Pedra, cimento, suor e cor: reverberações da criação do muro de proteção/mural de expressão da Aldeia Maraka’nà
Alecsander Vasconcelos Correa (UFRJ)
Alice Magaldi (UFRJ)
Elaine Vieitas da Cruz (UFRJ)
Enzo Maxakali (Universidade Indígena Aldeia Maraka’nà)
Juliana Vieira (UFRJ)
Lidia Larangeira (UFRJ)
Potyra Krikati Guajajara (Universidade Indígena Aldeia Maraka’nà)
Mayra Xavier Araújo Guajajara (Universidade Indígena Aldeia Maraka’nà)
Rosane Vianna Jorge (UFRJ)
Ruth Silva Torralba Ribeiro (UFRJ)
Sandro Akroá (Universidade Indígena Aldeia Maraka’nà)
Thaís Leitão Chilinque (UFRJ)
Urutau Guajajara (Universidade Indígena Aldeia Maraka’nà)
Vinicius Guajajara (Universidade Indígena Aldeia Maraka’nà)
Essa escrita relata a experiência coletiva de reforma e criação de um muro de proteção/mural de expressão de Artes Indígenas no território da Aldeia Maraka’nà, realizada entre novembro de 2021 e julho de 2022, num contexto de finalização do isolamento social da pandemia de COVID-19.
A reforma do muro foi uma iniciativa promovida pelo projeto Residências Partilhadas LabCrítica/UFRJ — edição Ecologias Espaciais — com apoio do Hemispheric Encounters do Canadá.
A ação foi desenvolvida pelo Núcleo de Pesquisa, Estudos e Encontros em Dança (onucleo/UFRJ) em parceria com a Universidade Indígena Pluriétnica e Multicultural Aldeia Maraka’nà.
As jovens lideranças da Aldeia, auxiliadas pelo cacique Urutau Guajajara e Potyra Krikati Guajajara, foram os responsáveis pela execução do projeto.
A Aldeia Maraka’nà é um território indígena onde acontecem as ações da Universidade Indígena Pluriétnica e Multicultural Aldeia Maraka’nà. Localiza-se ao lado do maior estádio esportivo do Brasil, no bairro do Maracanã, no Rio de Janeiro (RJ).
Trata-se de um território indígena denominado pelos tupinambás, há mais de 500 anos, de “taba Jabebiracica” (SILVA, 2020, p. 115). A Aldeia Maraka’nà está localizada em parte do terreno que sediava o antigo Museu do Índio que, em 1977, foi transferido para o atual endereço em Botafogo. O território ficou sem destino até 2006, quando foi retomado por um grupo de indígenas de diversos povos, que o reivindicaram como um território indígena sagrado.
Em 2013, durante as obras para a realização de grandes eventos esportivos mundiais (Copa do Mundo no Brasil, em 2014, e Olimpíadas no Rio, em 2016) o governo do Estado do Rio de Janeiro realizou uma violenta e ilegal operação de retirada dos indígenas deste território com o intuito de conceder a área da Aldeia à iniciativa privada.
Foram necessárias muitas ações de resistência para impedir a consolidação desse projeto de expropriação. O gesto de Urutau Guajajara, ao permanecer por 48 horas em cima de uma árvore contrariando a ordem de retirada, foi determinante para a continuidade da Aldeia neste território originário.
O Núcleo de Pesquisa, Estudos e Encontros em Dança (onucleo) do Departamento de Arte Corporal (DAC) e do Programa de Pós Graduação em Dança (PPGDan) da UFRJ, atua em parceria colaborativa com a Aldeia Maraka’nà desde 2017.
Trata-se de um coletivo de pesquisadoras artistas da dança, atualmente voltado para a investigação de “práticas de estarcom” (LARANGEIRA & RIBEIRO, 2020): fazeres coletivos e expandidos de dança, atentos em contracoreografar as violências coloniais sedimentadas no nosso chão.
Nomeamos de contracoreográficas (LARANGEIRA, 2020) práticas que operam fora da dinâmica hegemônica da dança, usualmente regida pela lógica de comando e obediência, competição, meritocracia, racismo e sexismo. Nas proposições contracoreográficas inauguram-se potências de relação, corporeidades, modos de existência, cuidado e criação.
O programa de Residências Partilhadas LabCrítica (PPGDan/UFRJ) foi fomentado pelo Hemispheric Encounters do Canadá. Aconteceu em parceria com projetos comunitários e com núcleos artísticos brasileiros.
A edição Ecologias Espaciais foi composta pela comunidade indígena de Itacoatiara-Mirim, em São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas, em parceria com a artista manauara Yara Costa; pela reforma do muro na Aldeia Maraka’nà; e pelo projeto Cavalcanti, na zona norte do Rio de Janeiro.
A ação de reforma e pintura do muro foi proposta pelas lideranças da Aldeia como iniciativa para cuidar da vulnerabilidade social e psíquica dos jovens indígenas em contexto urbano, que têm sua existência ameaçada pelo racismo estrutural, pela falta de oportunidades para exercerem suas ancestralidades e pela cultura de consumismo do “povo da mercadoria”, como afirma Davi Kopenawa (KOPENAWA & ALBERT, 2015).
O engajamento em ações, como a reforma do muro e sua pintura, fortalece o vínculo com o território e facilita a emergência das marcas da memória ancestral pelas mãos dos mais novos.
A construção do muro foi ajudando a consolidar o processo de autodemarcação do território que é corpo e é espírito, como nos ensina Inara do Nascimento Tavares (2019), indígena do povo Sateré Mawé.
Muro de proteção/Mural de Arte Indígena
A feitura do muro foi dividida em duas etapas que consistiram em:
1) reforma dos aproximados 35 metros de muro previamente existentes, cobrindo os tijolos expostos com cimento, alinhando e alisando sua superfície;
2) pintura do muro com expressões dos diversos povos que compõem a multiculturalidade da Aldeia Maraka’nà.
Um gesto importante foi o de substituir o cinza do cimento pelo branco, base que recebeu todas as cores da diversidade de povos e culturas da Aldeia Maraka’nà: Guajajara, Guarani, Xukuru, Akroá Gamella, Tikuna, Pataxó, Maxakali, Goytacá, Guarani Kaiowá, Tupinambá, Tiriyó, Ashaninka, Quechua, Aimará...
Assim como a pele do corpo que recebe o jenipapo e o urucum, a pele do muro foi sendo coberta por diferentes grafismos e motivos artísticos.
Através da ação coletiva, a superfície foi ganhando cor e movimento ao ecoar expressões de alguns dos mais de 305 povos indígenas do Brasil.
O trabalho coletivo no muro provocou uma dilatação espacial, expandindo os limites geográficos do território para além de suas fronteiras. A presença das pessoas pintando um grande mural despertava a curiosidade e incitava quem morava, passava ou trabalhava ali a conhecer as atividades que acontecem na Aldeia. Assim, os policiais, a vendedora de sacolé, o menino que vende pano de prato no sinal, o guarda municipal e as várias pessoas que circulam pelo espaço de fora da Aldeia, se aproximaram e contribuíram de diversos modos. O muro reuniu e construiu histórias que reverberam a presença indígena na cidade.
“Na contração comunitária, rebocamos juntos, emboçamos juntos, ativamos coletivamente os músculos que sustentam a pele do espaço e sua potência de expressão. Reunimos cimento, areia, pedra, água e reviramos a massa. Cobrimos de cimento e alinhamos as paredes. Dançamos, comemos e brincamos juntos. Alisamos a superfície rugosa para transformá-la em tela - painel que confronta o silenciamento das narrativas originárias.” (GREGÓRIO et. al, 2022)
Pelo trabalho coletivo entre indígenas e apoiadores, o muro se transformou em um mural de expressão da arte indígena contemporânea (ESBELL, 2019), criando uma “pele” de relação e comunicação entre Aldeia e cidade.
A ação do muro foi uma confluência das práticas desenvolvidas pelo onucleo com o trabalho coletivo de Muitiró (mutirão, em Ze’eg eté, língua do povo Guajajara), modo ancestral de fazer entre povos indígenas.
Essa realização ativou corpos-territórios, reflorestando nossos territórios sagrados, acendendo o fogo da re-existência e fabulando outros modos de convivência.
Reverberações: dois anos depois
A experiência coletiva em torno de um objetivo comum aproximou afetivamente as integrantes d’onucleo às jovens lideranças da Aldeia, tecendo fios de confiança que desembocaram em outras ações realizadas na Aldeia, na UFRJ e em outros espaços.
A seguir, apresentamos o depoimento de duas das jovens lideranças indígenas, autores desse texto, Mayra Guajajara e Sandro Akroá:
Transcrição do áudio.
"Zane Karuk. He rer Mayra, Tenetehar wà, 23 kwarahy heta ihewe. Aldeia Maraka'nà i pe. Boa tarde para todos, meu nome é Mayra, sou do povo Tenetehara-Guajajara, tenho 23 anos e sou da Aldeia Maraka'nà, uma das lideranças. Falando um pouco sobre o muro: foi um encontro que surgiu do coletivo onucleo e que foi muito importante para nós da Aldeia Maraka'nà termos mais segurança e proteção. Achei que foi um momento único também, onde os indígenas mais jovens da Aldeia puderam pintar, falar um pouco sobre a logística do coletivo e também sobre a temática do grafismo. Todo mundo pintando e se organizando para ter mais segurança dentro da Aldeia. E a sensação que me traz é de mais conforto, mais segurança e mais fortalecimento, porque esse muro salvou muito a gente. A Aldeia era toda aberta, tinham muitos roubos. Então esse muro ajudou muito a ter segurança na aldeia. E a importância do muro, além da segurança, é que todo mundo quando olha ele já quer conhecer a Aldeia e saber sobre o muro, os grafismos nele. Todo mundo que vem de fora, passa ou corre nos arredores da Aldeia, olha lá aquele muro e quer saber quem fez, quem pintou, quem organizou. Vão dentro da aldeia para saber sobre o muro e acabam conhecendo mais sobre a gente. Também foi muito importante para a Aldeia falar sobre os jovens que pintaram o muro, falar que foi um encontro dos jovens da Aldeia Maraka'nà.
E mudou muita coisa depois do muro que a gente pintou. Muitos indígenas da Aldeia que não eram artistas viraram artistas, talentosos. Passaram para faculdades. Então muitos indígenas jovens, que ajudaram a construir o muro, evoluíram bastante depois. Teve uma grande repercussão, muita gente querendo saber sobre o muro, quem pintou. Então, falar que a gente fez o muro é uma honra. Por isso só quero agradecer a quem deu esse apoio pra gente, quem ajudou a gente a construir. Se não fosse essa força dos apoiadores, d’onucleo, a gente não teria conseguido."
Transcrição do áudio:
“Olá, amigos e amigas. Espero que esteja tudo na paz com vocês. Que Tupã abençoe vocês todos. Eu queria também agradecer, desde já, essa oportunidade de tá falando um pouco sobre a experiência de participar da restauração do muro, que foi um projeto desenvolvido pelas meninas d’onucleo né. A Nane, a Lidia, a Ruth e as outras meninas também. O pessoal todo participou, da Aldeia Maraka'nà.
Esse projeto trouxe pra Aldeia Maraka'nà muita força, sabe? Muita luta, muita resistência. E trouxe embelezamento também, né, que todo mundo que passava ali, principalmente os tijucanos, ficavam perguntando que projeto era esse, falavam que tava bonito, apoiaram. E também teve as pessoas que, como sempre, criticaram, né. Claro, a gente mora aqui no meio do caos, aqui, do lado do Maracanã. Principalmente com a torcida do Flamengo que tando com o muro pintado ou não eles não respeitam de qualquer forma né. Vai lá, fazem xixi na parede, isso e aquilo, e não respeitam. Mas acredito eu que foi um projeto de restauração que trouxe muitas coisas boas né. Principalmente pra mim, que eu vim pra Aldeia Maraka'nà frequentemente. Comecei a morar aqui tem uns quatro ou cinco anos e, de lá pra cá, eu vim desenvolvendo mais o meu trabalho artístico né, o meu talento. E essa foi a segunda vez que eu pintei uma pintura na parede assim, sabe. E eu gostei muito de participar, fiquei muito feliz naquele tempo. Confesso que, apesar dos pesares, das dificuldades, mas a gente conseguiu tá fazendo, tá concluindo. Foi muita gente envolvida, muita gente de bom coração que se dispôs a tá ali. Eu acho que isso foi bem importante, essa união da gente pra poder tá dando uma cara nova no muro da aldeia, tava um pouco meio que sem uma beleza, né, sem uma alegria, assim. As pessoas passam ali e já ficavam olhando. Paravam pra tirar foto, comentavam, perguntavam, né. Principalmente pras escolas que vem aqui, escolas públicas, escolas particulares. E a gente sempre tava apresentando, explicando um pouco sobre cada pintura, sobre cada povo, né, o que significava. E eu sou muito grato por tudo que as meninas d'onucleo fizeram por mim também, né, me ajudaram bastante. E é isso. Espero que esteja tudo na paz com vocês, todos bem. E que Tupã esteja com vocês. Obrigado.
Independente de quaisquer circunstâncias que a gente mora aqui na Aldeia, do lado do Maracanã, e tem todos os problemas que vem, né, de fora. Os ataques, o preconceito, o racismo, a opressão, mas eu acho que o importante é que a gente sempre tá unido contra isso e fazendo a nossa parte, um ajudando o outro, sempre nos fortalecendo. E esse projeto foi um gatilho pra que eu viesse a estar desenvolvendo mais a minha arte, levando pras outras pessoas que é o caso também das oficinas de maracá, de pintura. E também me ajudou muito a criar mais coragem pra começar a fazer as telas e cursar também, né. Até me ajudou também a querer entrar na faculdade pra poder cursar artes visuais, que é uma das coisas que eu gosto muito de fazer, e me ajudou bastante."
Sandro Akroá
Referências:
ESBELL, J. Arte Indígena Contemporânea e o Grande Mundo In Revista Select Edição 39, 2018.
KOPENAWA, D. e ALBERT, B. A queda do céu. Cia. das Letras, São Paulo: 2015.
LARANGEIRA, L. C. e RIBEIRO, R. S. T. Práticas de estarcom como gesto de cuidado e criação. Mnemosine. Vol.16, nº2, p. 85-106, 2020.
LARANGEIRA, L. Contracoreografias: friccionar dança, escrita e feminilidade. In: SANTOS, B. BASTOS, H., TOURINHO L. L., ROCHA L. V. Orgs.) Carnes Vivas: Dança, Corpo e Política. Salvador: ANDA, 2020.
SILVA, R. F. O Rio antes do Rio. Belo Horizonte: Ed. Relicário, 2020
TAVARES, I. N. A mãe terra gritará por nossos corpos. In. Amazônia Latitude. A revista das humanidades ambientais. São Paulo, 2019. Disponível em https://www.amazonialatitude.com/2019/08/09/a-mae-terra-gritara-por-nossos-corpos/ acesso em 12 de set. 2022.
GREGÓRIO, I. B. et al. Pedra, terra e água: o muro como pele do espaço na Aldeia Maraka'nà. In: ANAIS DO VII ENCONTRO CIENTÍFICO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA, 2022, Online. Anais eletrônicos... Campinas, Galoá, 2022. Disponível em: <https://proceedings.science/anda/anda-2022/trabalhos/pedra-terra-e-agua-o-muro-como-pele-do-espaco-na-aldeia-marakana?lang=pt-br> Acesso em: 01 Abr. 2024.
Imagens:
onucleo
Shikko Alves
Wagner Cria