Bete Morais é indígena do povo Desana, natural de São Gabriel da Cachoeira, no Estado do Amazonas. É atriz, dramaturga, escritora, poetisa, arte-educadora e bacharel em Direito. Atua no teatro desde 2011, na área da performance corporal, com um teatro social, que retrata as relações humanas e o meio ambiente.
Cursou Teatro no Centro de Artes da Universidade Federal do Amazonas, Direito na Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul e atualmente desenvolve uma oficina de corpo e voz na área da educação.
O conteúdo, os temas, a visão de mundo e o estilo das suas narrativas de ficção são expressões da sua cultura ancestral tukana e desana, e do ambiente civilizatório do alto Rio Negro, Amazonas, Brasil.
Arte para ela é uma forma de conversar com o mundo, é autoconhecimento, é dividir aquilo que está sentindo.
Conto: SURI (FELIZ em Nheengatu) - Bete Morais
Era uma tarde de verão e a água estava gelada depois da chuva.
Eu caminhava descalça sobre as pedras, buscando uma boa história, uma nova descoberta.
Depois de alguns minutos observando o Rio, um grande peixe deu um lindo salto, acho que era um pacu gigante.
Caminhei mais um pouco e avistei numa pequena ilha cheia de pedras muitas andorinhas sentadas, enquanto umas estavam apenas sentindo a brisa do Rio, outras entravam e saiam do buraco de uma pedra. As andorinhas tinham um canto mágico, elas me levavam a outros mundos. Tudo parecia ficar perfeito e equilibrado quando elas estavam por perto. Elas estavam sempre soprando a mesma coisa nos meus ouvidos, “para voar é preciso sonhar”.
Eu estava na ilha das “gentes cutias”, e de lá eu ficava mirando aquelas andorinhas, que deslizavam por cima do Rio e depois retornavam para a grande pedra. Eu realmente estava determinada a chegar perto daquelas andorinhas, estava louca pra conhecer o ninho delas.
Suspirei e comecei a procurar uma canoa para atravessar até a pequena ilha. Achei uma canoa bem pequena, só cabia uma pessoa, mas ainda faltava o remo. Fiquei uns vinte minutos procurando, mas só achei um pequeno graveto.
Eu entrei na pequena canoa e fiquei deslizando o graveto na água e conversando com o Rio, assim como fazia todos os dias. Depois de alguns minutos, o Pequeno, cachorro da minha vó, chegou correndo e entrou na canoa, como se perguntasse “ei, pra onde vai?”.
Peguei em uma das suas patas, fiz carinho na sua cabeça e disse:
- Estou tentando ir até aquela ilha para ver as andorinhas, mas não achei nenhum remo. Depois que eu falei isso a canoa começou a se balançar e nós quase caímos na água de susto.
Eu e o Pequeno saímos correndo e a canoa continuou a balançar, porém não tinha nenhum banzeiro, eu até pensei que fosse um boto brincalhão, porque uma vez um boto brincalhão nos seguiu quando voltamos da prainha. Por aqui sempre aparece um boto brincalhão, mas minha vó diz que eles são encantados e podem nos levar para outros mundos.
A verdade é que eu e o Pequeno com certeza iríamos para o mundo do boto brincalhão, porque nossa curiosidade é maior que o nosso medo, mas aquela canoa balançando sozinha estava estranho. Eu e o Pequeno ficamos observando de longe, e aí eu tive uma ideia, me aproximei da canoa e perguntei:
-Pode levar eu e o Pequeno naquela ilha?
Logo em seguida veio a resposta. Depois que fiz a pergunta a canoa se balançou.
Eu olhei pro Pequeno e disse:
-Parece que a canoa quer levar a gente naquela ilha, mas você pode ficar.
Pequeno deu uma chorada, mas entrou na canoa, e depois fechou a cara com as patas.
Eu olhei pro Pequeno e disse:
- Segura que eu vou empurrar a canoa e não fique com medo, nós sabemos nadar, qualquer coisa nadamos até uma pedra e pedimos ajuda. Ele ficou mais calmo e balançou o rabo.
Eu empurrei e entrei na pequena canoa, nós fomos deslizando em direção à casa das andorinhas, mas quando chegamos no canal a canoa começou a baixar, eu e o Pequeno ficamos com os olhos arregalados. A canoa desceu mais um pouco e nós fechamos os olhos, mas depois começamos a ouvir barulho de banzeiro, então abrimos os olhos novamente. Percebemos que as ondas do Rio estavam nos levando para a casa das andorinhas. E, finalmente, respiramos!
Encostamos na pedra, devagar, o Pequeno saiu correndo e eu puxei a canoa na pedra. Chamei o Pequeno, olhei pra ele e disse:
- Acho que o Rio gosta da gente! Ele então pulou, começou a latir e eu disse:
- Não pode latir Pequeno, as andorinhas vão voar.
Bem, realmente quando chegamos na grande pedra não tinha nenhuma andorinha, ficamos os dois tristes. O sol estava quase desaparecendo, nos sentamos um ao lado do outro e ficamos admirando o pôr do sol.
Quando bateu um vento frio, eu suspirei e fechei os olhos. Depois de alguns minutos, ainda com os olhos fechados, comecei a ouvir as andorinhas e comecei a sorrir, era como se o som das andorinhas estivesse saindo de dentro de mim.
Sim, elas faziam parte do meu corpo, eram a minha cura, o eco da minha pequena alma.
Depois de passar alguns minutos sentindo o pôr do sol, caminhamos devagar em direção à pequena canoa para retornar para a casa.
A volta era mais tranquila porque a ilha das andorinhas ficava acima da “ilha das cutias”, era só empurrar a canoa e deixar ela ser levada pela correnteza até chegar no remanso.
Na volta aconteceu algo surpreendente. Quando chegamos na metade do caminho a nossa pequena canoa parou de se mover e então vimos dois grupos de milhares de andorinhas cada cruzarem nosso caminho. Pequeno ficou feliz da vida, começou a latir e pular na proa da canoa.
Os dois grupos de andorinhas começaram a fazer coreografias na direção do pôr sol, e elas sempre passavam coladas ao redor, fazendo vento. Elas passavam voando sincronizadas ao nosso redor e também por cima das nossas cabeças. Foi uma festa de magia e alegria.
Depois do ritual das andorinhas a nossa pequena canoa começou a descer novamente e em seguida os grupos de andorinhas foram engolidos pela energia do Rio Negro.
Eu e o Pequeno voltamos felizes e cheios de andorinhas dentro de nossos corpos.