenta pedra para que ela deixe estagnado e o vento não ouça.
Torna-te forte com os pés descalços sobre a Mãe Terra e tudo o que ela produz.
Não somos parte da natureza, somos a própria natureza, somos nosso próprio remédio, ouça sua intuição e seja inteligente.
A psicologia das florestas é psicologia muito antes da própria psicologia se consolidar.
Há necessidade de integrar a psicologia ocidental com o conhecimento ancestral.
Antes da intervenção do fóg, o sofrimento mental já era trabalhado e tratado através da espiritualidade indígena nas comunidades, para que os benefícios dessas práticas hoje pudessem ser notadas e, portanto, as duas dimensões não deveriam ser separadas ou ignoradas.
Referências
Carvalho, R. N. de. (2020). Kanhgang Êg My Há: Para uma psicologia Kaingang. Trabalho de conclusão de graduação em Psicologia.
Domingos, Angélica. O bem viver Kaingang: Perspectivas de um modo de vida para construção de políticas sociais com os coletivos indígenas. 2016.
Dooren, T. van, Kirksey, E., & Münster, U. (2016). Estudos multiespécies: Cultivando artes de atentividade (S. Dias, Trad.). ClimaCom, 3(6), 39–66.
Nunes de Carvalho, R.; Maris Rosado, R.; Azevedo Neves da Silva, R. MULHERES SEMENTE, ÎNH KÓSIN VY ÎNH MRÉ KONÎN JÉ: EXPERIÊNCIAS DAS MÃES INDÍGENAS ESTUDANTES NA UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL. Espaço Ameríndio, Porto Alegre, v. 17, n. 2, p. 220–239, 2023. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/index.php/EspacoAmerindio/article/view/132996. Acesso em: 14 ago. 2024.
Haraway, D. (2016). Staying with the trouble: Making kin in the Chthulucene. Duke University Press.
Puig de la Bellacasa, M. (2012). ‘Nothing Comes Without Its World’: Thinking with Care. The Sociological Review, 60(2), 197–216.
Kopenawa, D., & Albert, B. (2015). A queda do céu: Palavras de um xamã yanomami. Companhia das Letras.
Krenak, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo (Nova edição). Editora Companhia das letras, 2019.