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Financiamento: 5ª CNSM debate desafios para a reconstrução sobre escombros
Foto: CNS
Imagine as bombas de Israel sobre Gaza direcionadas ao Ministério da Saúde. A metáfora dá a ideia de como o atual governo encontrou o Ministério, após quatro anos de políticas de destruição e cortes de verbas. Os debates sobre o Eixo 2 da 5ª Conferência Nacional de Saúde Mental Domingos Sávio (CNSM), nesta terça (12/12) revelaram toda a complexidade sugerida pelo caudaloso título “Gestão, financiamento, formação e participação social na garantia de serviços de saúde mental”.
Para se debruçar sobre o tema, que contou com expressiva participação das pessoas delegadas, foram convidados o médico e atual secretário de Atenção Especializada à Saúde (Saes) do Ministério da Saúde, Helvécio Miranda, a médica, chefe do Departamento de Saúde Coletiva da Unicamp, Rosana Teresa Onocko Campos e Evalcilene Costa dos Santos, conselheira nacional de saúde pela Rede Nacional das Pessoas que Vivem com HIV AIDS. Mediaram a mesa, a psicóloga Shirlene Queiroz de Lima e a historiadora Heliana Hemetério.
O secretário Helvélcio Magalhães iniciou sua intervenção apresentando um quadro do que foi encontrado sob os escombros do Ministério da Saúde. Além do desmonte financeiro, afirmou que “herdamos muito do horroroso modelo manicomial, presentes na estrutura física dos manicômios, mas também na postura manicomial de equipes, médicos e situações”.
Ele criticou, também, a abordagem puramente biomédica, superespecializada, que não dialoga com a situação estrutural e socioeconômica dos territórios. “Era uma ação determinada, manicomial, votar leis, propor a volta de eletrochoques, financiar manicômios, uma ação deliberada de desmonte do que havia sido construída no bojo da reforma psiquiátrica”.
Citou ainda, retrocessos em várias áreas da Saúde, como na atenção primária, no financiamento do SUS e no desmonte dos CAPs (Centros de Atenção Psicossociais): “foram desarranjos que tivemos de enfrentar com muitas dificuldades, pois é uma herança pesada, com muitos interesses envolvidos”.
Magalhães lembrou, em compensação, a revogação da Portaria 3588/2017, que alterou as diretrizes da Política Nacional de Saúde Mental.
A portaria já vinha sofrendo críticas do Conselho Nacional de Saúde, desde sua implementação. Em 2018, o CNS pediu formalmente sua revogação. Em 21 de junho deste ano, finalmente, o governo Lula publicou a Portaria GM/MS nº 757, que revogou a lei de 2017.
Após mostrar de maneira sucinta o desmonte que ocorreu na Saúde, o secretário passou a elencar uma série de ações tomadas pelo atual governo em seu primeiro ano de mandato, como a recomposição orçamentária dos CAPs e o esforço para o retirar o “entulho manicomial”, como se referiu.
Como resultado prático deste primeiro ano de governo de reconstrução democrática, citou a criação 41 novos CAPs, 62 STR (Serviços Residencial Terapêutico), 4 Unidades de Acolhimento e 150 LSM (Letramento em Saúde Mental), entre outros totalizando investimento de R$ 49,9 milhões.
Por fim, colocou como outros desafios a recomposição orçamentária das Rede de Atenção Psicossocial (Raps), a permanente interlocução interministerial e o olhar para a territorialização das políticas de saúde e qualificação de equipes para atender casos de saúde mental. “Todo o aparato de emergência, porta de entrada, pronto-socorro, Samu, precisa estar treinado em saúde mental”. Em relação à territorialização e articulação com municípios, afirmou: “Vamos atrás de regiões de saúde onde têm vazios de assistência para, de forma propositiva, enviar para os conselhos, estados e municípios a criação de CAPs e outros equipamentos de saúde. Em 2024 vamos ter um papel mais propositivo nessa questão”.
Saúde mental não é prerrogativa de especialistas
A dra. Rosana Teresa iniciou sua fala afirmando que as conferências são momentos vitais do controle social, ressaltou, no entanto, que os “mantras” entoados (como “manicômios nunca mais”, “saúde não se vende”) são muito importantes em seu significado, mas sozinhos são insuficientes na hora de governar e é tarefa da Conferência incidir na formulação das políticas públicas.
Se mostrou otimista com a fala do secretário Helvécio Magalhães, segundo a qual, após vários anos de trevas, se percebe “questões importantes sendo enfrentadas pelo Ministério”. Com mais de 20 anos de experiência e atuação no campo da saúde mental, Rosana Teresa propôs três eixos de ação para enfrentar e avançar na atual situação: no âmbito do SUS, da intersetorialidade e da cultura e sociabilidade.
“Na ótica do SUS ainda precisamos expandir serviços, mas, sobretudo, recuperar o sentido do funcionamento perdido dos serviços comunitários”, afirmou, completando que “atravessamos a pandemia nas mãos de um governo genocida, não houve por parte do Ministério da Saúde um único protocolo de como deveria trabalhar os CAPs na pandemia”. Segundo ela, muitos serviços foram fechados, o que aumentou o viés da medicalização. “É muito importante que se retorne esses serviços comunitários”.
Dra Rosana criticou a burocracia do sistema, qualificando-a como uma “doença institucional”, para a qual há tratamento, entre eles a criação de supervisões clínicas dos CAPs, e destacou os problemas de integração do sistema, como a relação da atenção primária, das RAPs, UPAs, urgências; para ela, “esses dispositivos ainda estão capengas para fazer essa articulação, precisamos de muito treinamento e capacitação”.
Segundo a médica e pesquisadora, diversas práticas e saberes dos movimentos sociais ainda são pouco incorporadas e estimuladas pelo governo, apesar de serem importantes espaços de participação do usuário. “Quando a gente diz comunidades terapêuticas, não, precisamos colocar outras estratégias, financiar e treinar as pessoas para a implementação dessas estratégias...temos uma pesquisa recente mostrando que os trabalhadores da atenção primária ainda têm medo dos pacientes da saúde mental, esse treinamento é fundamental, porque terceirização e privatização são inimigas da saúde mental e do SUS”.
Intersetorialidade
Para exemplificar o que entende por intersetorialidade, Rosana Teresa citou o exemplo da juventude, que necessita recuperar a esperança como forma de diminuir os casos de violência nas escolas e cabe à saúde mental papel importante de se articular nos territórios. “As escolas, que deveriam ser locais de desenvolvimento e proteção, são muitas vezes locais de agressão, onde esses jovens sofrem racismo, preconceito, imposição de moral religiosa; por isso é necessário os trabalhadores da saúde mental irem até os territórios”.
Sociabilidade expropriada
Em contraposição à decantada amabilidade brasileira, o sistema histórico de exclusão foi gerando, na opinião da pesquisadora, uma sociedade do salve-se quem puder. Para combater isso, ela sugere incentivar a criação de espaços comunitários e políticas de integração. "Jovens de classe média não conhecem a periferia, em sentido contrário, quem mora na periferia, só conhece uma universidade pública porque vai prestar algum serviço, precisamos derrubar essa barreira que segrega essa sociedade”, afirma. Para ela, cultura, esporte, regulamentação do mundo do trabalho “são componentes importantes para promover a saúde mental da sociedade, a felicidade só existe ao preço da revolta, sejamos revoltados e felizes”.
Diversidade regional
Incisiva e vibrante, a amazonense Evalcilene dos Santos se definiu como uma sobrevivente, que convive com HIV/Aids há 24 anos, que sobreviveu à pandemia de Covid e “agora, sobrevivi ao fumaceiro que está no Amazonas”, se referindo às queimadas que assolam o Norte do país e afetam todo o ecossistema mundial. “Sou usuária do CAPs e não preciso entrar em nenhuma comunidade terapêutica”.
Evalcilene alertou para as diferenças regionais, que devem ser fator importante na definição de políticas e verbas do Ministério da Saúde. “Não adianta a gente querer ser tratado como o pessoal do Sul, as condições, os recursos financeiros não podem ser os mesmos porque nossa realidade é diferente, nosso povo é diferente”. Ela citou, como exemplos, o alto índice de suicídio entre jovens indígenas após a pandemia de Covid e condições estruturais, como a via fluvial como um dos principais meios de transporte.
Em sua intervenção, discurso, quase em tom de manifesto, ressaltou a importância das RAPs, do combate às comunidades terapêuticas, denunciou a irregularidade de que em muitas localidades gestores de saúde (secretários) são os presidentes dos conselhos de saúde; “como alguém pode fiscalizar a si mesmo, isso é inconstitucional”, e fez um apelo para a derrubada da PEC 95, que estabeleceu o teto de gastos públicos e limitou os investimentos em saúde e políticas públicas.
Questionamentos da plateia
Após a fala dos expositores, a palavra foi aberta para o público, que questionou, principalmente, o secretário de governo, pedindo ampliação do sistema (“muitas cidades não contam com redes”), territorialização (“as realidades regionais são diferentes, não podem ser tratadas de maneira igual”), fim do financiamento a comunidades terapêuticas, e olhar mais atentos para as populações de pequenas cidades, para a população mais pobre e os povos originários e quilombolas.
Em sua resposta Hevélcio Magalhães reafirmou que o Ministério da Saúde não destina um centavo para as comunidades terapêuticas, concordou com a necessidade do olhar territorializado para atender especificidades das comunidades, e explicou as limitações para o sistema chegar integralmente em cidades pequenas.
Ao final ficou a certeza de que há muito a ser feito para recompor e reorganizar o sistema de saúde, a necessidade de políticas públicas com controle social e um trabalho intersetorial para potencializar o financiamento, sempre com o olhar para os setores mais vulneráveis da sociedade.
Norian Segatto – Comunicação Colaborativa da 5ª CNSM