PARTE II
EDUCAÇÃO PARA ALÉM DAS CONTRADIÇÕES DO SISTEMA
"É aí que me preocupo. Meu coraçãozinho adoece. Porque encontro um obstáculo, uma barreira. Não sei, de ferro. Às vezes sinto que não se pode fazer com que essas pessoas mudem de ideia. Eles jamais vão se permitir não ganhar dinheiro um dia"
"Não encontro compreensão de muitas pessoas em termos pedagógicos, para o entendimento da necessidade de mudar algumas formas de ensino drasticamente, porque essas formas não são "produtivas" dentro da visão do bem-viver do lekil kuxlejal "
Alexandre: Na Parte 1 desta grande conversa, você nos deu uma grande aula, Irma. Foram grandes ensinamentos. Eu fico até emocionado. Admiro suas ideias, suas práticas. Você falou muitas coisas bonitas e importantes. Muito obrigado de coração! Estou mais contente agora. Fiquei muito feliz de ouvir você.
Você falou sobre tantas coisas que me fazem refletir. São todos, ou quase todos, temas muito importantes para nós aqui no Brasil também. Vejo esses conflitos, vejo esses processos de transformação acontecendo nas escolas indígenas e em muitas não indígenas também, aqui na minha região.
Entendo perfeitamente e penso que isso é a chave, a possibilidade de transformação. O que você falou agora sobre o poder dos conhecimentos da Terra, dos conhecimentos dos avós, dos curandeiros, dos camponeses. A importância fundamental da escola comunitária, da escola que realmente é uma escola comunitária na prática.
Eu concordo totalmente com você quando fala sobre esse grande conflito, sobre o sistema educacional como uma imposição de um modo de viver, do consumismo, do capitalismo, da imposição da burocracia, dos procedimentos, da separação entre o conhecimento e os mais velhos e a terra.
Tudo isso aponta elementos de uma formação voltada para o sistema capitalista neoliberal, que é o mal do mundo, a pandemia, o crescimento global, a desnutrição, a falta de respeito entre as pessoas, a violência entre as pessoas, a ganância. Tudo isso está relacionado com o fato de que as pessoas, através do sistema educacional, esquecem que somos filhos da terra.
Você também falou sobre a academia, sobre o preconceito acadêmico e o racismo. A academia é um espaço muito vinculado à elite e ao poder.
Ficou bastante marcante para mim, também, a importância do projeto do Método Indutivo Intercultural em relação a uma formação mais oficial.
Você também falou de soberania alimentar. Como vê as crises pelas quais passamos?
Irma: Nossa má alimentação, com toda a industrialização dos alimentos, as superproduções, a indústria de alimentos transgênicos. Tudo foi modificado e, de alguma maneira, encurtou nossa expectativa de vida. Já não há avós que vivem 100 anos ou mais; se há, são pouquíssimos os que restam.
Eu não gostaria dessa vida para meus filhos e meus familiares. Mas digo que é muito difícil compartilhar isso. Muitas pessoas zombam de mim. Às vezes, pensam que minha forma de vestir, minha forma de pensar, meu jeito de ser, sei lá, são muito de outro mundo.
Às vezes, sinto que não encontro compreensão das pessoas. E isso é o que eu posso dizer. É um conflito existencial que às vezes me deprime, às vezes me estressa porque eu não quero que meus filhos cresçam com essas ideias, com esses pensamentos. Eu quero que meus filhos cresçam com um grande orgulho de serem indígenas.
É aí que me preocupo. Meu coraçãozinho adoece. Porque encontro um obstáculo, uma barreira. Não sei, de ferro. Às vezes sinto que não se pode fazer com que essas pessoas mudem de ideia. Eles jamais vão se permitir não ganhar dinheiro um dia.
Mas então, não sei, há ocasiões em que sinto que meus filhos têm vergonha de comer isso. Não sei. Não querem compartilhar com os amigos da escola porque vão chamá-los de índios. Vão chamá-los, não sei, de pobres.
Sinto que aprendi muito, mas também sinto que tenho muitos conflitos. Sim. Não sei, não sei como se chama isso.
Alexandre: Podemos observar aqui no Brasil uma série de conflitos, por exemplo, com as secretarias de educação, que dificultam avanços na educação intercultural.
Irma: Estou vivendo aqui em San Cristóbal de Las Casas, mas estou trabalhando lá em Terra Caliente, na região central. Geograficamente falando, é a região centro. Estou perto de uma represa chamada La Angostura. É uma das represas hidrelétricas aqui no estado. Estou perto de lá e, portanto, é um pouco mais tranquilo.
No entanto, sinto que as políticas sempre vão nos perseguir porque não encontrei refúgio. Agora estou em conflito, porque todo esse entendimento que tive me permitiu tentar não ser egoísta.
Ao tentar não ser egoísta, encontro muitas outras formas que são muito egoístas e ambiciosas em todos os lugares. Tenho tentado lidar com as coisas de uma forma mais afetiva com minhas colegas de trabalho e, portanto, nossas relações pessoais estão muito boas.
Por toda essa situação de vida que passei, quis entender meu lado pessoal e me colocar no lugar deles. Sinto que isso é muito importante, porque se estou falando que é importante educar os corações, acho que devemos começar com esse trabalho conosco mesmo, e é isso que eu tenho feito.
Existem controles muito rigorosos: primeiro do sistema, depois de outra parte política e partidária. Então, isso não é conveniente. Sinto que esse não é o trabalho.
Acho que o trabalho é tentar humanizar nossas relações como docentes para depois, em um segundo momento, humanizar os processos educativos que geramos com as crianças, com a comunidade, com as pessoas.
Alexandre: E formar pessoas mais humanizadas… O que a Mãe Terra precisa são pessoas humanizadas, não?
Irma: Exatamente. Sim, mas isso vai contra muitas políticas oficiais. Novamente, não estão achando o que estou fazendo aceitável. O que os partidos políticos ou os políticos que chegam ao poder fazem? Sempre querem manter o poder em suas mãos. Controlar.
Eu nunca fui partidária dessa parte, não quero um cargo, nem nessa parte política partidária, nem no sindicato, nem em nenhum outro lugar.
Então, novamente surge esse conflito que te digo, porque sinto que não me entendem. Não encontro compreensão em termos pedagógicos, organizando o pessoal, o coletivo docente, para a necessidade de mudar drasticamente, porque essas formas capitalistas não são "produtivas" dentro da visão do bem viver do lekil kuxlejal.
São produtivas dentro da visão oficial capitalista. Mas não encontro compreensão. Encontro rejeição, críticas, resistências muito radicais.
Encontro uma espécie de rejeição a essas formas de mudança, porque implica maior compromisso, mais trabalho, maior responsabilidade, algo para o qual não estamos preparados.
São formas de controle egoísta, formas de imposição também muito violentas do meu ponto de vista, porque eu considero que cada um é livre para pensar.
Sempre fui da ideia de trabalhar para o bem comunitário. Sinto que estamos bem. Não temos por que brigar. Eu não tenho por que forçar minha colega a vir para as reuniões comigo, a acreditar no que eu acredito, mas essa parte não é compreendida assim.
Alexandre: Aqui no Brasil, também, já faz muitos anos, há uma radicalização. Temos um problema muito sério com o sistema político aqui e há muita violência também entre as pessoas. Eu te entendo, eu entendo o que você está falando agora, mas que bom que agora não há, como você disse, ameaças ou ataques. Que bom que, pelo menos, as coisas estão um pouco mais tranquilas, porque você já passou por uma situação de extrema violência.
Irma: Ah, já. Sim. Bem, é isso. Então, não é fácil nos entendermos. Não é fácil estabelecer diálogos porque eles já têm formas de vida, uma visão docente que é muito deles.
Alexandre: Você me falou também sobre uma distinção muito interessante entre a formação na UPN, na Universidad Pedagógica Nacional, e a formação e atuação junto com o projeto da nossa grande amiga e mestre, Maria Bertely.
Você falou sobre isso como um despertar que te fez desenvolver toda a linda pedagogia e a linda conduta de vida, o ensino do coração, o vínculo com a Mãe Terra, a conexão com os avós, a prática da reciprocidade.
Pelo menos na minha interpretação, isso ficou muito forte, a distinção entre a UPN, talvez, ou como você fala de uma formação anterior e depois a atuação conjunta com o projeto do método indutivo intercultural.
Até onde eu sei, a UPN está em todo o México formando professores. Mas estou pensando nisso. Então, a UPN tem mais a ver com o ensino do sistema oficial, é isso? É uma formação que não problematiza o mundo, não é um pouco nesse sentido?
Irma: Sim, eu sinto que sim. Isso porque, na verdade, o mapa curricular da UPN se divide em várias linhas de formação. Uma é para aprofundar o trabalho docente, qual é o papel do trabalho docente, como atender aos grupos, como realizar uma pesquisa diagnóstica, como preparar uma intervenção. Há outra linha que tem a ver com a metodologia da pesquisa, como aprofundar o aspecto cultural das crianças para partir da intervenção pedagógica. E, a partir do conhecimento prévio das crianças, considerar o aspecto sociocultural e a formação sociocultural que elas têm. Mais ou menos assim.
Há outra linha que tem a ver com os processos históricos, entender como a educação indígena surgiu no país, quais políticas foram implementadas e uma série de outras coisas.
E há uma outra linha que tem a ver com o desenvolvimento da sistematização das nossas práticas. Mais ou menos assim que eu entendi.
Mas sempre teve um enfoque mais oficialista.
Muitos acadêmicos tinham mais interesse em que memorizássemos os conhecimentos e apresentássemos os exames, com um enfoque mais teórico.
Eu sinto que, não sei se era falta de formação, experiência, ou se eu fui uma aluna ruim, porque também pode ser considerado assim.
Talvez eu não tenha entendido, não sei, mas, do que eu pude entender, alguns dos professores que nos orientaram em todas essas linhas não se importavam de verdade conosco.
Esse é o meu sentimento, estou te dizendo, esse é o meu sentimento. Não sei se outros alunos sentiram assim, mas, do meu ponto de vista, foi assim. Eles estavam mais preocupados em cumprir com as aulas, porque eram quinzenais, já que trabalhávamos com os alunos de segunda a sexta-feira e, então, aos sábados e domingos, a cada quinze dias, tínhamos que ir para as assessorias.
Eu senti que alguns professores não se importavam tanto com nossos aprendizados, não se preocupavam se nos apropriávamos das ideias que pretendiam que aprendêssemos nas diferentes linhas. Eles estavam mais preocupados em cumprir com as aulas, deixar leituras e mais leituras e que chegássemos e compartilhássemos por meio de exposições, e, com isso, nos davam uma nota.
Eu sinto que minha tarefa como docente, meu compromisso e responsabilidade com as crianças, aprendi e fui ensinada pelos colegas da UNEM (Unión de Maestros de la Nueva Educación), mas não na UPN, porque na UPN foi mais como uma coisa entre ler e não ler.
Sinto que foi assim. Não senti que havia realmente uma intenção de formar professores com consciência, professores indígenas que ajudariam os povos indígenas a alfabetizar, mas com consciência.
Eu sei que se um professor da UPN me ouvir falando, vai ficar bravo, vai se ofender, vai dizer que é mentira, que não é verdade. Me cobram por que digo isso, mas é que eu sinto muito, eu só estou sendo honesta e contando a experiência de formação que tive com eles. Eu senti assim.
Alexandre: Eu vejo também coisas assim no Brasil, mesmo em minha instituição. Há professores que, como você falou, não têm a intenção efetiva de ter uma vinculação com a comunidade, participar de processos de cocriação de políticas e ações, ter uma proposta de problematizar o mundo, pensar a transformação.A academia, como você disse, foca muito na leitura de textos. Não é sempre que há professores e professoras que têm a intenção, a disponibilidade que você tem, a vontade, o desejo de estar juntos, de gerar processos de entendimento. Há outros e outras que não têm a vinculação social, não?
Eu te agradeço muito por compartilhar esses conhecimentos, sua trajetória de vida, Irma. Para mim é muito inspirador ouvir você, suas palavras, suas práticas. Eu vou lembrar por muito tempo, por muito tempo, sim. E eu gostaria de estar em contato com você novamente no futuro para poder fazer mais perguntas, compartilhar mais ideias, sim.
E te agradecer também pelo tempo de ter aceitado participar aqui conosco, nessa entrevista, compartilhar esses momentos, essas palavras. Muitíssimo obrigado!
Irma: Não, pelo contrário, agradeço muito também a oportunidade. É a primeira vez que falo sobre isso. Nunca havia feito, de fato. É algo que de alguma forma estava guardado dentro de mim e que também queria compartilhar. Agradeço muito a oportunidade, principalmente ao professor. Eu agradeço muito a oportunidade. E aos demais colegas que estão por aqui. Agradeço muito pela atenção e espero que, bem, de alguma forma, o que foi dito tenha servido. Muitíssimo obrigada.