Saúde
Koxaoni
Tradução: Maurício Waraxowoo'i Tapirapé
O professor e intelectual Maurício Waraxowoo'i Tapirapé explica a fala da anciã Koxaoni sobre saúde e parto.
Para ela, desde o conhecimento ancestral Apyãwa, os cuidados com o bebê se iniciam antes do nascimento, quando mãe e pai devem tomar uma série de atitudes que se referem à espiritualidade de seu povo, para garantir a saúde e o bem-estar da criança e deles mesmos.
A ideia de saúde entre os Tapirapé não isola práticas de resguardo, cuidados coletivos e familiares, práticas alimentares, pintura corporal e o respeito social, ligado às regras culturais e entendimento do mundo espiritual.
É interessante notar como bebê, pai e mãe estão vinculados por práticas coletivas, que, por um lado, reforçam a relação entre eles, sendo que o que afeta um/a afeta todos/as, e, por outro lado, reforçam a relação com o mundo ancestral Apyãwa.
"Eu sou Koxaoni e vou contar, desde o começo, os cuidados que se tem com o bebê, desde o primeiro período de gestação.
Durante a gravidez, bem como depois do nascimento, até o desmame de uma criança, nós, Apyãwa, procuramos não extrapolar a norma cultural que diz respeito aos cuidados com o bebê, pois acreditamos que a má formação de uma criança é consequência dos atos de seus pais.
Por isso, cumprimos de maneira adequada o momento de xekakopãwa para garantir que a criança seja bem gerada.
Desse modo, um casal que espera por um pityga deixa de fazer várias atividades, inclusive deixa de consumir alguns alimentos que consideramos portadores de doenças espirituais.
Não se pode consumir, por exemplo, xexo (peixe que conhecemos como iú), kwaxi (quati), wyrakãja (galinha), ypewoo (pato), mytopinima (mutum pintado) e xako’i (jacú), visto que são portadores de teawyrywa (distúrbios psíquicos).
Ao consumirem esses alimentos, os pais podem transmitir à criança esse problema, já que, segundo a concepção nossa, o bebê, de algum modo, se alimenta de tudo que é ingerido pelos seus pais.
Os pais não são afetados pelas doenças, mas o bebê, por ter o corpo ainda em processo de desenvolvimento pode, espiritualmente, ser afetado facilmente e, assim, pode nascer com essa deficiência.
Além dessas espécies de alimentos, há outros tipos de alimentos que são proibidos, mas não são considerados tão perigosos quanto esses.
Pela mesma razão, ao mesmo tempo em que se evita consumir certos alimentos, os pais também deixam de realizar certas atividades que, entendemos, podem contribuir com a má formação de um bebê.
Por exemplo, não se pode rachar lenha, cortar ou partir cabeça de peixe, ou qualquer outra espécie de bicho. Ou melhor, se evita fazer qualquer atividade em que há cortes.
Isto, por sua vez, de certo modo, é para evitar que uma criança nasça machucada ou com defeito em alguma parte do corpo, por exemplo, nos braços ou nas pernas, nos lábios, etc.
Dessa forma, entre nós, Apyãwa, dificilmente uma criança nasce, por exemplo, com esses tipos de deficiências, porque mantemos ainda vivos saberes e normas da vida que nos evitam cometer esses tipos de irregularidades, considerados irreparáveis por nós, Apyãwa.
Neste sentido, todos os cuidados que são tomados durante a gestação são obrigações indispensáveis, no sentido de promoção da saúde e proteção específica do bebê contra doenças causadas por certos tipos de alimentos e comportamentos.
Quando o bebê nasce, a responsabilidade dobra!
Mais uma vez, o pai e a mãe mantêm rigorosa dieta alimentar, só podendo ingerir kawĩ, uma espécie de mingau preparado com arroz ou milho, pilados. Evidentemente, continuam cumprindo as exigências prescritas para que nada de mal aconteça ao bebê.
Podem consumir alguns produtos da roça, como cará, batata-doce e abóbora que, segundo a tradição, não fazem mal.
Neste período, também não são realizadas quaisquer tipos de atividades que requerem esforço físico até que o umbigo da criança caia. Pelo que entendemos, tais restrições alimentares e atitudes comportamentais influenciam diretamente no bem-estar de ambas as partes, tanto do bebê quanto dos pais.
E, assim, inúmeros cuidados preventivos são praticados pelos pais com o intuito de garantir a boa saúde do bebê. Para poder sair do resguardo e retornar às atividades normais, o pai tem que se pintar com xanypãwa ‘tinta retirada de jenipapo’ e passar oroko ‘tinta de urucum’ nos cabelos, simbolizando, assim, o fim deste momento.
A mãe fica em repouso pelo tempo que durar o sangramento pós-parto. Quando o sangramento termina, ela poderá sair, desde que seus cabelos sejam untados com uma densa camada de pasta de oroko. O bebê também é massageado com oroko, de preferência, orokoxowa ‘urucum amarelo’, no sentido de proteger dos maus espíritos. E recebe intensos cuidados até que caia o umbigo.
Lembramos que os pais do bebê, antes de comerem, principalmente, peixe; terão de beber primeiro um pouquinho de ximary ‘a água de um cipó’ “venenoso”, usado para a pesca do timbó, e passar a mesma água em todas as juntas do corpo. Segundo a concepção nossa, isso é fundamental para nos prevenir e para evitar pegar a doença denominada ipirakyga ‘reumatismo’.
Só depois disso os pais são liberados para comer outros alimentos, mas é mantida uma dieta com restrições específicas até o momento do desmame que, geralmente, ocorre quando a criança já está caminhando (entre um ano e dois anos de vida).
Não é raro que, qualquer problema que aconteça com a criança, seja atribuído a um descuido alimentar dos pais.
É isso que eu tenho para contar a vocês".