Omi Apiakane, trajetória de vida de um intérprete entre mundos, por Ariné Waiana Apalai
Os trabalhos apresentados no âmbito do Curso de Educação Intercultural Indígena (CEII), da Universidade Federal do Amapá (UNIFAP), é fruto de ampla pesquisa e trabalho de docentes indígenas que atuam nas escolas indígenas do Amapá e norte do Pará.
O CLL teve início em 2007. Nesta longa e bonita trajetória, trabalha conjuntamente com povos do Oiapoque: Galibi-Marworno, Galibi-Kalinã, Karipuna e Palikur-Arukwayene, povos do Parque do Tumucumaque: Apalai, Waiana, Tyrió e Kaxuyana e o povo Waiãpi, sendo espaço marcante para transformações importantes na região.
Os textos a seguir trazem histórias de vida e trajetórias docentes, pesquisas de trabalho de conclusão de curso, registros de conhecimentos ancestrais.
Este artigo é de autoria de uma destacada liderança do povo Aparai-Waiana e é resultado dos estudos promovidos na formação docente.
Apresentamos aqui versão do texto que dá origem a este artigo, criado em seu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), no Curso de Educação Intercultural (CEII), da Universidade Federal do Amapá (UNIFAP).
Este texto será, ainda, publicado com apoio da Revista Pihhy.
Trata sobre os múltiplos significados da interculturalidade, para si e para seu povo.
Descreve sua trajetória de vida como “Omi Apiakane”, ou seja, um tradutor ou intérprete entre mundos, aquele que na língua Aparai é imbuído de ajudar as lideranças no diálogo, na comunicação e no estabelecimento de relações com o mundo karaiwa (brancos).
Para muitos povos indígenas, essas relações não foram fáceis e, em muitos casos, desrespeitosas.
Com isso, o Omi Apiakane relata as vicissitudes enfrentadas e explica em uma envolvente narrativa autobiográfica a história de vida de sua família, os desafios dos contatos interétnicos e do indigenismo brasileiro e, sobretudo, seu percurso no movimento indígena local e nacional, que se confunde, na maioria das vezes, com a agência indígena dos povos Aparai e Waiana.
O Omi Apiakane é filho de pai Aparai e de mãe Waiana, portanto, possui essencialmente a identidade e o pertencimento plástico e pautado em uma rede complexa de interculturalidade.
Ariné Waiana Apalai é membro Coordenador-Executivo da Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Amapá e Norte do Pará (APOIANP/2023-2026), servidor colaborador da Saúde Indígena, graduado no Curso de Licenciatura Intercultural Indígena, na Universidade Federal do Amapá.
Fonte: Acervo do autor, 2019. Disponibilizada em: APALAI, 2023, p.71.
Na língua do meu povo, Aparai, que pertence ao tronco linguístico Karib, Omi Apiakane significa “intérprete” ou “tradutor”.
Essa pessoa, Omi Apiakane, é muito importante em nossas reuniões e eventos.
Os mais velhos sempre recorrem a ela para que auxiliem no entendimento da língua portuguesa, que é muito difícil para eles.
É necessário ter um Omi Apiakane para facilitar a compreensão profunda da conversa no debate, nas palestras e nos diversos momentos de diálogo e discussão. Ajudar como Omi Apiakane é muito importante para meu povo, que precisa de uma atenção específica dentro e fora de nossas terras, em especial, nos diálogos com toda sociedade envolvente.
Minha trajetória de vida no movimento indígena começou com o papel de intérprete e tradutor, Omi Apiakane.
Me chamo Ariné Waiana Apalai.
Nasci no dia 20 de março de 1975, na Aldeia Bona do povo Apalai, localizada na Terra Indígena Parque do Tumucumaque, município de Almeirim/PA.
Contudo, em meu Registro Nacional de Indígena (RANÍ) consta que nasci no dia 27 de março de 1972. Isso aconteceu porque o cartório de registros na época exigiu que para fazer o documento de identidade fôssemos maiores de idade, assim, a Fundação Nacional do Índio, hoje Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), atribuiu mais 3 (três) anos em minha idade para que eu pudesse viajar e vir estudar na cidade de Macapá, no Amapá.
Sou filho de Imeipoty Apalai, conhecido como Mikita, e de Pipina Waiana, conhecida como Enedina. Tenho 3 (três) filhas, Aorihtyamo Rosane Waiana Apalai, Ellen Mokinikini Waiana Apalai e Kellen Eriepyny Waiana Apalai. E um filho chamado Kzan Waiana Apalai.
Atualmente já sou tamuru, que significa avô, ou seja, tenho 6 (seis) netos. É uma expressão utilizada tanto por homens quanto mulheres aparai para se referir a avós e avôs, paterno e materno.
Meu nome “Ariné” é de origem Waiana, herdado de um grande pyaxi (pajé) e typatakemy (cacique).
Ariné foi meu bisavô materno, avô de minha mãe, portanto, meu tamu (avô).
Minha mãe explicou-me que Tamu Ariné, desde muito jovem, se motivou e dedicou-se a se tornar pyaxi.
Seu pai o ensinou a se transformar em um grande pyaxi.
Ariné se tornou uma importante liderança espiritual para nossa família e para o povo Waiana. Morava na Aldeia Kumareuku, no rio Amazonas, onde Ariné faleceu, tendo seu corpo cremado no local, a pedido dele.
Conforme confidenciou minha mãe, o pyaxi morreu conversando com os espíritos.
Um de seus filhos, chamado Japaita Waiana, é o pai da minha mãe, meu tamu.
Fonte: Fotografia Ariné Apalai, 2013. Disponibilizada em: APALAI, Ariné Waiana. Omi Apiakane, um intérprete entre mundos: experiências no movimento indígena, protagonismo e autonomia dos povos Aparai e Waiana. TCC, CLII/UNIFAP, Oiapoque, 2023, p.18.
Compartilho a seguir uma fotografia onde apareço fazendo artesanato.
No momento da fotografia, tirada em 1992 pela pesquisadora Paula Morgado, eu tinha 17 anos. Desde pequeno me envolvi na aprendizagem e confecção de meus artesanatos, tanto cestaria, como também plumas, flechas e bordunas.
Costumava imitar tudo que acreditava parecer fácil – apesar de não ser.
Assim, podia ajudar a família na comercialização local e nas possibilidades de troca por produtos industrializados, complemento alimentar como arroz, açúcar, café, biscoitos e vestimentas.
Quanto aos meus pais, eles são de duas etnias diferentes. Meu pai é Apalai e minha mãe é Waiana.
O meu pai nasceu no baixo curso do rio Paru e conviveu, até sua juventude, lá. Contudo, sua família fez uma viagem para certa região do rio Jari, e foi nessa ocasião que meus pais se conheceram.
Minha mãe é natural do Suriname, chamada na língua Waiana de Paloemeu, e na língua Aparai de Parumo. Ela veio descendo em viagem pela fronteira até chegar na principal cabeceira do rio Jari com sua família.
Segundo meu pai – Sr. Imeipoty – o rio Jari era e ainda é muito frequentado pelos Waiana do Suriname e da Guiana Francesa.
Assim, os Aparai sempre faziam viagens com eles e vice-versa.
Figura 3: Eu, Ariné Apalai, confeccionando artesanato na Aldeia Aldeia Bona em 1992
Fonte: Fotografia de Paula Morgado, 1992. Disponível em: APALAI, 2023, p. 19.
O objetivo dessas viagens era promover o encontro com familiares e estabelecer troca de objetos e materiais de caça e pesca (arco e flecha), redes de algodão, animais de estimação (cachorros), entre outros, uma forma de comercialização entre povos pertencentes ao mesmo tronco linguístico karib.
Dessa viagem da família materna surgiu o casamento de meus pais.
Desde então, minha mãe não voltou para sua terra natal, o Suriname, e ficou, definitivamente, convivendo nas aldeias do Parque do Tumucumaque com outros povos e parentes.
As novas relações sociais possibilitaram que minha mãe conhecesse parte de sua família materna, que vivia há muito tempo no Parque do Tumucumaque, no rio Paru, em sua faixa leste.
A família de sua mãe formava um grande laço de parentesco entre os povos Waiana e Tiriyó daquela região e, ultimamente, a maior parte das aldeias pertencem aos familiares da minha mãe.
Meu pai me explicou que os primeiros encontros que teve com minha mãe – por serem de origens distintas, apesar de falantes de línguas da família linguística karib – tiveram dificuldades de compreensão ou comunicação.
Eles não se entendiam quase nada, não compreendiam a língua do outro, mas, aos poucos, a comunicação surgiu nas duas línguas. Até hoje é interessante observar a comunicação dos dois, minha mãe fala em Waiana e meu pai responde em Aparai.
A língua aparai, atualmente, predomina nas principais aldeias dos povos Aparai e Waiana. Aparai, com a utilização do “r”, aparece em nossas falas indígenas, assim como na escrita. Enquanto Apalai com “l” vem marcando os sobrenomes nossos e facilita a leitura dos não indígenas.
O sistema de intercasamentos é estimulado e cresceu muito entre os Aparai e Waiana, Aparai e Tiriyó, mas sem perder suas referências culturais e tradicionais, somando nestas interrelações os conhecimentos dos antepassados.
As crianças e novas gerações aprendem, geralmente, a falar nossas línguas, tornando-se plurilingues com facilidade, constituindo sociedades multilingues.
As histórias de nossos povos estão sendo escritas e publicadas em nossas línguas, apresentam elementos da convivência, de nossas terras e artes, como grafismos que são utilizados em vários artesanatos, tanto em Aparai, quanto Waiana.
Há grandes perspectivas de valorizar estas raízes sem perder a cultura e tradição de cada povo. Hoje em dia todos se entendem, lutam e buscam objetivos em comum, defendem as terras, praticam e compartilham tradições, unificam suas culturas sem detrimento de nenhuma, andam juntos em todos os passos.
Mesmo nas suas aldeias, não há separação de moradias, praticamente vivem valorizando o que lhes convém, auxiliam outros povos que não são Aparai e Waiana, o que os tornam acolhedores e colaboradores em todos os sentidos.
Pelo lado paterno, meu pai tinha muitos irmãos que podemos denominar na compreensão não indígena de “primos”, entre a primeira e a terceira geração, e que viviam em várias aldeias do rio Paru D’este, do rio Paru do Leste, do rio Jari e do rio Maikuru, sendo que os Aparai viviam em maior concentração neste último rio.
O nome do meu pai – Imeipoty – foi escolhido pela sua mãe. Seu apelido, Mikita, foi colocado por seu Antonio Guilherme, um balateiro que trabalhava com eles na extração da borracha no rio Paru.
Minha mãe teve seu nome – Pipina – escolhido pelos pais quando criança, enquanto seu apelido, Enedina, foi atribuído pelas mulheres ou companheiras dos não indígenas balateiros. Minha mãe aprendeu a falar português devido à relação frequente que eles estabeleceram com essas famílias de balateiros, com as mulheres dos não indígenas.
Meu pai explicou-me que antes de tudo não havia karaiwa (brancos) entre nós, mas, com o passar do tempo, os balateiros começaram a explorar a mata, procurando seringas e balatas para a fabricação de borracha.
As seringas ou seringueiras, que em nossa língua é chamada de Amapa, são árvores das quais extraímos uma resina leitosa, que podia ser consumida como alimentação. Das árvores parahta ou massaramduba, onde se extrai a conhecida “balata”, retiramos também uma resina leitosa que se apresenta como uma cola e não pode ser ingerida.
Desse cenário de incursões karaiwa pela mata, surgiram relações com os nossos povos, e alguns de nós passaram a trabalhar como mão-de-obra indígena na exploração e extração da borracha, inclusive meu pai. Contudo, a comunicação era difícil.
Mikita explica que poucos foram àqueles que chegaram a permanecer trabalhando junto aos karaiwa, porque não conseguiam dialogar. Na atualidade não existe mais essa relação com os seringueiros e balateiros.
Meu pai, Imeipoty Apalai, quando lhe perguntei sobre seus avôs, informou-me que:
O avô paterno do meu pai não tem visto ele fisicamente, faleceu quando era criança, só a mãe dele viveu e faleceu já no Paru, a Dona Ikereuru Apalai, primeira aldeia que ela morou era Aldeia Itapeky atualmente reconhecido de Terra Indígena rio Paru.
E quanto aos avôs maternos, minha mãe conheceu os pais dela, mas só dois primeiros filhos conheceram os avôs, o resto dos filhos e eu não chegamos a conhecer meus avôs paterno e materno.
Meu pai é Aparai do rio Paru e nasceu às margens do igarapé chamado de Kama, próximo à Aldeia Parapará. Segundo seus relatos, ele pertence ao subgrupo do povo Aparai chamado Ahpama. Me recordo que estive presente na Assembleia da Etapa Local, da 1ª Conferência Nacional de Política Indigenista, que discutiu o tema “A relação do Estado Brasileiro com os Povos Indígenas no Brasil sob o paradigma da Constituição de 1988”, entre os dias 24 e 27 de junho de 2015, na Aldeia Bona, Terra Indígena Parque do Tumucumaque.
Nesse encontro, os mais velhos explicaram o nome dos subgrupos de meu povo Aparai, que são: Pirixiyana, Kumakai, Apaga, Arakaju, Kumarawana, Okomoyana, Osenepohnomo, Wezamohkoto, Tunapeky e Kukuyana.
Poucas famílias originárias desses subgrupos ainda existem na atualidade, como Ahpama e Pirixiyana, dos quais praticamente todas as famílias das aldeias do Parque do Tumucumaque e do rio Paru D’este descendem.
Os Waiana são subdivididos em Upurui, Oepoeroei, Alakapai, Opakjana, Oreocoyana, Ohkokoyana, Urucuiana e Alukuyana, sendo que maioria destes desapareceram em território brasileiro, sem deixar marcas linguísticas e culturais próprias, assim, apenas dois subgrupos permanecem com crescimento populacional significativo, os Upurui e os Alukuyana.
Que eu saiba não temos estudos sobre esses subgrupos, infelizmente, também não temos pesquisas, carecemos de maiores informações. O que de fato temos consciência é que a formação das famílias Aparai ou Waiana descendem desses subgrupos que, na trajetória história, confluíram para relações interfamiliares e intergrupais. Por outro lado, existe um distanciamento de parentes ou descendentes em conhecer suas raízes tradicionais.
Percebe-se uma certa falta ou dificuldade no diálogo entre os mais jovens e os mais velhos.
São os idosos que conhecem as histórias e, como nem sempre compartilham suas memórias, os mais jovens perdem os conhecimentos dos antigos, não sabem suas origens familiares, desprendem-se de viver alguns elementos importantes de cultura, como os rituais e festas tradicionais havendo, inclusive, na atualidade, uma certa tendência na afirmação da língua aparai, em detrimento da língua waiana entre os mais jovens.
O subgrupo ao qual eu pertenço, os Ahpama, eram reconhecidos pelos outros povos por usarem como arma principal o pyrou ou flecha. Tinham como característica física predominante a estatura baixa e eram considerados muito fortes. Por ser Waiana, minha mãe pertence ao subgrupo Upurui, de origem Waiana do Suriname, onde vivem há décadas com suas famílias, mas meus pais também têm parentes na Guiana Francesa.
Meu pai é natural do rio Paru D’este, mas ele também morou, posteriormente, por cerca de 20 anos, nas cabeceiras do rio Jari, onde conheceu minha mãe e onde viviam muitas famílias Waiana. A família da minha mãe não aceitou muito bem o relacionamento dela com meu pai, pois não era comum o estabelecimento de casamentos entre os Waiana e os Aparai naqueles tempos.
Apesar disso, eles casaram e os primeiros filhos que tiveram nasceram no rio Jari: Mikiri Waiana Apalai e Pikara Waiana Apalai. Como as relações não eram tão boas, meu pai teve que levar minha mãe e sua família para morar no rio Paru. Assim, os outros filhos nasceram no rio Paru, dentre eles Ohpomima Waiana Apalai, Oryxima Waiana Apalai – um menino pequeno que sofreu acidente e faleceu – Eu, Ariné Waiana Apalai, Arawaje Waiana Apalai, Mujaré Waiana Apalai e Matanauru Waiana Apalai.
Depois de constituída a família, Tuhpuru Aparai, o avô do meu pai, convidou-o para morar e fazer parte da família no rio Jari. Contudo, houve pressão da família da minha mãe, pelos Waiana, que não gostavam das relações com os Aparai devido às dificuldades de comunicação, de acesso e distância.
Vale lembrar que as referências aos intercasamentos entre os Aparai e Waiana são muito antigas, atravessam os tempos e unem em trajetória e convivência os povos.
Quando um dos meus tios maternos, Sr. Amatoja Waiana Apalai, conheceu minha mãe e meu pai, convidou-os para morar na aldeia dele, chamada Itapeky, no rio Paru D’este. Apesar de irmãos, minha mãe e meu tio não se conheciam. Eram filhos da mesma mãe, mas de pais diferentes, Amatoja nasceu no rio Paru e Pipina no Suriname. Meus pais, depois de terem vivido bastante tempo no rio Jari, resolveram voltar para ficar no rio Paru, foi quando meu tio Amatoja convidou eles para conhecerem a Aldeia Bona.
Nessa ocasião, meu pai conheceu os militares da Força Aérea Brasileira (FAB) e, por saber falar a língua portuguesa, os militares convidaram-no para morar na Aldeia Bona que, inicialmente, se chamava Aldeia Apalai.
Assim, meu pai poderia ajudar nas relações de comunicação entre a comunidade, os povos e a FAB. Então, saíram da Aldeia Itapeky para morar definitivamente na Aldeia “Apalai” ou Bona, onde alguns primos de parentesco já residiam há algum tempo.
Na cultura dos povos Aparai e Waiana temos que passar, de geração em geração, pelo ritual Epurutopo ou Osenematopo, que marca a passagem da juventude para a vida de adulto, tanto para homens quanto para mulheres.
O ritual ou festa tem a participação principal de três personagens centrais: a) o epurukety ou paciente, que irá fazer a passagem pelo ritual; b) o esemy ou cuidador temporário, que é responsável pela recuperação do paciente, oportunizando a manutenção de adornos, bebidas, espaço, materiais e uma casa de resguardo adequada; e c) ipurune, encarregado de executar e conduzir a aplicação da ferroada no paciente.
O ipurune sempre é representado por uma pessoa mais velha da família do paciente. Jovens e crianças não podem conduzir a aplicação desse processo.
Na execução do ritual, o cuidador esemy e sua família são responsáveis pelo participante, contudo, caso alguma mulher esteja menstruada, ela não poderá fornecer refeições a quem está em jejum, entretanto, outros membros da família podem ajudar nessas situações por tempo determinado.
O ritual tem a finalidade de atribuir sorte nas caças e pescas, força espiritual, boas relações familiares, bom ânimo e vontade nos afazeres e longevidade. Para tanto, é necessário cumprir o “repouso” para poder receber boas intenções, alcançando os resultados.
Assim, o jovem será bem-sucedido, caso contrário, ao não cumprir criteriosamente o repouso com suas regras exigidas, o epurukety causará mal a si mesmo ou ao esemy, pessoa que o está ajudando no processo de recuperação, ou ao ipurune, pessoa que ajudou no ritual de execução da ferroada.
Um dos principais perigos que interfere no bom resultado do ritual é o rompimento da proibição das relações sexuais por parte de um dos três personagens centrais.
O ritual Epurutopo ou Osenematopo divide-se em sete etapas, podendo ser até mais. Inicialmente, pode ser desenvolvido com crianças, jovens e adultos.
O ritual que marca a passagem geracional começa com a primeira experiência da ferroada da tucandeira juku.
Essa tucandeira é a que tem a dor mais leve da ferroada.
Na segunda etapa, que contempla a passagem da juventude para a vida adulta, experimenta-se a ferroada da tucandeira chamada irako, com uma ferroada mais dolorida. A terceira fase ocorre na vida adulta.
Trata-se de uma experiência complementar, quando a pessoa opta por aplicar a ferroada de marimbondo – okomo –, conhecido como karanaxi e como “caba” na região.
A próxima etapa é marcada pela recepção da ferroada de outro marimbondo chamado kapyheu ou kaphe. Em seguida a pessoa recebe a ferroada do marimbondo chamado sorokote ou holokot e, por conseguinte, recebe a ferroada de uma espécie de formiga preta chamada mapara, considerada a ferroada mais dolorida de todas.
A última ou uma das últimas fases ocorre com a ferroada de tucandeira irako, quando é feito cortes ou merie no corpo inteiro do ipurukepe (vítima) com bambu, que deve estar bem amolado para este fim, possibilitando o sangramento, sendo procedida de banho com folha de flecha ou onumiapo, uma planta nativa de característica urticgante que gera desconforto, dor intensa e, às vezes, fraqueza em decorrência da perda de sangue, podendo o adulto até desmaiar.
Durante a realização do Epurutopo ou Osenematopo se coloca uma peça artesanal chamada kunana em formato de animais para homens e na forma quadrada de peixe com plumas de pássaros para as mulheres. Esta peça é confeccionada de palha de inajá ou folha de espinho conhecido na língua Aparai como murumuru ou arumã.
No centro dessa peça serão fixadas as tucandeiras e os marimbondos.
Esta festa e ritual acontece em várias etapas anuais, quando todas as aldeias podem, obrigatoriamente, participar com a garantia de todo o suporte na colaboração. Cada pessoa convidada será responsável por uma pessoa que passará por essa experiência de “transição geracional” desde o início (primeiras fases) até o fim (última fase).
O responsável por ajudar deve tomar todo o cuidado necessário, sendo uma pessoa praticamente insubstituível. A família pode ajudar, mas não é a primeira opção. Esse responsável, inclusive, promove os cuidados pessoais, como a preparação de adornos, instrumentos de danças, refeições, bebidas, espaço físico, local das danças, entre outras responsabilidades.
Todo o processo do ritual, constituído por diversos momentos distintos, é chamado de Okomo. Os envolvidos e selecionados para o ritual colaboram com várias atividades da festa, engajam-se como um grande mutirão de pessoas e comunidades convidadas. Em seu encerramento, após o fim da última fase do ritual marcado pela ferroada, os convidados responsáveis pelos experimentados no ritual irão cuidar destes por alguns dias, para que possam se recuperar, sendo posteriormente devolvidos às suas famílias.
Uma ação importante e que marca o fim deste ritual é a raspagem dos cabelos da cabeça de todos os participantes epurukety de ambos os sexos, homens e mulheres envolvidos.
Para encerrar definitivamente o ritual amarra-se no umbigo um cordão chamado mauru no participante epurukety, que provavelmente está bastante debilitado pelas etapas transpostas do ritual.
O fio ou cordão mauru (algodão) tem a finalidade de evitar o desenvolvimento de problemas no corpo do epurukety, como a erupção de hérnia, o crescimento abdominal e as consequências físicas negativas decorrentes de caminhadas ligeiras.
A família do participante é responsável por amarrar o mauru na direção de umbigo em formato circular na cintura. A permanência terá duração por tempo determinado até o fio soltar ou apodrecer por si mesmo. Nesse momento, o cuidador esemy devolve o participante à família junto com todos os materiais utilizados durante o ritual.
O meu pai percebeu que eu não poderia participar de Epurutopo ou Osenematopo. Conversou bastante com minha mãe, ela queria muito que eu passasse por esse ritual, mas meu pai negou e não ficou convencido da necessidade.
Papai não me deixou passar por isso por acreditar que eu poderia sofrer, principalmente com a demora de uma festa muito longa, ferroadas perigosas e doloridas, podendo causar desmaio ou sequelas.
Havia por parte de meu pai uma preocupação referente a série de regras que devem ser seguidas e respeitadas, tanto para o meu bem quanto para o dele. Romper com estas regras, não as cumprir adequada e tradicionalmente, implica em consequências tanto para o jovem que participa do ritual quanto para os pais.
Dessa forma, como eu não me iniciei nos ritos obrigatórios do Epurutopo ou Osenematopo, meu pai fez questão que eu participasse no acompanhamento de todas as fases do ritual, auxiliando nos ensaios das danças que acontecem antes da realização das festas, assim como aprendendo junto com os mais velhos experientes a tocar as flautas e a entoar os cantos.
Quando fomos morar na Aldeia Bona ou Aldeia “Apalai”, meu pai reencontrou outras famílias, entre elas algumas primas legítimas que não conhecia, como Amakauru Apalai, Nohpoimo Apalai e Marina Apalai.
Essas três primas de meu pai viviam em suas próprias aldeias, com familiares. Meu pai costumava realizar visitas nas aldeias de minhas tias. Eu e minha irmã Oryxima moramos um tempo com minha tia Nohpoimo Apalai.Foi essa tia quem criou a minha irmã Oryxima desde criança até juventude. Eu convivi muito tempo com esta tia, pois eu acompanhava seu esposo, Saiarepó, que era um pyaxi (pajé) muito sábio e respeitado espiritualmente.
O pyaxi Saiarepó contava-me que, durante a noite, ele buscava o conhecimento e ajuda. No dia seguinte, passava transmitindo os conhecimentos importantes e válidos para a família e toda a comunidade. Pyaxi orientava sobre ervas que curavam doenças provocadas por outro pyaxi, doenças crônicas e doenças mentais, entre outros, explicava de onde poderiam ser extraídas as ervas e suas formas de tratamento.
Costumava dormir tarde e acordava de madrugada, sempre prevendo algo muito tempo antes de acontecer, por isso costumava avisar o responsável pela aldeia ou comunidade para reverter tais doenças que viriam a atingir as comunidades.
Ainda, Pyaxi podia descobrir doenças espirituais, envenenamentos, intoxicações e feitiços, inclusive falava quem era o “autor” dessas provocações.
Nossa tia Nohpoimo ajudava diariamente na aldeia, conforme as orientações do pyaxi. Recordo-me que todos os dias ela avisava para ter cuidado na aldeia, bem como no entorno, sobretudo durante a noite, pois para pyaxi era o momento em que os espíritos estavam se reunindo para trazer comunicação de longe, como de outras aldeias da região e de países, como do Suriname.
Nosso pyaxi poderia identificar quem era o pyaxi que estava fazendo ou mandando coisas ruins para nossa aldeia.
Boa parte da família do meu pai fala mais Aparai do que Waiana.Isso fez com que a maior parte de meus irmãos falassem mais Aparai do que Waiana, com exceção de meus irmãos mais velhos, que dominam bem a língua Waiana.
Na minha infância, minha mãe conversava em Waiana comigo, porém, eu brincava muito com meus primos, que eram Aparai, essas relações dominaram e acabei não praticando minha segunda língua, mas entendo, falo e escrevo, depois que me tornei adulto e tive a oportunidade de praticar e conhecer os primos e primas que sempre vinham para visitar minha mãe.
Hoje em dia sou falante de três línguas do tronco linguístico karib: Aparai, Waiana e Tiriyó, mas minha primeira língua é o Aparai.
Nesse caminho como Omi Apiakane, tenho adquirido uma série de conhecimentos e experiências de luta com povos diferentes, nossos parentes.
Aprendi a me engajar nos movimentos sociais e a buscar apoio para o movimento indígena, considerando o necessário envolvimento de todos, dos jovens aos adultos. Como liderança, precisamos aprender a dialogar com qualquer instituição, seja ela governamental ou não, para alcançar os objetivos.
Nesse caminho de Omi Apiakane completei pouco mais de duas décadas como membro de nossa organização local.
Sou uma das lideranças que mais tempo permaneceu firme, confiante e ativo no desenvolvimento dos povos das Terras Indígenas Parque do Tumucumaque e rio Paru D’Este.
Representando meu povo Aparai e Waiana, com muito orgulho, tornei-me liderança reconhecida, sempre determinado a ajudar meu povo junto aos novos membros do movimento indígena. Nessa caminhada, há grande satisfação em relação ao nosso desenvolvimento político e sociocultural.
Um dos maiores ensinamentos que tive em minha vida veio do grande cacique Tuarinker, também conhecido no mundo não indígena como João Aranha.
Tuarinker me mostrou como fazer a leitura e a avaliação correta da realidade dos povos, inspirou-me a ter coragem de enfrentar o diálogo, transmitir com transparência as informações, ajudar outros caciques sem dificultar o trabalho.
Aprendi a elaborar documentos para pedir apoio dos órgãos públicos que trabalhavam com povos indígenas, acompanhar trabalhos do povo local e, inclusive, aprendi a participar das reuniões e eventos e saber liderar e organizar povos indígenas.
De Omi Apiakane – ajudando o cacique Tuarinker – à liderança, foram muitos anos de ensinamentos, experiências que narro e compartilho no meu Trabalho de Conclusão de Curso na Licenciatura Intercultural Indígena da Universidade Federal do Amapá, como se fosse uma auto etnografia, e que mostram um pouco do caminho percorrido por um jovem indígena que cresceu e aprendeu a importância de ajudar a sua comunidade.
Figura 4: Cacique Tuarinker Apalai (centro), em diálogo com o administrador regional da Funai Frederico de Miranda Oliveira (esquerda) sobre políticas públicas de educação e saúde, na sede regional da Funai em Macapá-AP, 1988
Fonte: Acervo de Frederico de Miranda Oliveira, 1988. Disponibilizada em: APALAI, 2023, p.37.
Japohpo Tuarinker era meu tio por parte de meu pai, educou-me e orientou-me com muito respeito e dedicação.
Era uma pessoa muito inteligente, atenciosa em tudo que fazia e com uma sensibilidade para compreender em profundidade o que se passava ao seu redor.
Tinha uma capacidade aguçada de percepção sobre as pessoas, era um cacique muito corajoso na sua fala, encarava com autoridade e autonomia as relações com as pessoas, inclusive não indígenas.
Às vezes precisava dar um puxão de orelha em nós, bem como em não indígenas. Esse homem – cacique Tuarinker aorihtyamo (falecido) – me conquistou, contribuiu no meu envolvimento com nossas demandas de valorização do povo.
E foi através da sua atuação que eu passei a ajudar na interlocução entre o mundo indígena e não indígena.
Consequentemente, segui o caminho exemplar de liderança que ele me deixou.
Figura 5: Cacique Tuarinker Apalai indo participar da Assembleia anual dos Povos Indígenas do Oiapoque, que ocorreu na Aldeia Kumarumã da TI Uaçá, 1983.
Fonte: Fotografia de Frederico de Miranda Oliveira, cedida pelo autor. Disponibilizada em: APALAI, 2023, p.51.
Minha trajetória de vida no movimento indígena de fato começou com o papel de intérprete e tradutor.
Sigo, até o presente momento, como interlocutor ou transmissor da voz dos chefes e caciques, inclusive, ajudando como liderança regional e nacional.
Contribuo em vários aspectos, principalmente, na busca por melhorias nas políticas públicas aos povos indígenas, luto em busca de soluções, envolvendo-me na defesa de direitos indígenas, nas mobilizações regionais e nacionais, incentivando os caciques a se engajarem ainda mais nos grandes debates e representações fora da aldeia, bem como incentivando as lideranças que representam aldeias distintas para auxiliar caciques nas suas ausências.
Na condição de Omi Apiakane pude contribuir ao longo dos anos, período de experiência que me permite considerar que houve avanços nas terras indígenas, começando pela demarcação e meio ambiente, educação, saúde, programas sociais que atendem idosos e auxiliam na maternidade.
Todos estes avanços são resultados de conquistas do movimento indígena, um espaço de luta coletivo. Esse relato, que pode ser compreendido com uma auto etnografia, foi extraído originalmente de meus estudos na formação superior de professores indígenas.
Nota: A Revista Pihhy respeita características e maneiras próprias de escrita e expressão dos(as) autores(as).
Figura 6: Cacique Tuarinker reunido com a comunidade para escolher as equipes de frente na demarcação das terras indígenas e que acompanharam cada grupo formado por não indígenas, março de 1997
Fonte: Fotografia de Ariné Apalai, março 1997. Disponibilizada em: APALAI, 2023, p.59.
Figura 7: Comissão de professores indígenas do Amapá e norte do Pará, Robersoni dos Santos, Ariné Apalai, Erlis Karipuna e Oberto dos Santos (da esquerda para a direita), na 1ª Conferência Ameríndia de Educação e I Congresso de Professores Indígenas do Brasil, 17 a 21/11/1997, Cuiabá (MT)
Fonte: Acervo do autor, 1997. Disponibilizada em: APALAI, 2023, p.40.
Figura 8: Participação da delegação dos povos do Amapá e Norte do Pará Celestino Kaxuyana, cacique da Aldeia Santo Antonio, Tito Meri Tiriyó, cacique da Aldeia Missão Tiriyó, Ubirajara Kaxuyana, Angela Kaxuyana e Ariné Apalai (da esquerda para a direita), na 1ª CNPI, etapa nacional realizada em dezembro de 2015, Brasília (DF)
Fonte: Fotografia de Samara Danielle, povo Sateré Maué, 2015. Disponibilizada em: APALAI, 2023, p.67.
1.Do Apalai, aorihtyamo, significa pessoa falecida
2.O termo typatakemy ou tuisa são palavras que utilizamos para chamar o cacique ou líder, recorrentes as famílias Aparai como forma de cumprimento dado às autoridades locais. A palavra tuisa é um termo específico para denominar as demais autoridades, tanto dentro da aldeia quanto fora.
3.APALAI, Cecília; APALAI, Ariné et al. Pake ahtao oturutopõpo poko. Histórias antigas dos Aparai-Waiana. Macapá: SEED/NEI; APITU; GTZ; Instituto Cultural Brasil-Alemanha; FUNAI, 1996.
4.Maikuru é o nome de um rio afluente do rio Jari.
5.Balateiro é o nome atribuído para pessoas que extraiam borracha da árvore massaranduba ou parahta na língua aparai. Balata é o látex retirado de uma árvore chamada balateira, Manilkara bidentata, da família das sapotáceas, muito comum na Amazônia. Dela se extrai uma goma elástica parecida com o látex da seringueira.
6.Epurutopo significa local ou período de realização das ferroadas das tucandeiras.
7.Osenematopo é o termo utilizado pelos Aparai para designar o local onde se faz ou se cumpre repouso.
8.Juku é nome de tucandeiras que são pretas e brilhantes. A ferroada dessa tucandeira provoca muita dor, que passa depois de alguns minutos. A juku é utilizada na primeira fase de festa de tucandeiras.
9.Irako é um tipo de tucandeiras que tem ferroada intensamente dolorida e demorada. Costuma ser utilizada na festa de tucandeiras, passagem de juventude para vida adulta, por ambos os sexos entre os Aparai e Waiana. Pode ser utilizada na segunda fase de festa de tucandeiras.
10.Okomo é o nome dado pelos Aparai aos marimbondos. Comumente são utilizados na festa de tucandeiras. O mais utilizado é o Tyrehmenu, que é bem escuro e apresenta sinal amarelo nas costas.
11.Merie é o nome de uma das etapas do Ritual que marca a passagem da puberdade para a vida adulta. É pouco realizado pelos Aparai, pois o Ritual é doloroso e não está sendo praticado ultimamente. Nessa etapa, provoca-se cortes na pele em virtude da fricção com o bambu afiado ou com dentes de peixes afiados. Para saber o local exato onde serão promovidos os cortes no corpo do paciente, realizam-se chicotadas que marcam a pele para a execução do merie.
12.Kunana é uma peça artesanal confeccionada para colocar as tucandeiras., sSua pintura é feita com plumas de pássaros sagrados.
13.Murumuru é o nome de um espinho do mato muito perigoso, suas frutas são consumidas pelos povos indígenas.
14.Papa é um termo de cumprimento, de respeito e identificação, atribuído ao papai no cotidiano. Utilizado tanto pela família paterna quanto materna. As famílias chamam os tios do lado paterno também de papa.
15.Existem vários tipos de flautas utilizadas nas festas e rituais dos povos Aparai-Waiana, mas a principal deste ritual Epurutopo ou Osenematopo é a flauta Turekoka. Existe também outra flauta chamada kurekure, exclusivamente utilizada neste mesmo ritual Epurutopo ou Osenematopo. Os jovens rapazes participantes executam treinos com as flautas desde o início até o fim, enquanto as jovens moças participantes formam um casal com os rapazes e os acompanham até o encerramento. Enquanto o esemy é responsável por cavar dois buracos próximos, com aproximadamente 1 (um) metro e meio de largura e um 1 (um) metro de profundidade, os rapazes tocam as flautas em som alto e os outros participantes dançam em torno do local cavado, sendo que cada casal de participantes do ritual reveza-se mudando de posição e dançando durante a noite toda.
16.Japohpo se refere somente aos tios ou primos pelo lado paterno da família na língua aparai.
Referências
APALAI, Ariné Waiana. Omi Apiakane, um intérprete entre mundos: experiências no movimento indígena, protagonismo e autonomia dos povos Aparai e Waiana. TCC, CLII/UNIFAP, Oiapoque, 2023.
APALAI, Cecília; APALAI, Ariné et al. Pake ahtao oturutopõpo poko. Histórias antigas dos Aparai-Waiana. Macapá: SEED/NEI; APITU; GTZ; Instituto Cultural Brasil-Alemanha; FUNAI, 1996.