Notícias
ARTIGO
Cuba, gatilhos ancestrais e os úmidos olhos de Conceição Evaristo
Fotos: Juliana Uepa/ MinC
O Brasil é o país homenageado da 32ª Feira Internacional de Livro de Cuba e o Ministério da Cultura, capitaneado por Margareth Menezes, levou uma delegação de escritores, escritoras, quadrinistas, ilustradores, músicos e intelectuais para o evento, que termina em 25/02. Em 2005, o país também foi a nação homenageada do evento que lota o Forte de Las Cabañas. Curiosamente o Minc também era comandado por um expoente da música brasileira que vem da Bahia, Gilberto Gil. Três pessoas estavam nos dois momentos: Frei Beto, Elisa Lucinda e Conceição Evaristo. O que mudou nestes quase 20 anos? Tudo mudou. O presidente Lula, então no primeiro mandato, teria mais dois; sua sucessora Dilma Rousseff venceria duas eleições, sendo que o último mandato seria interrompido por um impeachment, que pavimentou a subida ao poder de uma extrema-direita que ressuscitou o medo do comunismo e o elegeu como o grande inimigo a ser combatido.
Desde 2013, o país viveria uma escalada alucinada de desinformação, que fez boa parte da população acreditar firmemente que o Brasil algum dia esteve próximo de implantar o regime cubano e a frase “vai pra Cuba” se tornou um dos grandes “xingamentos” em redes sociais.
Aliás, ao longo destes 19 anos, as redes sociais cresceram desenfreadamente e assumiram o lugar de ágora, de praça pública que pauta e decide eleições, dissemina todo tipo de informações, distorções, ergue e destrói carreiras em um clique. Um lugar estranho, com muitos perigos à espreita, mas também com muitas possibilidades de divulgação e oportunidades de trabalhos, de visibilidade de pessoas, iniciativas produtivas e educacionais. Um mundo novo, fascinante por um lado e assustador por outro.
Uma pandemia assolaria o mundo e mataria mais de 700 mil brasileiros e brasileiras, uma parcela gigante destas mortes se dariam em consequência da negação da ciência, da responsabilidade médica e da eficácia de vacinas. Por sinal, Cuba, com todas as suas limitações, desenvolveria cinco imunizantes para a Covid-19.
Enquanto a direita elegia Cuba como o inferno na terra, uma parcela da esquerda decidiu combater esta campanha construindo uma imagem também irreal da ilha, pois, ao fim de tudo, muito pouca gente de um lado e de outro conhecia de fato o país de perto. É de Leonardo Boff a frase que diz “A cabeça pensa onde os pés pisam” e foi pisar em Havana para a cabeça começar a pensar neste tempo decorrido num balanço de vida nacional e pessoal.
Gatilhos ancestrais
As diferenças entre as delegações de 2005, na metade da primeira década do século 21, e 2024, indo para a metade da terceira, são muitas e profundas. Temos agora, além de uma ministra negra, um grupo predominantemente preto e indígena, consequência dos muitos debates da sociedade que, num movimento inevitável, tiveram reflexos definitivos nas escritas e fabulações literárias. Atores novos como rostos que representam majoritariamente a intelectualidade do país, mas velhos, muito velhos, no ofício de contar sobre ele.
Cuba passa agora por mais um dos muitos períodos duros decorrentes destes 65 anos de embargos, uma política erguida pelos Estados Unidos, que asfixia como o policial que apertou o pescoço de George Floyd, e joga a população em precariedades impensadas para certo Brasil.
Para nós, pessoas negras brasileiras, Cuba aciona “gatilhos ancestrais”. Ele é detonado quando voltamos no passado pessoal ou de herança familiar de tantas precariedades, mas principalmente grita quando vemos o poder antigo de resistência, dignidade e espiritualidade de uma gente que lida sim com um regime que tem suas distorções e complicações, mas principalmente precisa enfrentar o julgamento estigmatizador do mundo quase todo. Para nós, é uma conexão imediata e que se dá no olhar, no toque, no abraço.
Eu, Eliana Alves Cruz, já participei de muitos eventos e mesas com Conceição Evaristo. Já fizemos falas complementares e rimos juntas, mas nunca a vi chorar… pois em Cuba, em uma mesa fortíssima onde estávamos nós com a querida irmã indígena e brilhante, Márcia Kambeba, pela primeira vez vi seus olhos úmidos.
Ela recordou 2005, onde se sentia exceção no grupo grande, sem outra autora negra além da amada Elisa Lucinda. Conceição embargou ao recordar na ocasião a recepção das escritoras cubanas Teresa Cárdenas Anguo, ainda com os livros no original e sem publicação; a festejada e poderosa poeta Nancy Morejon e, principalmente, a idosa poeta Georgina Herrera, falecida em 2021. As cinzas de Georgina foram jogadas do Malecón, a orla de Havana, naquele mar azul-marinho único do Caribe.
Naquele momento em que estávamos só nós e uma audiência atenta, ela me olhou vendo um futuro sonhado de tantas autoras e autores brasileiros que multiplicaram e fizeram da literatura a sua moradia definitiva ao longo destes 19 anos. Uma emoção que se estendeu para um encontro com um coletivo feminista de escritoras, todas mais jovens que ela e que a reverenciavam como uma das grandes referências do que a antropóloga Lélia Gonzáles chamava de América Africana, a “Améfrica”.
Neste momento, quase a ouvi recitar as últimas palavras de seu belíssimo livro “Olhos d’água”, premiado pelo Prêmio Jabuti:
“E, enquanto jogava o olhar dela no meu, perguntou baixinho, mas tão baixinho, como se fosse uma pergunta para ela mesma, ou como estivesse buscando e encontrando a revelação de um mistério ou de um grande segredo. Eu escutei quando, sussurrando, minha filha falou:
— Mãe, qual é a cor tão úmida de seus olhos?”.
Fazem parte do grupo de 2024, Ailton Krenak, Conceição Evaristo, Eliana Alves Cruz, Elisa Lucinda, Emicida, Frei Betto, Jarid Arraes, Jeferson Tenório, Marcelo D’ Salete, Márcia Kambeba, Cidinha da Silva, Graça Graúna, Otávio Júnior, Socorro Acioly e Patricia Melo. E ainda Jamil Chade, Juliana Monteiro e Estevão Ribeiro.
O evento conta também com a participação dos quadrinistas brasileiros Ana Luiza de Souza Freitas, Gidalti Oliveira Moura Júnior, Alcimar Mendes Frazão, João Carlos Pires Pinheiro, Sirlene Francisco Barbosa e a curadora da Bienal de Quadrinhos de Curitiba, Luciana Falcon Anselmi.
* Eliana Alves Cruz é carioca, escritora, roteirista e jornalista. Foi a ganhadora do Prêmio Jabuti 2022 na categoria Contos, pelo livro “A vestida”. É autora dos também premiados romances Água de barrela, O crime do cais do Valongo; Nada digo de ti, que em ti não veja; e Solitária. Tem ainda dois livros infantis e está em cerca de 20 antologias. Foi colunista do The Intercept Brasil, UOL e atuou como chefe de imprensa da Confederação Brasileira de Natação.
** Texto originalmente publicado no site ICL Notícias.