Memórias de rios e transmutações
Aline Ngrenhtabare Lopes Kayapó
Aline Ngrenhtabare Lopes Kayapó pertence ao povo indígena Mebengokré, é descendente do povo Aymara (Peru), mãe do Yupanki Bepriabati, escritora, ilustradora, ceramista, batedora de açaí, artista plástica, pesquisadora indígena, ativista no movimento indígena nacional e no movimento nacional de indígenas mulheres.
É coordenadora conjunta do Instituto Cartografando Saberes, ligado ao Núcleo de Altos Estudos da Amazônia- UFPA, atuando na área de Direitos Humanos. É membra fundadora do movimento Wayrakunas, rede ancestral-filosófica, vinculada à reflexão da resistência das indígenas mulheres no Brasil. É membra, também, do Conselho Editorial da GRUMIN, graduanda em Direito pela UNIFTC, secretária regional de comunicação do MUPOIBA e membra do Parlamento Indígena do Brasil.
"Me chamo Aline Ngrenhtabare Lopes Kayapó, sou administrativamente brasileira, uma vez que não me resta outra alternativa, já que não vivo no Brasil colônia.
Pertenço aos povos originários, Mebengokré no Estado do Pará, Tupinambá de Uruitá e Aymara do Peru. Nasci em Belém e, desde 2017, moro em Porto Seguro, no Estado da Bahia. Tenho a honra de ser mãe de um peixinho, como carinhosamente chamamos meu filho, Yupanki Bepriabãti Kayapó, que é do signo de peixes.
Como ativista indígena, pesquisadora, filha, neta, mãe e avó, não consigo ver a nossa vitória desligada da liberdade de coexistir com outras formas de vida, humanas e não humanas.
A maneira utilitarista na qual a humanidade tem lidado com Pachamama revolta qualquer filha que se mereça e, a nós, essa revolta lateja. Um latejo renitente e contínuo que nos moveu a buscar um lugar onde existir, que não seja sinônimo de dor e apagamento. Essa busca fez com que, em 2017, dezenas de indígenas mulheres se unissem em um movimento chamado Wayrakuna, que tem como missão, 'polinizar a vida e semear o Bem- Viver'.
Lá, expressamos nossas perspectivas coletivas e individuais; tendo cuidado para não nos tornarmos uma massa homogênea, onde nossas visões e pertencimento não são levados em consideração, como é o comum na maioria dos movimentos sociais.
Contra isso nos posicionamos com veemência!
Wayrakuna, somos nós, toda indígena mulher que entende a responsabilidade de estar em um corpo político que ancestralmente é comprometido com a nossa luta.
Que tem consciência da dimensão crítica, do que é ser uma mulher, nos parâmetros trazidos pelas caravelas, e que perdura até os dias atuais.
Ser indígena em um país genocida, mulher em um país sexista, ativista ambiental em um país ecocida e pesquisadora em um país historicamente negacionista, sem dúvida, é um grande desafio para nós, indígenas mulheres.
Em terra de retrocessos, quem tem resiliência não vive, resiste e, assim, tem sido desde que a primeira bota imunda pisou nessas terras.
Centenas de indígenas, todos os dias, precisam afirmar para esse estado caótico, apelidado de Brasil, que nosso povo precisa de água potável e que não dá para vivermos como antes da invasão, porque o fomento à política do garimpo contaminou os rios que são nossas principais fontes de água; além de serem a moradas de seres sagrados.
Por sermos guardiãs dos rios, também lutamos.
Em pleno ano de 2024, ainda precisamos gastar nossa saliva para convencer os “civilizados” que viver sem energia elétrica, mesmo em comunidades indígenas e territórios isolados geograficamente da sociedade do entorno, é inviável, e que políticas nacionais e internacionais de extermínio de geradores movidos a gasolina e diesel precisam ser urgentemente fomentadas.
Muitas vezes, parecemos desfalecer, tamanho é o sentimento de impotência diante da resistência para existir em um 'deslugar', onde não podemos, ao menos, parar e chorar por aqueles que tombaram. Reiterados lutos mal vividos e, por isso, mal curados, nos condicionam a dolorosamente 'florescer em meio ao lixo' dessa sociedade caótica, parafraseando a minha avó do coração, Eliane Potiguara!
Na condição de graduanda em Direito e indígena, questões como essas que nos atravessam, não podem ficar sem as devidas respostas, porque a materialidade das memórias que aqui ficam se eternizam através da energia que trocamos com o universo.
Por isso é tão importante a nossa luta pela preservação dos nossos territórios, que deveriam ser nossos asilos invioláveis e, no entanto, sabemos que não é bem assim.
Isso me faz lembrar de um poema que escrevi em decorrência do incêndio que ocorreu no Pantanal em 2020:
A visão
Para onde iremos depois da nuvem cinza
Nós sabemos bem…
Para onde iremos depois de todo sangue derramado
Nós sabemos bem…
Para onde iremos com nossos corpos violados
Nossos pés, patas, peles, penas, couros e cascos em chamas
Nós sabemos bem
Para onde iremos sem as árvores rios e animais
Nós sabemos bem…
E tu?
Para onde irás quando te faltares o essencial que tu mesmo destruístes?
Tu não sabes?
Nós sabemos bem, e isso nos apavora!
Como designer de moda e estilista da minha própria marca, chamada Originária, tento mostrar que unir preservação, cultura e consciência ambiental é possível.
Essas trocas com o universo também são válidas, uma vez que a indústria da moda é a segunda mais poluidora do mundo, perdendo apenas para a indústria petrolífera, a mesma que tem cirandado a foz do Rio Amazonas com suas doentias prospecções em desfavor das diversas formas de vida que ali habitam.
Pensando em todas essas coisas que me atravessam, tenho trabalhado na criação de uma sequência de telas que chamo “Memórias de Rios e Transmutações”, nascida do resultado de reiterados mergulhos profundos em busca de libertação para minha alma inquieta.
A convergência e confluência de tantos braços de furiosos rios, que se dispuseram a acolher a minha dor, foram os mesmos que me encorajaram a abrir os olhos em águas turvas e iluminadas pela luz da Mytyry-Notí (lua cheia).
Nas profundezas mais sagradas, pude me ver no reflexo do olhar de Yara e, pela primeira vez, minhas escamas não me assombraram.
Na contramão do que acreditam a maioria dos brasileiros, Yara não é uma sereia. Para o povo Tupinambá de Uruitá, no Estado do Pará, Yara é uma cobra encantada que habita as profundezas dos rios amazônicos e nas noites de lua cheia. Sai de seu território sagrado e sobe até a superfície das águas em busca de um local seguro para a sua pele trocar.
Enrolada na extensão do seu corpo, que parecia não ter fim, até a superfície das águas me levou e, juntas, compartilhamos nossas memórias e contínuas transmutações, que nos encorajam a trocar de pele sempre que a vida naturalmente nos quiser maiores.
Memória de Rios e Transmutações traz, para o centro de sua estética, características antropomórficas dessa grande mãe dos rios, que se chama,Yara.
Esperança
Todos os dias te vendo sem conseguir te acessar…
Hoje, transmutada em água e ar
Tomei a liberdade de mergulhar
Em seus braços
Me aconchegar
E as lindas memórias de rio
Acessar
como as de agora
que se moldam ao som da chuva que cai,
e dos raios opacos do sol que se põe,
mostrando o horizonte de possibilidades
que estão por vir…
Contato da artista
Nome: Aline Ngrenhtabare Lopes Kayapó
Instagram: @panhonka
E-mail: panhonka@gmail.com